quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Obrigação

Obrigação

Por hábito, agradeço a possibilidade do trabalho. Cada atendimento, cada novo sujeito em sofrimento, cada família desamparada inaugura uma possibilidade. Recebê-los de escuta aberta e atenta é o primeiro passo. Compreender a questão do sujeito, muitas vezes mal ajambrada pelos excessos do trauma, mal colocada, sem nexo. Depois é preciso avaliar o contexto, as relações subjacentes, a estrutura, os recursos disponíveis. É preciso avaliar se o entorno, colabora para responder ou se dificulta. Avaliar não é tomar a frente (salvo necessário), mas é fazer questão, convidar os parceiros de trabalho a reflexão; é verificar as exceções, a função da regra, o efeito para aquele sujeito. Avaliar é recolher a vaidade da interpretação e reconhecê-la como trabalho. Uma interpretação bem colocada é um ato narcísico, inaugura um outro e um eu em relação ao outro; de passagem, temporário.
Seja na clínica (o mais um na vida do sujeito), mas principalmente nas instituições, pertencer ao grupo é fundamental. Vai para além de ter cargo, crachá e lugar no protocolo. Pertencer é estar inserido, é um processo psíquico, é sustentar um lugar, é aprender (constantemente) a manejar as demandas. É estar ao lado, não à disposição. Nossa disposição é ao sofrimento do sujeito, seja ele do paciente, da família ou da equipe. Porque sofrimento revela verdade inconsciente e se manifesta via sintoma,  ausente de nome diagnóstico. Quando encontram, não carrega nem a causa, nem o tratamento, apenas abre caminho para o trabalho.
As situações mais complexas (e são tantas!) exigem vários. Começamos como um, viramos múltiplos, às vezes nos inter-relacionamos e mais raramente, nos transformamos a partir do outro. Isso nos define como multi, inter ou transdisciplinar. Só sabemos o que somos na prática e quem nos diz são os pacientes.
Há 20 anos trabalhando em hospital coleciono histórias que revelam o que somos e como nos tornamos o que nos reconhecem.
A UTI Neonatal, morada temporária de pequenos que desde do marco zero apresentam algum descompasso, abriga famílias em formação. Já carregam histórias seculares , mas ali, no encontro com o novo, tudo se reordena. Bebês nascidos prematuros, nascidos diferentes do sabido, nascidos múltiplos, nascidos mortos. Famílias nascidas completas, faltantes, aflitas e desesperadas; nascidas também preparadas, esperançosas.
Nos cabe arrumar a casa e bem servir.
E como diria minha mãe, pequenos arranjos dão o tom.
Uma das ações criadas a base de emoção e improviso foi o Corredor da Despedida.
Bebês que permanecem um bom tempo conosco (não determinamos quanto, não exige protocolo, não precisa de comunicado, simplesmente acontece) são aplaudidos em pé na sua saída, como exige a boa ópera.
Saudamos a vida, com palmas, música, lágrimas ( e quantas!) e muita alegria.
Dia desses acompanhei o corredor de uma família, cujo garotinho permaneceu internado por meses e seguirá contando com ajuda.
Trabalhamos muito: conversas longas, por vezes difíceis, insistentes e irredutíveis, resistentes a transformação. Outras mais leves, algumas conclusivas e de reconhecimento. O menino (representante de muitos) foi conhecer sua casa. Foi inaugurar o ano ao lado dos seus.
A história segue sendo escrita, marcada pela passagem demorada na UTI.
Torço por eles, como torço pela humanidade. Talvez os re-encontre, talvez não.
Nosso abraço de despedida teve legenda: obrigada por insistir em me manter no eixo.
Obrigada vocês, pela oportunidade de trabalho, esse é o nosso desejo.
Obrigada a minha equipe, ao parceiros de trabalho, a instituição, ao alunos que confiaram em nós como ajudantes da formação.
Que venha 2016 cheio de coragem! E trabalho!
Abraço
Patricia Bader



domingo, 27 de dezembro de 2015

Cooperação



Primo pela coletividade: se todos estão razoavelmente bem, dificilmente alguém estará muito mal. Serve pra tudo e muito pro dia-a-dia.
Ir ao mercado, por exemplo; longe de ser uma tarefa prazerosa, porém obrigatória. Papel higiênico, pasta de dente, sabão em pó, cerveja gelada e a prateleira de guloseimas do armário não aprecem num toque de mágica. Não parece difícil, talvez um pouco trabalhoso, mas em bando tudo fica mais suave. Um empurra o carrinho, o outro organiza no cesto metálico, alguém carrega as sacolas e a marmitona aqui paga a conta na mais justa divisão de tarefas.
Só que antes do mercado, as pendências domésticas gritam por clemência: tirar a mesa do café, devolver a manteiga calorenta para a geladeira, garantir que o iogurte não vire ambrosia, dar uma lavadinha na louça, recolher o cocô do cachorro, varrer o chão da sala recoberto de micro pedaços de revista picotada pela mini fera, carregar o ipad coletivo, escovar os próprios dentes e pentear o próprio cabelo; tipo essas coisas.
Claro que a boa vontade de irem ao mercado, custou uma passada no shopping ( só pra ver quanto custa aquele brinquedo), outra na banca de jornal ( só pra ver se chegou a revistinha do X-man) e uma parada rápida naquela açougue gourmet ( só pra pegar uma paletinha de cordeiro, cê tempera pra mim? ).
Quase tudo pronto ( menos as toalhas molhadas penduradas nas fechaduras dos quartos e o lixo reciclável que tive que correr atras do caminhão), peço para terminarem de varrer o chão.
Claro mãe, pode deixar! Oh fulano pega a vassoura? Eu não, pega você folgado! Mas não fui eu que dei a revista pro cachorro! Nem eu! Ele que pegou! Então não sou eu que tenho que recolher. Você é muito folgado! Então pega a pazinha. Onde ta? Ta no lugar? E onde é o lugar? Você não sabe seu burro! Nossa, você pode pelo menos falar onde ta!  Vê se ta dentro da geladeira! Não ta! Já vi. Vai logo seu ridículo! Ridículo? Oh mãe! O fulano me chamou de ridículo! E você que me chamou de burro. É mesmo! Nem sabe onde fica a pazinha! Não vou mais recolher! Nem eu!
Tudo pelo bem coletivo.
Tenho certeza que seria mais fácil se tivesse pedido para desarmar uma ogiva nuclear. Fariam com rapidez e sem dificuldade, mas varrer o chão, ah! isso é muito complicado!


domingo, 13 de dezembro de 2015

De tudo

Diz minha avó que a angústia é o afeto que não engana. Não, minha avó não leu Lacan. Estudou até o fim do normal e foi ajudar no armazém da família; um comércio de secos e molhados que vendia ovos coloridos. Bastava fervê-los com anilina verde, azul ou vermelha e esperar pela freguesia. Era ovo com rabo de galo.
Depois o pai adoentou, ela casou, engravidou e continuou atrás do balcão, do fogão e do tanque. Não se queixava (muito) da vida. Seguiu até seis meses, exatamente na dobra do tapete do corredor; depois caiu, quebrou a perna e teve que trocar de osso aos 90!
A pouca anestesia para não sentir dor, pôs pra dormir um dos dois neurônios que ainda funcionavam. Acordou com um só tentando se ligar as memórias. Bala sem alvo, ricocheteava e atormentava o próprio cérebro.
Por falta do que fazer e um punhado de desespero, medicamos seu comportamento. O efeito é a presença silenciosa: sobra 40 kilos de pele alva e dois olhos esverdeados gotejantes. Então tira o remédio! Pelo menos reage! Voltou a mastigar e a proferir a frase: a angústia não engana.
Não há o que se ofereça para fazer sentido. Fica ali, um punhado de libido buscando alento na presença de algum objeto.
Pode ser medo de gente, de trovão, assombração. De barulho, do frio ou do calor. Do cachorro, da barata, do vizinho. Pode até ser medo da morte. Mas não é.
Acho que é medo de existir sem poder.

Me ajuda! Me ajuda! Tô com medo, com medo!
Medo do que, vô?
Não sei.
Não precisa ficar com medo, a gente tá aqui!
Me ajuda! Me ajuda! Tô com medo!
Do que vô?
Não sei.
Fica calma. A gente tá aqui, a senhora tá protegida.
Me ajuda! Tô com medo?
Do que? Vai passar. Vamos rezar um pouco. Depois ficar quietinha que o medo passa.
Me ajuda! Medo!
Do que vó?
De tudo.

sábado, 5 de dezembro de 2015

Uma reflexão sobre o trabalho

Dia desses tive uma discussão saborosa com as alunas do curso de aprimoramento. Sentimos, mutuamente, o desafio de compreender as nuances  dos aromas trazidos pela situação clínica. Consideramos nossos pontos de vista e, a partir daí, retomamos os textos e a construção do caso clínico. Trabalhamos.
A discussão tratava da perda do objeto: pensávamos se o impacto psíquico da ausência do objeto seria sentido de forma diferente, sendo permanente ou transitória. O abandono paterno teria semelhanças com a morte de um irmão? A demissão de um emprego seria vivida como a notícia de uma cirurgia mutiladora? O fim de um relacionamento ou a morte de um animal de estimação? A perda da confiança em um ente querido ou o roubo de um celular com todas as fotos e músicas escolhidas nos últimos anos? Enfim, falávamos sobre o valor de cada objeto no nosso ranking interno. Estudamos narcisismo, relações objetais e teoria do trauma. E seguimos assim.
No dia seguinte recebi uma pessoa para entrevista. Buscava a validação do psicólogo para realização de uma cirurgia bariátrica. Em geral, ofereço a palavra questionando a motivação para tal encontro. Então, estabeleço uma linha do tempo e anoto as variações de peso relacionadas aos acontecimentos. Contou, em pormenores, as alterações sofridas. Da adolescência a vida adulta ganhou peso paulatinamente. Ganhou mais quando começou a namorar, entrou na faculdade, arrumou o primeiro emprego, casou, morou fora do país, engravidou. Ganhou junto às conquistas. Perdeu apenas uma vez: quando recebeu a suspeita diagnóstica de uma doença grave.
Em casa, saída do banho, observou uma protuberância nas costas. Como vinha sentido dores , atribuiu a má postura, ao sobrepeso e ao sedentarismo. Passado uns dias, sem que o sintoma cessasse, procurou um médico no posto de saúde. Foi examinada e encaminhada para um especialista. Questionou o médico em relação ao diagnóstico: cauteloso, insistiu que esperasse a consulta com o colega. Mas demoraria, não teria agenda tão cedo, a ansiedade seria pior. Bom, diante da insistência e a ressalva de ser um clínico, dividiu as possibilidades com a paciente.  
Por razões, que talvez ela própria desconheça, optou pela pior. O acesso à informação desenhou o cenário mais tenebroso: doença grave, em lugar delicado, correndo o irisco de perder a mobilidade, talvez uma paraplegia ou a morte. E o futuro? O casamento? O trabalho? Os filhos ainda não tidos?
Todos objetos, reais ou imaginários, ameaçados por uma possibilidade. Perdeu  apetite, sono, disposição. Perdeu interesse pelos objetos valiosos: o trabalho, o namorado, os amigos, a família, o corpo. Gastou o resto de energia para cumprir as obrigações sem nenhuma afetação.
A morosidade do sistema de saúde manteve a incógnita por meses. Primeiro a consulta com o especialista, depois o exame demorado, mais um tempo para o retorno. Sua libido minava pela 5ª vértebra. Seus sintomas se acentuaram. Tinha dores, fisgadas, dormências. Tinha medo.  Na tentativa de estancar o vazamento, receitaram um anti-depressivo, um indutor do sono e recomendaram tratamento psicológico (com espera de 5 meses).
Quando enfim a notícia foi alentadora, estava magra, deprimida e medicada. A confirmação da benignidade e o descarte de uma intervenção cirúrgica operaram efeitos no seu humor. Aos poucos, retomou o interesse e o peso, tanto que se tornou candidata a cirurgia bariátrica e hoje, não encontra forças para emagrecer sem ajuda.
Pasmem, passado outros dias, uma moça, aflita com as questões do amor, desmarca a consulta: teria médico no mesmo dia. Conseguiu um encaixe de última hora e gostaria de resolver logo "esse" problema.
"Esse problema" foi tema da sessão seguinte: percebeu uma bolinha nas costas enquanto fazia massagem, agendou uma consulta para o dia seguinte, seguido de exames diagnóstico e retorno com o especialista. Era uma "gordurinha num lugar inadequado", nada preocupante.
Aparentemente o diagnóstico final era o mesmo. Os efeitos em cada sujeito, completamente diferentes.
A permanência da palavra duvidosa causou mais danos na primeira.
A ameaça, como um mar revolto, arrastou seus objetos para longe, mas os devolveu após o fim da tempestade.
" Ainda bem que não era nada mais sério, não sei se suportaria."
De fato não sabemos.
Mas sabemos pela clínica, sempre soberana, o quanto somos capazes de nos reinventar diante da dor, na mesma intensidade que somos capazes de sucumbir.
Esse é o nosso trabalho.
Abraço
Patricia Bader

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

" Eu tenho princípios, normas, ética, caráter" 
Das frases mais usadas pelos políticos corruptos. Parece grito de guerra de facção criminosa. 
Eu mesma tenho um carro popular 2014, flex, em ótimo estado, única dona. Também tenho 18 pares de sapato e 3 chinelos de dedo. Tenho um creme hidratante corporal aroma de macadâmia que é um espetáculo! Tenho uma panela de arroz que faz legumes no vapor e o super grill George Foreman que grelha o hambúrguer enquanto esquenta o pão. 
Ah! E tenho um suporte de celular em forma de mãozinha, mas esse eu não uso; não me adaptei. E um pote de Herbalife Baunilha, me deu gases. Aliás, se alguém quiser, manda mensagem inbox. 
Todo resto eu uso. 

Podiam fazer o mesmo.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

A função da hipérbole no processo de treinamento . Bader, P. 2015 Ed Homemade

Hipérbole é uma figura de linguagem, classificada como figura de pensamento. Comumente pode ser entendida como um jeito exagerado de contar uma idéia.
Estudos recentes associam o uso indiscriminado da hipérbole a traços  de rebaixamento do sistema simbólico, empobrecimento de vocabulário e, em situações mais complexas, a patologias narcísicas conhecida popularmente pelo nome "sou o centro universo".
Nota-se uso recorrente em populações específicas:  apresentadoras de programa infantis, apresentadores de noticiários sanguinolentos ,adolescentes com alterações hormonais, casais em conflito e funcionários insatisfeitos.
A protuberância expressiva revela um desajuste entre os fatos e os afetos experimentados (vide anexo1).
Pesquisadores da Universidade Carapicuiba VII demostram entusiasmo com os resultados dos testes clínicos. Observaram a remissão total dos sintomas em sujeitos que vivenciaram situaçôes verdadeiramente traumáticas, como: eliminação do BBB, pé na bunda e desemprego por motivo fútil.

Anexo 1.

Família típica adquire mini cão para felicidade de todos. Sqn. O bônus de pegar um baby e morrer de paixão pelas suas fofurices é compensado pelo ônus de acabar com a lombar de tanto abaixar para recolher produtos orgânicos não tão fofos.
Fato é, que nem todos estão tão contentes ; é incrível como um pet doll gracioso pode provocar fúria titânica.
Duas horas de convivência produziram o seguinte diálogo:
- Tudo bem por aqui?
- Claro que não! Esse bicho caaaagooouuuu a casa inteira.
- Toda ela?! (já pensando numa invasão jurássica que dominou os 350 mts de casa num pum exterminador).
- Ali ô, ali! No jornal. Que noooooojo!
- Aquilo!?
- É, um hoooooorrooooor!
- Sei. Parece uma minhoca com sobrepeso não um cocô com dimensões continentais.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Tolerância

Na última quarta fui almoçar com duas amigas. Era meu rodízio. Vesti uma mochila e peguei carona com meu marido; optei por resolver o dia de transporte público.  Me senti em Paris. Tomei café de balcão e li jornal de papel. Primeira parada foi num hospital; fui conhecer um bebê super investido pelo desejo dos pais. Me emocionei. Veio depois da morte do irmão. Cinco estações adiante, registrei minhas digitais para ser reconhecida como cidadã de outro mundo. Resolvi por um preto e longo e demorado para observar a pressa. Perdi a minha e caminhei quarteirões até achar o que fazer. Achei ilusão de civilidade bem ao lado de um mendigo comendo seus restos. Achei minhas amigas. Estávamos com saudades; fomos impedidas pelos excessos: de trabalho e de problemas. Tomamos água, com gás e comemos alimentos, de qualidade. Tinha uma torta cremosa de cogumelos, divina. Tinha um rapaz, Felizardo?, talvez angolano?, aprendendo o trabalho de servir. Fez bem. Ah! E teve um contra o tempo de respeitar. O manobrista, gentil, que trouxe o carro da minha amiga, era o mesmo que pegou o carrão do homem robusto. O carrão também era robusto, mais do que a faixa da ciclo faixa. Na faixa vinha um ciclista. Tivemos pressa, não o suficiente para ele passar. Parou, praguejou com o manobrista, com o homem e com a gente, bateu. Chutou o carro com força e ódio e fugiu. Achei covarde e machista. Trememos um pouco, um pouco indignadas, um pouco achando que na Europa é diferente. Peguei carona, precisávamos resolver mais trabalho. O meu foi escutar a (in)satisfação. Precisei atravessar a rua; usei a faixa, de pedestre. Nem sempre funciona, parece que alguns não aprenderam o código. Aprendi na Europa, basta levantar a mão, assim pra frente, que param. Não funcionou. O moço do carro grande que não entendeu o sinal, levantou o dedo médio e apontou para mim. Eu entendi, ainda que não quisesse me fuder. Respirei fundo. Na Europa ... pensei. Agora pouco, assustada com a condição daquela gente enlameada de veneno de rico, tomei um susto. Outro?! Cravejaram balas de morte na cabeça de gente inocente. Porque sair de casa, a noite, de metrô, com 9º marcando os termômetros para ver show e tomar vinho é coisa de gente inocente. Minha mãe sempre falou: toma cuidado, pode ser perigoso. Mas não em Paris! Pra lá pode até levar os meninos; adoraram a última viagem. Talvez se confundiram com o jogo do video-game e dá pra iniciar e todos se levantarem e. Não dá. E sabe o que meu filho perguntou: ohmãe, o que significa tolerância? 

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

E se?

Faz um mês que sigo a dieta para chegar no ideal, aquele que passou há 10 anos. É corrida de escada rolante, da que sobe querendo descer. Amanhã é dia de festas. Tem de bruxa, com bruxas e uma que não sei bem de quem é. Comprei balde laranja, dentadura de vampiro, sapato de verniz com salto confortável. Marquei cabelo e cílios postiços. E abri uma cerveja. Cigarro eu roubei da amiga, só um, querendo três. Pretensão de acordar cedo, andar e fazer pontos para poder ... querer o que quiser. Mas o que quero é poder dormir, até tarde, até que a insônia vença o despertador. E que a seleção deprimente me faça chorar (e amar).     E lembrar, e se? E se eu perde a hora?  E se eu escrever? E se eu adiar? E se eu morrer? Eu não quero morrer. Quem quer? Conheci uma história que parecia querer; era de um tanto de mentira que fazia qualquer um acreditar. Pena que deixou pistas desvendando o segredo. Era de bebê, dessas que faz comover. Aliás, tem dia que só faz comover. Ontem mesmo, presa no viaduto apertado, daqueles que dividi pista com ônibus e motoqueiro, parou um carro na frente. Carro popular, sem blinde, de gente trabalhadora e desconfiada. Perguntou pro rapaz se queria ajuda. A tiazinha vinha desmaiando desde lá o começo do viaduto. Nem vi. Estava preocupada com nada: com os emails, com o facebook, com as ligações do trabalho. O rapaz aceitou. Pegou a senhora no colo, carregou no banco de trás e partiram. O dono do carro me acenou, grato pela paciência. Chorei em cântaros. Só um imbecil reclamaria da espera, só um imbecil reclamaria do trânsito, só um imbecil perderia tempo no viaduto vendo email e ligação e facebook. Só eu. A tiazinha não queria morrer, deu pra ver do jeito que desfalecia. Quem quer morrer fecha o olho e morre. Não desmaia pedindo ajuda. Parecia o bebê. Não quer morrer. Chora baixinho, tão quieto que só quem ama consegue ouvir. Eu quase. E depois de um ou dois afagos na testa, desses que parecem abraço apertado no colo proibido pelo tubo de oxigênio, dorme. Graças a Deus! Não quero dormir. Quero ouvir a música mais uma vez. Já foram dez. E daí? Que sejam dezenas. Meus filhos dormem, serenos. Meu marido dorme, cansado. Os peixes acho que não dormem. Continuam boiando, parece que prestam atenção na música. É bonita. Fala em outra língua. Numa que sei um pouco, noutra que queria aprender antes de morrer. Não sei bem pra que, talvez pra dizer on dit que le destin se moque bien de nous. Será? 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Minha casa é dividida em 7 cômodos grandes e 7 pequenos.
Os maiores têm, em média, 6 tomadas e os menores 3.
Lembrando do quintal, do jardim e dos benjamins, contamos com cerca de 70 tomadas.
Quando reformamos a casa, pedimos pro Eduardo, o Thomas Edison de Osasco, buracos disponíveis nos lugares mais improváveis. Consideramos os enfeites de Natal, os televisores extras, os ventiladores e ar-condicionados para enfrentar o verão tropical, as torradeiras, batedeiras, caixas de som, aquários e tomadas repelentes.
São tomadas que não acabam mais.
Na suite do casal 4 delas se espalham pelos criados mudos: são 2 para mim e 2 para o meu marido.
A conta de luz, por motivos político-econômicos, saltou para 200 reais mensais.
Tentamos economizar. Esclareci com as crianças, com a empregada, com as visitas recorrentes a necessidade de redobrar a disciplina ecológica.
Se acendeu, apague. Se abriu, feche. Se ligou, desligue.
Obtivemos algum resultado; tímido em vista do débito automático.
Sendo 200 ou 50 reais, os kilowats gastos por tomada é o mesmo.
Se usado com parcimônia, podemos manter o carregamento dos eletrônicos em tomadas diferentes.
Minha pequena estante acumula um contigente de objetos maior que a marginal Tietê em véspera de feriado: tenho uma luz de leitura, o único telefone com fio, meia dúzia de livros inacabados, um amarrilho de cabelo, o carregador de celular, uma garrafa d'água e meus óculos. Devido a superlotação abro mão dos controles remotos.
No entanto, minha liberdade termina onde começa a folga do resto dos habitantes. Expliquei que, embora pague a conta, não tenho privilégios energéticos.
Não entenderam.
Hoje meus livros disputavam lugar com 2 Ipads, 3 celulares e uma bateria de carrinho de controle remoto.
Se não estou enganada, sinto cheiro de queimado ...

domingo, 4 de outubro de 2015

Cap/Niple

Das maiores diversões detrás do balcão: gostava de maquinar com os clientes estratégias e soluções com os tubos e conexões.
Nas horas vagas, criava engenhocas com as peças de lego. Desenhei letreiros para os lugares da loja, criei cadeira de criança, suporte para balanço, brinquedo de gato.
Longe de ser talentosa, a meu favor tinha a filiação: gastava peças e peças sem a cobrança do chefe, dizia: quando acabar coloca tudo no lugar.
Nunca devolvi. Presenteava, esquecia no porão; o que dá nome ao caixa esta lá,  já se foram 25 anos.  
Trabalhar na loja revelou-se um treino para o que seria minha profissão. Aprendi a lidar com o público, a artimanha em desvendar pedidos, o manejo em conciliar prazos e o valor da barganha.  De mais importante ficou o cumprimento firme das mãos e o olhar interessado; era assim que começávamos os atendimentos.  
Das peças disponíveis nas gôndolas, duas chamavam minha atenção: o cap e o niple. Embora de todos os tamanhos, os mais procurados eram os de medida 3/4. Tratam-se de pequenas tampas para cessar vazamentos inoportunos. Salvo os encanadores mais experientes, os clientes interessados eram figuras tomadas de sobressalto por algum desastre doméstico.

- Eu queria uma pecinha, assim pequena, para tapar o buraco do cano.
- Fui consertar o vaso e furei aquela mangueira que fica atrás, sabe? Preciso de um negócio para fechar, tem?

Foi assim que descobri o cap/niple.
Só que cap/niple são dois, o que torna a conversa mais complexa.
O cap parece uma cuíca, liso por dentro, serve ao encaixe. Para fixá-lo basta uma lixada na ponta do cano protuberante e um pouco de cola. Depois de seco, suporta a pressão da água, louca para vazar.
O niple serve a mesma função, mas é diferente. Parece um super parafuso anão,  vestido com um chapéu hexagonal. Sua rosca externa, encapada com uma fita de vedação, deve ser rosqueada na parte interna do cano.  

- Cê quer um cap ou um niple?
- Como?! Eu quero uma tampinha para fechar o buraco do cano.
- O cano tem rosca por dentro ou é liso por fora?
- Sei lá. Quanto custa cada um?
- 3 reais
- Ah! É barato. Então da um de cada, lá eu vejo.

E assim eu sempre vendia a dupla cap/niple.

...

Quando alguém procura um analista, no mais das vezes, esta com um vazamento no circuito pulsional.
O buraco pode estar na fonte, no percurso, no objeto final ou mesmo na função. Pode ser um pedaço quebrado da carne, uma fantasia obstaculizando o caminho, a perda de um objeto valioso ou até mesmo, uma total falta de sentido no propósito.
Em geral, desconfiam do local do vazamento, mas dada a complexidade do sistema, raramente conseguem resolver o problema sozinhos.
Por ilusão e desespero de causa, acreditam que possamos ajudá-los.
Quem nunca?

- Oi, tenho um vazamento (que escoa angústia por todos os lados) e preciso de uma peça, aquela, assim, pequena, sabe?! Para tapar meu buraco ( senão todo o resto será corroído pela acidez). Você sabe qual é? Tem uma aí?

(In)felizmente não temos. Se tivéssemos, talvez a vida fosse mais fácil, embora, certamente, mais sem graça.
O que seria das produções artísticas, dos romances, dos poetas. O que seria das mesas de bar, das conversas sem fim, dos consolos.
Nada.
Seriamos um pântano plácido de bem estar, sem modulação afetiva. Uma massa bi-polar experimentando um pouco de alegria e um pouco de descontentamento.
Dos sabores mais inóspitos, viveríamos de regime divididos entre a gelatina diet e o biscoito de arroz.
Mesmo quem vende a promessa de apaziguamento, sabe da mentira embutida no produto.
Os fregueses, aflitos pelo caos interno, compram, pagam caro, abrem mão de pequenos prazeres, na ilusão de manter o controle sobre seus (des)afetos.
Tentam ajustar a dose, como a velha pitada da receita, e dificilmente encontram o sabor exato.
Cabe a equipe de trabalho seguir questionando as especificações do cano: com rosca, sem rosca, interna ou externa. Propor a compra de instrumentos que ajustem o tamanho do buraco: lixa, cola, veda-rosca.
E, eventualmente, reconhecer que ali, onde existe um vazamento, existe também uma possibilidade.

Estou padecendo de falta de tempo. 
Minhas inspirações duram um gole, logo depois, preciso respirar. 
Pareço os bebês prematuros, esquecidos que a garganta serve as duas funções. 
Ficam afoitos pelo leite e ignoram o ar, esse trem sem forma, gosto, volume, 
Voz. 
Sim, porque leite tem voz; preso na ponta, uma mãe sedenta por esvaziar. 
E fica gritando baixinho: mama bebê, mama. 
E com mania de atender aos apelos maternos, mamam. 
Parece mágica: encontram ritmo apoiados na fala da mãe, como faz a marcação do compasso entre a melodia e a letra. 
Quando afinam, parecem feitos um para o outro. 
...

Queria mais tempo para escrever, queria mais tempo para pausa obrigatória.

10+

Sou isca fácil daqueles anúncios 10+ da internet.
Disse meu filho adolescente que isso chama spam.
Que seja.
Lá estou, xeretando  a vida alheia, culpada pela distância do romance inacabado, do tempo roubado do estudo do conceito do objeto a do Lacan ou mesmo de uma conversa espontânea com os filhos, quando sou abduzida pelo anúncio dos 10+.
Alguém, certamente mal amado que sofreu bulling constante durante toda infância e adolescência, ganha a vida atormentando meu intervalo de alienação.
Não sei vocês, mas eu sou capaz de perder a noite de sono se não abrir o anúncio "os dez lugares mais sujos do avião". Pelo menos uma passada de vista preciso dar, senão aquilo gruda no meu cérebro igual música barata, capaz de impedir vôo de ponte-aérea.
Quando acabo a leitura, após a grande descoberta de que a privada é o lugar mais sujo, me sinto uma otária.
Só que aí, assim que clico no x da página, entra como uma enxurrada uma série de 10+.
Os 10+ alimentos para emagrecer, lá vou eu descobrir que um mix de quinoa, linhaça, chia, aveia em farelo, grão e farinha contribuem para a fabricação de massa fecal de qualidade.
E tem os 10+ perigos ocultos na cozinha, os 10+ produtos tóxicos na lavanderia, as 10+ bactérias super potentes, as 10+ utilidades para a pasta de dente, as 10+ cidades exóticas do mundo.
Me espanta o tamanho da minha vulnerabilidade; o valor de troca  da informação adquirida na lista é o mesmo do Real em Miami.
Até tento dividir com os próximos-íntimos, tipo filhos e marido, mas o máximo que consegui foi virar motivo de chacota.

- La vem a mamãe10+.

Resolvi dar um basta.
Confiante da minha força de vontade e determinada a mudar, prometi passar longe das listas.
Até que deu certo, mas vocês viram o vídeo da extração do maior cravo do mundo?
E os perigos oferecidos pelo copo d'água ao lado da cama?
E que dormir pelada emagrece?
E as fotos da Thammy Miranda sem camisa?

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Choveu

Não sei vocês, mas eu não esqueci o dia de ontem.

Sempre acho que tem dedo de Deus nessas sacanagens.
Não é justo juntar no mesmo dia TPM, terça com cara de segunda, alagamento e falta de luz.
Se esse lago não subiu, eu prometo deixar a torneira (da vizinha) gotejando a noite inteira.
Fui jaculada do feriado para agenda repleta de compromissos. Dos três dias, sacrifiquei um.
Estimulada por amigas de má índole, comprei um kit detox a million dolares composto por seis sucos multi coloridos. Esteticamente lindos, todos tinham gosto de salsão (e eu odeio salsão).
Fiz o que tinha que ser feito: fui na festa da prima na sexta (samba, cerveja e churrasco), organizei o almoço gourmet no sábado (com bichos exóticos tostando no forno a lenha) e domingão me afundei no tal do detox. Pedi licença a família e ficamos, eu e meus livros, isolados.
As seis, antes de ingerir a garrafinha bordo número 5, meu humor já estava azedo. Escondida de mim, mastiguei 3 castanhas de caju murchas encontradas esquecidas no fundo do armário e fui dormir.
Estávamos no breu, na selva e numa grave hipoglicemia. Não havia luz, dignidade, nem carbo.
Acordei na segunda assustada com o ronco do meu trato gastrointestinal, mas como sou fina, fingi indiferença. Preparei uma xícara de 500 ml de café americano (super chique), uma torrada com cottage e me entreguei as notícias (li do nome do editor chefe ao obituário) já pensando na hora do almoço; segui firme no propósito. Fui ao trabalho, peguei um cineminha, jantei com parcimônia.
Mas aí veio a terça.
A terça começou úmida. Num primeiro momento gerou contentamento, post no facebook, nariz sem cajoca de ar seco. Só que a umidade deu lugar a ação do El Ninõ. Choveu com fé o dia inteiro. Choveu e ventou e todos os semáforos foram desligados e todas as árvores caíram. E o trânsito ficou o óh.
As reuniões atrasaram, a fome invadiu as células mitocondriais do meu corpo e a oferta disponível era salada de beringela (tenho certeza  que sobrou no freezer do hospital), pão com patê de frango e pavê de pêssego enlatado.      
Comi de desaforo pelos sucos, pelo congestionamento, pela variação hormonal, pelo homem sírio chorando carregando a filha no colo. Comi, mas tomei coca zero;1 litro.
E aí acabou a luz as 4 da tarde. E todos os pacientes, a partir deste horário, desmarcaram. E eu entendo. Entendo, mas vai batendo um mau humor.
Mau humor porque aquele francesinho pedante do Lacan vivia em Paris e em Paris não tinha trânsito, alagamento, queda de arvores, marginal interditada. Ai fica fácil teorizar e dizer que a falta é problema do paciente. "Trás pra análise o sentido da falta. Interpreta na transferência".
Eu vou é trazer pra análise o prefeito, o governador, o diretor da Sabesp que não fizeram nada direito. Vou trazer pra análise e convidar pro cozido.
Porque amanhã farei um cozido típico da região de Carapicuíba. Chama Cozido do Freezer Descongelado. Porque a Cantareira não encheu, mas Osasco submergiu, deu-se o apocalipse e o freezer descongelou.
Justo no dia que o açougue entregou o carregamento da quinzena.
Tem filet de frango, bisteca, linguiça, carne em bife, moída e para estrogonofe. Somada as porções de feijão carioca, fradinho e branco vira Cassoulet da periferia.
E hoje ainda não acabou: nem o Cassoulet, nem o caos.
A escuridão impera. Dos 20 semáforos disponíveis na região do Jaguaré, 19 estão apagados; 1 caiu. Um padre foi atropelado fugindo da escuridão de batina preta, usando um guarda- chuva preto. O guarda da rua fugiu, de medo. O shopping fechou, o mesmo aconteceu com a padaria, a pizzaria e a lavanderia do seu Jun.
Não veio mais chuva, tão pouco o sol.
E a previsão continua encoberta.
Fala se não tem dedo de Deus?!




 

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Sabe aquele moço, com nome comum e sobrenome famoso? Parece alemão porque enrola a língua pra falar. Aquele que tem prédio bonito ali na marginal? Desses com árvore plantada na parede.
Lembra?
Não!?
Aquele que foi convidado a prestar esclarecimentos sobre corrupção, lavagem de dinheiro e fraude a licitação contra a ordem econômica? Lembrou?!
Então.
Ontem ele versou meia dúzia de palavras para dizer que não tem nada a dizer.
Tá no direito.
Forçaram a barra barganhando benefícios; algo do tipo "se você falar a verdade eu te perdôo" ou "é nobre reconhecer os erros".
Continuou calado.
Tá no direito.
Mas o que disse merece reparação: falou que na sua casa, com as meninas (suponho filhas), quando ocorre uma briga e pedem ajuda, informa que não pretende saber quem começou, pois teria mais bronca do delator do que o culpado.
Pois bem!
Tá no direito.
Afinal cada um cria os seus como lhe convém.
No entanto, quando as crianças se metem em briga, cabe ao adulto avaliar se as mesmas têm condições de resolver o conflito sozinhas, se não existem terceiros envolvidos, se não há prejuízos significativos e se estão aptas a processos de reparação - tipo um breve exame de consciência para pedir desculpas, devolver o brinquedo, dar algo em troca.
Em geral precisam de ajuda, de modelos e, as vezes, dos benefícios da delação premiada; não por serem criminosos, mas por serem pequenos infratores em construção subjetiva (ou seja, crianças em formação), desafiando os limites do certo e do errado em troca de amor e reconhecimento.
No mais, a vida segue cheia de direitos.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Dos impasses do dia



O médico informa a família a condição delicada do paciente. A esposa entende que o melhor seria oferecer medidas de conforto; o filho exige investimento absoluto. 

O eletricista liga solicitando a compra de 1 rolo de fio 4mm, verde. 

O contador avisa que o DARF dos últimos anos foi calculado errado. Preciso pagar até amanhã o equivalente a um mês de salário. 

Meu filho questiona a mistura do dia: prefere bife a carne de panela. 

O aluno pede ajuda no caso da jovem que se auto mutila. Ela exige sigilo e segue em risco. 

O paciente avisa que acabou o papel higiênico. 

O outro filho tem dúvidas sobre fração: 2/4 é o mesmo que 1/2? 

A equipe solicita avaliação: paciente foi diagnosticado com AIDS, mas não quer conversar com a esposa. 

A mãe do aluno pede ajuda: é possível que meu outro filho seja autista? 

Meus filhos pedem ajuda: de quem é o último açaí? 

Meu marido propõe: consegue cabular trabalho amanhã a tarde? 


Impasses
Tenho dificuldade para entender a indignação dos políticos sobre o orçamento (negativo) de 2016. 
Tenho mais dificuldade para aceitar o fato, dos mesmos políticos, capitalizarem sobre a dita transparência orçamentária. 
Tenho ódio de bandido que corta salário do povo e preserva o salário dos seus. 
Também tenho orçamento negativo e, ser transparente com meu chefe, com o gerente do banco ou com o meu marido, não adiantou nada. 
Meu chefe pediu paciência, meu gerente foi fofo a 15% de juros ao mês e meu marido disse: "fudeu!"

#naotafacilpraninguem

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

47ºC

Pesquisadores siberianos (na verdade apenas dois) descobriram a existência de uma ligação cromossômica (e inédita) entre o ego e o intestino grosso. 
Após acompanhar 34 pessoas (o equivalente a população local), durante 25 anos (alguns congelaram durante o processo), concluíram que a inflação egoíca está relacionada ao processo de fermentação ocorrido nas alças intestinais. 
Mesmo diante da indignação do psicanalista local, idealizador do movimento O EGO E AS PRIMEIRAS RELAÇÕES OBJETAIS, os resultados ganharam destaque na imprensa internacional. 
Vostok Balalaika e Yuri Smirnoff identificaram discretas ramificações presentes nos portadores do 47º cromossomo, responsável pelo trânsito de gás carbônico produzido no processo de decomposição do amendoim japonês com a cerveja. 
O 47ºC (como foi batizado) liga a terça parte do intestino com o lobo frontal (vulgarmente chamado de testa), área responsável pelo planejamento, possível morada do ego. 
Pelos odores (e pelas barbaridades pensadas pelos sujeitos da pesquisa) , concluíram que o uso abusivo de alho, feijão e whey protein, deflagrou casos de surtos narcísicos severos.
Embora satisfeitos com os dados obtidos, Balai e Noff (como são conhecidos no meio cientifico) demonstram preocupação em relação ao tratamento proposto. 
Utilizaram doses regulares de simeticona (remédio para pum) e, mesmo com flatulências poderosas e fétidas, não observaram o esvaziamento do ego.   
Nos casos mais graves, associaram o uso de laxativos. Para surpresa dos pesquisadores ocorreu uma deflação intestinal e um superávit egóico com pacientes dizendo frases repetidas de forma compulsiva: "Porque eu? Alguém tão importante, bondoso e modesto como eu! Exijo meus direitos! Vocês sabem com quem estão falando?!"
A hipótese inicial aponta para uma fragilidade na vesícula protetora do ego (expressa pelo medo de deixar de ser o centro das atenções), somado a um enrijecimento nas paredes super-egóicas (expresso pelo rigor, conservadorismo, e preconceito, incapaz de promover compaixão e solidariedade). 
O tema será tratado no I Congresso Mundial de GastroenterologiaPsiquiátrica em 2016 na Universidade Johns Hopkins. 
Como, você não sabe onde é?! 

Abaixo fragmentos do estudo. 

Caso 1.  

Maria Antonieta, 57 anos, separada, funcionária publica, trabalha com atendimento ao usuário do sistema de saúde. Dia desses uma mulher, mãe de cinco filhos, domadora de ursos polares e moradora da periferia (da Sibéria), foi ao posto local buscar agasalhos para as crianças, oferecido pelo estado. Ao preencher a documentação percebeu que havia esquecido o número do RG do terceiro filho. A atendente ficou bastante enfezada e começou a gritar com a mulher. Sentiu-se agredida, jurando que o esquecimento havia sido proposital.
Maria Antonieta é portadora do 47ºC.

(Em resposta as acusações, a usuária comunicou que de fato, havia acordado as 4 da manhã, cerrado doze blocos de gelo, amansado 3 ursos famintos e cuidado de 5 crianças pensando, unicamente, "como faria para foder com a vida da Maria Antonieta" (sic). Encerrou o processo sugerindo a Maria "enfiar o casaco no rabo").

Caso 2. 

João Bonaparte, 60 anos, segundo casamento, 3 filhos (1 do primeiro e gêmeos de 3 anos do segundo), executivo da área financeira, amigo de políticos, 4 passaportes carimbados, 5 continentes visitados, dono de carro importado , adega climatizada (ao ar livre, lembrem-se que o estudo foi feito na Sibéria) e  motociclista eventual (quando de férias no sul da Espanha). 
João tem hábitos notívagos e prefere trabalhar até tarde. No entanto, a empresa funciona em horário comercial. Isso não impede que determine aos funcionários que  permaneçam fora do expediente. 
Dia desses, Rubens, 65 anos, motorista da empresa há 40, aposentado, porém ativo pela necessidade de complementar a renda familiar, informou o chefe que precisaria sair mais cedo. Questionado sobre o motivo, disse que gostaria de participar da formatura do neto mais velho. 
"Pô Rubão, justo hoje que tem Moscou e São Petesburgo, jogaço! Combinei de tomar umas vodkas com os camaradas e vou precisar de você, senão coméqueuvou?! O moleque não vai nem perceber. Toma aqui uns trocados e compra um presente."
João Bonaparte é portador do 47ºC.

(Em resposta Rubens concordou em ficar para levar o chefe ao jogo. Pediu licença para arrumar o carro. Introduziu dois ovos podres no escapamento e tampou hermeticamente. Na parte interna, derramou leite azedo, postas de peixe -fresco e soltou dois porcos selvagens. Manteve o motor ligado e partiu para a formatura do neto.)


Algumas universidades manifestaram interesse em validar a pesquisa por aqui. Interessados in box.

domingo, 16 de agosto de 2015

Dei entrada na vida amorosa aos 12 anos. De lá pra cá enfrentei 8 paixões, 5 finais voluntários, 2 impostos e 1 casamento (duradouro).
Em nome da saúde mental, estipulei períodos de entre safra. Nessas épocas, mantinha a regra fundamental ativa: distância de grandes envolvimentos. Muito beijo na boca, romances fortuitos e fugazes, embora capazes de restos saudosistas. 
Comecei a namorar numa era pré-tecnológica. De avanços tínhamos caneta Bic, cartão do Garfield e fita cassete. Renderam uma coleção de declarações em formato de bilhetes, cartas, cadernos de recordação, fotos únicas enviadas de lugares distantes: "Pra você lembrar de mim". 
Os principais amores ganharam trilha sonora; fundamental para manter os resquícios. Guardo na seleção atual, uma playlist " dias de desolamento", as vezes faz mais efeito que corrida no parque, pote de sorvete ou Rivotril (principalmente após os 40). 
Tive a sorte (e um pai bravo pra caralho) de iniciar os desfechos. Penso que faz diferença dar um pé na bunda antes de tomar ( principalmente aos 13 anos); não que tenham sido fácil. Por alguma razão desconhecida, preferia os namoros longos, desses que impõem uma intimidade dura de superar, transformando fins em sacrilégios. 
Fui de algoz a vítima, mas conservo com carinho todas as estórias. 
Tive fins mais emocionantes, recheados de suspense, choros e velas, desconfiança, caixa de presentes abandonada na porta de casa; com tentativa de volta, sem nenhuma possibilidade. 
Outros mais brandos, com aperto no peito, gole seco e a cruel certeza do nunca mais. 
Sofri, o tempo exato de enxugar a lágrima com o mesmo lenço que retoca o batom. 
Pude me despedir de todos, até dos distantes - amores difíceis. 
E pude gastar com as amigas, todas interpretações dos tons e entonações das vozes, das vírgulas dos textos, das batidas da porta do carro, que fosse para confirmar o óbvio: o amor havia acabado. 

...

O amor (de um) acaba e, se acaba, é porque tem outro forçando a entrada. 
Porque amor não pode acabar. 
Ele é responsável pelas cartas, pela poesia, pela eterna inspiração. 
Pela vida e pela morte; pelas trilhas sonoras. 
Pelos acasos e combinados. 
O amor responde pelo sol, pela contemplação e pela superação. 
O amor garante o encontro e a busca e o re-encontro. 

...

Escrevo tocada pela devastação tecnológica em relação aos términos. 
Escuto - na clínica, na universidade, nas conversas de bar - o fim do glamour do último encontro. 
Mandam mensagens criptografadas por celulares e, ato continuo, bloqueiam os pares de suas listas de contatos. 
Não pode minha gente! 
Quem não leva a paixão a cabo, passa a vida assistindo trailer. 

#pelasrelacoesaovivo

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Cacoetes

Na última reunião interminável de metas, medições, indicadores e como salvar o Brasil que participei, gastei tempo observando as diferenças de cacoetes entre os gêneros.
Mulheres mexem no cabelo. Penteiam com a ponta dos dedos, sempre mais de duas vezes, mas nunca mais de três; fica oleoso. Põem de lado com mãos alternadas, amarram e desamarram, freneticamente, fazem coque preso no próprio cabelo, prendem com caneta e acariciam as pontas em movimentos circulares.
As vezes coçam o couro, mas disfarçam com uma ajeitada final. Algumas depositam uma mecha atrás da orelha e aproveitam para coçar. Quando decididas, jogam todo o volume para trás dos ombros e encerram com uma puxada da gola da blusa.
Algumas dispensam os que caem no chão, revelando desprezo e insatisfação. Também cutucam esmalte e canto de unha. Cutucam e olham e olham e cutucam até sangrar. Se sangra, chupam até estancar e começam tudo de novo.
Cuidam, cautelosamente, dos adornos. Anel foi feito para tirar e por e olhar. Colar para alinhar, buscando o local do fecho e colocando no eixo central da nuca. Para as de sobrancelhas grossas, vale penteada istmo distal, sempre de ambos os lados.
Um pouco mais abaixo, delineiam o traço dos olhos em busca de lápis borrado. Conferem a ponta do dedo e liquidam vestígios esfregando o indicador ao polegar. Outras buscam pequenas imperfeições e tentam elimina-las com as unhas. Disfarçam com o cabelo, a unha, a maquiagem ou com semblante de incômodo como um resquício de gripe ou um ataque de rinite.
Quando o cacoete envolve o olho, a boca se abre para manter o equilíbrio. Olham o pé, mais exatamente o sapato. Olham e flexionam as pontas dos dedos para cima e para baixo e finalizam com uma rotação ida-e-volta no tornozelo. As pernas cruzam para o lado oposto e repetem a seqüência. A cabeça permanece levemente inclinada e, de tempos em tempos, reorganizam a postura e mantém rosto ereto fixo no objeto, até a primeira mecha de cabelo sair do lugar.
Se houver caneta em mãos, se tornam malabares. Giram, coçam, cutucam e finalizam com a ponta debruçada no lábio inferior. Os óculos são menos manuseados, as vezes ajeitados pela arrebitada na ponta do nariz. Se papéis, rabiscam. Se bolsa, arrumam. Se água, tomam goles intervalados, sem fazer barulho. Já os homens ... em geral encontram uma posição e permanecem, estáticos. Pequenos movimentos foram encontrados: seguram o queixo com a polpa da mão e um ou dois dedos espalmados na bochecha dão suporte. O indicador, por vezes, escorrega sobre o lábio superior. Estacionam por ali fazendo movimentos sutis de vai e volta. Cutucam o rosto, sem preocupação em disfarçar; as vezes cheiram as pontas ou coçam o nariz precipitando o dedo no início da caverna otorrina. Ainda no rosto, retiram os óculos, esfregam a testa com vigor e apertam os olhos para depois arregala-los. Raramente mexem nos cabelos (mesmo os que os possuem), mas todos acariciam a barba, bigode, cavanhaque ou quaisquer outras possibilidades de pêlos faciais. Nas pernas, cruzam apoiando o tornozelo nos joelhos e ficam. A cada 40 minutos invertem a posição. E só. Talvez vire pesquisa. Ademais, não concluímos nem as metas, nem as medições ou tampouco os indicadores. Agendamos novo encontro para alinharmos as decisões inconsistentes; alguém ficou de mandar um email com o escopo e os prazos. Seria na primeira segunda de cada mês, dado o feriado de setembro ( dia da independência ?!?) adiamos para outubro. Quanto ao Brasil aguardo notícias da reunião prevista para hoje, cogitam reunificação as origens. Ora pois!

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Segunda, por si só, já é um dia cabalístico. Cheio de sentidos ocultos que nos obriga a começar. Hoje, especialmente, começaram as aulas das criancinhas, da faculdade, do curso extra de línguas, dos treinos de tênis. Aproveitei a energia (sqn) e comecei: ginástica, a dieta da sopa e a pesquisa para (aquele interminável) artigo científico. A missão: levantar publicações sobre avaliações psicológicas (argh!) em hospitais e indicadores de qualidade (argh!) do nosso trabalho (argh! argh!). Separei 20 resumos recentes sobre o tema. Achei um pouco de tudo: pré operatório, durante operatório, pós operatório; com stress traumático, sem stress tão traumático; com idéias malignas e atos malignos. Mães de primeiros filhos, segundos e ninhadas. Pessoas com doenças de A a Zinco e, por fim, a turma do acima do peso. Decidiram - não me perguntem porque - pesquisar como anda a vida sexual das mulheres (obesas) que pretendem operar o estômago. Três dados foram analisados: peso, idade e estado civil. Bullshit travestido de ciência. Perguntar coisa que valha ninguém considerou. Quero ver cruzar "quanto tempo você tem para cuidar das suas coisas?" com "seu salário é satisfatório?" ou "quando foi a sua última ida ao cabeleireiro?" com "indique as três últimas capas da revista Caras?". Isso ninguém faz e depois vem botar banca de doutor! No alto da minha master expertize (mini currículo: pesquisadora, psi, mulher, casada, semi-jovem, plus size, sexualmente ativa e escritora de bobagens), teço considerações: Primeiro: puta tema preconceituoso. Segundo: hipótese preconceituosa de que gordinhas não trepam. Terceiro: encontraram o óbvio e pagaram de bem intencionados dizendo que a pesquisa pretende ajudar a diminuição do preconceito e preparar melhor essa (argh!) população para diminuir a expectativa em relação a cirurgia. Desserviço. Vamos aos dados: mulheres mais novas e magras relatam maior satisfação do que as mais velhas e mais gordas ; as solteiras relatam maior satisfação sexual que as casadas. Bom Creonice, aí a gente pode pensar que as razões são outras, né?! Primeiro que pessoas quando mais jovens tendem a serem mais magras (menos a minha avó que despencou dos 60 para os 45). Segundo, que gente com variedade amplia os parâmetros de comparação (visto a fartura de comida no self-service ) e, portanto, apresentam índices de satisfação mais elevados (experimente ficar no arroz com feijão todo dia para ver o que te acontece quando cruzar com um filet a parmegiana). E por fim, que tempo livre para a turma da idade + casamento (e todo o arsenal) + sobrepeso é artigo de luxo. Portanto, serviu pra nada. Uma dica (antes de medidas mais radicais): separe um tempo de relógio para você, gaste tempo dando risada, faça sexo sempre (gorda, magra, nova ou velha, solteira ou casada) e por fim, boicote qualquer tipo de obviedade, ninguém sabe mais de você do que você mesmo.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Veja o perigo. Devo a operadora de celular R$ 42,37. Digitei corretamente, checadamente, uma, duas, três vezes o código de barras. Deu errado. Apareceu no lugar, um boleto com vencimento em agosto, no valor de R$ 75.000.347,12. Imagina se eu autorizo por engano! Agora me diga Creonice: que porcaria compraram nesse valor?!? Casas, carros, viagens ou um naco da Petrobrás?
Os entendidos no ramo da literatura desaconselham a marcação precisa do tempo. Dizem que os bons escritores são capazes de preencher um instante com a descrição detalhada da cena. Mal sabem os entendidos a falta que faz um intervalo cronológico em algumas narrativas. Hoje, por exemplo. Convidei a família para apreciar um novato na culinária doméstica: arroz com vôngole. Espetáculo! Cebola, alho, pimentão amarelo picados no bico da faca. Tomate sem pele, azeitona em lascas, açafrão espanhol para colorir. Vinho branco para acentuar o sabor e um perfumado caldo de legumes caseiro para cozer os ingredientes. Prato para paladares refinados, não fosse a presença de criancinhas pentelhas, com cara de nojo, para a iguaria feita com tamanha dedicação. "Eca! Não gosto dessa comida!" A idéia inicial seria matá-los (de fome), mas diante do sol, da cerveja gelada e da promessa dos instantes de paz degustando o prato, aceitamos buscar um frango assado no boteco da esquina. Foram exatos dois minutos entre a batida na porta do carro e a entrada na cozinha. Apenas dois minutos; tempo de fazer um filho, explodir uma bomba nuclear, passar o ponto do camarão. O que de mais grave poderia acontecer em dois minutos?! Bom, alimentamos os famintos, oferecemos eletrônicos sem restrição e demoramos na refeição. Comemos e repetimos até a ultima conchinha ficar vazia. Depois teve a sobremesa, o café, a arrumação da cozinha, o cochilo comunitário, a visita dos vizinhos. Já prestes a dormir, lembro de pegar o carregador de celular esquecido no carro. Surpresa! O frango deixou rastros, odores, fantasmas maquiavélicos impregnados por todos os cantos do carro. PQP! Certa de que o perfume da semana lembrará o almoço de domingo, deixei os vidros escancarados. #tomaraquenãovenhagatos #senãosóvaipiorar

É fato

Os jornais atuais (e nacionais) violam a nossa inteligência. Informam do horror: miséria galopante, delação premiada, rico covarde se amparando no direito de ficar calado, economistas prevendo recessão, diretores de equipamentos de saúde vencendo remédio por negligência, a bendita presidenta gaguejando e acariciando o ego dos hermanos, enquanto a jornalista informa os índices alarmantes de desempregos. Para amenizar (e alienar, e subverter a indignação), alternam as notícias com comentários sobre jogos olímpicos, show da Ivete Sangalo, campeonato de futebol e lançamento de obra de arte de rua, considerando que fudido fica quem quer (basta resiliência e criatividade) Nos intervalos nos visitam os amigos do dono da emissora; vendem carros, viagens, jóias, idéias e ideais. Corja.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Diálogos

- Vamos andar amanhã? - Sim. - Pôs o despertador? - Sim. - Que horas? - As 8h30 - 8h30? - Sim. - Mas é muito tarde! - 7h15 - 7h15? - Sim. - Mais é muito cedo! - É. Um milagre. - O que? Acordar cedo? - Não. A gente tá casado. - É. Tem razão. - Boa noite. - Boa noite. - ... - Mas que horas mesmo você pós o despertador?

terça-feira, 7 de julho de 2015

Aos 4 anos é comum termos medo da noite. Meu mais velho tinha medo da noite. Não todas, felizmente. Quando acontecia , deitávamos no sofá iluminado pelos fiapos de luz vindos da rua e buscávamos adivinhar os sons do mesmo lugar. Era uma meditação guiada para uma criança de 4 anos. Escutávamos os cachorros abandonados, os gatunos forasteiros, o último ônibus da linha e os bêbados remanescentes. Sua cabeça cansava seus olhos de pensar e levava o medo para outros lugares. Aos 90 anos é menos comum termos medo da noite. Minha avó tem. Quase todas, infelizmente. Outro dia dormi junto dela. Estava de cabeça agitada, desconvencida do seus pensamentos; tampouco dos meus. Fiz massagem nos pés, dei gole d'água, bala de leite na madrugada, arrumei travesseiro, camisola e fralda. Nada ajudou. Lembrei do meu filho, dos sons e do aconchego que o mundo de fora trazia para o mundo de dentro. Abracei minha avó e, em tom de mantra disse: " vamos escutar os cachorros, os barulhos da noite e esperar o sono chegar". Fui agraciada por um instante de lucidez: " Vá pra puta que o pariu que eu não vou escutar cachorro nenhum! Tá achando que eu tô louca?!" Juro que funcionava com o meu filho. 😳😴

sábado, 4 de julho de 2015

Tatoo

Nasci devendo 2 meses de vida. Um resto que fez muita falta aos meus pais. Olhavam aquele corpo emagrecido pela prematuridade e não encontravam pontos de apoio que revelassem minha origem. Eu era feio, com orelhas grandes, nariz pontudo e cabeça achatada. Nasci quase hígido, portador de anomalias funcionais. Meus sistemas precários precisariam de tempo e furos e drogas para começar a trabalhar. Por obrigação continuaram a cuidar: deram nome e sobrenome, um canto para dormir e uma desesperança constante. Minha mãe deu um pouco do seu peito, mas logo desistiu. Minha fraqueza comprometia a força necessária para arrancar dali o meu sustento. Por sorte haviam substitutos: tubos, sondas, fios capazes de conectar meu corpo as maquinas. Assim foi: trataram e cresci, com a pele marcada pelos efeitos da prematuridade. Essa foi minha identidade: pequeno, miúdo, doente; atrasado no tempo dos normais. O tempo passou e a dúvida da origem pediu respostas que não foram dadas por ninguém: nem por meus pais, nem pelos médicos, nem pela porra do analista. Foi quando decidi transformar, marca por marca. Do pulmão fiz minha mãe, pelo instante de respirar. Do coração, fiz o braço forte do meu pai. Do estômago, o arco de flores da casa dos meus avós. Da garganta, a corrente sufocante do cordão umbilical. Da veia do braço, a cobra venenosa do doutor. Do resto, fui pintando o que aparecia, das relações construídas pela nova identidade.

Priapismo

Maria, você sabe que não existem segredos entre nós, não é?! Na verdade não existiam tantos, talvez um ou outro sem importância, nada grave que comprometa nossa relação, até porque Maria, o que eu tenho pra te contar não muda muito quem eu sou. Continuou sendo a mesma, amiga, mas o que me aconteceu hoje mexeu um pouco com os meus valores. Eu sei, valor, daqueles de verdade, tipo bastião do caráter, não muda assim de repente, mas deu uma chacoalhada. Eu pensei muito pra falar, como falar, se não podia ser coisa de quem foi criada no interior com pai rigoroso, mãe católica. Também sei que eu sou médica, devia estar acostumada. Todo dia vendo gente doente, tendo que mexer no corpo dos outros, mas você sabe, escolhi ser infectologista. Meu prazer é uma sepse generalizada, uma suspeita de HIV com cancro mole, gosto de gonorréia bem instalada ou de uma hepatite viral; até me divirto com uma dengue, mas o que vi hoje, pois em dúvida minha relação com o Vladimir. Não! Ele não me traiu! Ou se traiu, nunca desconfiei. Você sabe, o Vladimir foi meu único homem! Você tem razão, teve o Tavinho, mas com ele foi aquela única namorada que não deu nem pra chamar de sexo. Ele era moleque , gozava de pensar. Vivia com a cueca molhada só de pegar no meu peito. O Vlad não, sempre foi homem; dedicado , empenhado, nunca me deixou passar vontade. Me apresentou o mundo! Quem Maria? Quem você conhece que serve na traseira por prazer?! Tá bom, eu conto. Conto, mas espero que você entenda. Aquele maldito do meu chefe decidiu que o plantão do final de semana seria meu. Tudo que é problema internou no meu nome; isso me obrigou a passar na segunda cedinho, de leito em leito, dando bom dia, vendo no que posso ajudar e protocolando avaliação com especialista. Hoje não foi diferente: uti lotada, meu humor azedo e as enfermeiras eufóricas comemorando o dia. Assim que virei a esquina no box dos cardíacos, sou chamada de canto pela responsável do plantão que me atormenta avisando sobre o xilique do paciente do leito 12 . Gemeu a madruga, pediu travesseiro, banho quente e a última queixa era uma dor em baixo ventre sem conseguir urinar. Perguntei dos exames, fez febre, calafrio, indicava infecção urinária. Era passar a sonda de alivio, prescrever o antibiótico e mandar pro quarto. Não fosse a levantada no lençol. Maria: eu juro pela cura do câncer que nunca vi instrumento maior nem em todos os livros de anatomia, nem em todos filmes pornôs do planeta! Valha me Deus! Aquele moço tinha um problema de estrutura! De resto ele era parecia normal: tinha dois braços, duas pernas, cara simétrica e uma tatuagem de facção criminosa no ombro direito que não desabona ninguém . Mas o membro Maria; se não fosse doença era pura falta de educação. Maria, você sabe, minha abrangência no tema é limitada ao Vladimir. Não sabia muito o que fazer, tampouco quem chamar. O doente, que no momento era eu, pedia que eu examinasse o órgão como quem fala de dor nas costas. "Doutora, dê um jeito pelamordedeus, tá doendo muito e não quer baixar, o que que eu faço?!" "Ah! Meu senhor! Deve ser priapismo." "Qué é isso doutora?" Maria, me pus a falar em espanhol com o homem, acho que foi desespero. " Es una enfermedad que causa intenso dolor e o pene erecto no retorna a su estado flácido por um tiempo prolongado". O paciente ficou desesperado, com razão coitado. Segurou na minha mão e exigiu providências. O que eu fiz Maria?! Fiz o que não devia ter feito: segurei no pinto do cara e liguei aos berros pro Vladimir: - " Escuta aqui Vladimir, você pode dizer o que isso significa?! "

Carta aberta

Me sinto infeliz como um ator pornográfico que vive a potência no pinto duro e padece de apatia pelo resto do corpo. Conheço poucos atores pornográficos, talvez o mesmo tanto que você. Em geral são pessoas tristes no olhar, covardes morais que fecham os olhos e abrem a boca na hora de gozar. Nunca vi um que mantenha os olhos em riste. Lembro do Long Dong da adolescência, negro clássico inglês com pinta de americano, dono de fama com mais de um metro. Famoso nas rodas de escola, vivia no imaginário popular como uma aberração peniana. Felizes os que tinham acesso as revistas de sacanagem importadas. Vendiam informações de quando o show da capa se apresentaria no banheiro do terceiro andar. Eu, não era popular, vez ou outra cruzava com um no banco da perua. Embora o trânsito fosse menor, o trajeto forçava a intimidade. Serviu a poucas coisas; uma delas foi a foto do Long Dong. O entusiasmo do pré-evento foi infinitamente mais prazeroso do que o evento em si. O medo de ser pega pelo bedel, do meu pai saber, do rubor evidente, valeu pela decepção em descobrir que o negão além de feio, era mentiroso. Sem photoshop, até a velhinha mais inexperiente perceberia que se tratava de uma prótese. Se não me falha a memória era uma emenda mal feita com mangueira flexível de ¾. Suspiramos em uníssono, fizemos cara de nojo e duvidamos com certeza do que víamos. Por interesse, mantivemos a mentira e ganhamos um nível de popularidade. Um pouco do mal estar do engano, perdura. Tenho 40 anos, idade bem-maldita; melhor que os 50 e pior do que os 30. Melhor pelo tempo da promessa em virar algo que nunca fui. Li o livro do corredor, fiz a oficina do escritor, o curso de culinária e deu vontade. Pior pelas realizações já cumpridas, sacramentadas e duradouras, sem recuo. Formei, casei, pari e arrumei trabalho. Difícil mudar o rumo da história atravessada. Faz pelo menos 20 anos que estudo o mesmo tema; nem sempre pela dedicação, muitas vezes pela exposição exaustiva; se não sei, finjo bem. Pessoas me sustentam comprando o meu trabalho. Vendo interpretações. Satisfazem, operam mudanças; não sei se duradouras. Não me importo, nem tenho como saber. Às vezes mandam noticias, às vezes esbarro em lugares públicos e contam desfechos. Às vezes disfarçam e mudam de calçada. Às vezes chegam novos, indicados pelos antigos; carregam expectativas do encontro anterior. Minha potência habita um canto desconhecido. Feliz do ator, pago por manter um pedaço de carne dura numa época sem acesso fácil. Comprar seu ideal custava caro. Era preciso o primo rico e desavergonhado atravessar o continente com dinheiro na cueca e parar na banca de jornal com cara deslavada e arriscar o inglês de escola de bairro: I wanna a sex magazine. Hoje basta um clic e sua potência é revelada em série na primeira página. Hoje basta um clic e seu ideal é impresso nas propagandas baratas. Ontem mesmo jogaram na cara minha indiscrição. Sentei para colocar as notas dos alunos no site da faculdade e denunciaram minha superficialidade. Veio anúncio de gordo tentando emagrecer, querendo comprar fritadeira elétrica e o motivo da morte do Long Dong. Agora preciso cuidar do meu histórico. Tenho marido, filhos em idade escolar, curiosos por viagens de férias e pesquisa de mamífero-ovíparos no mesmo computador que desenho meu futuro. Não combina com mãe de família ver foto de pinto grande. Já imaginaram se dá cruzamento de ornitorrinco com Long Dong?! Criança pega trauma e eu, tenho que explicar e pagar análise pra filho e marido desconfiados dos meus interesses. Melhor apagar. Mas apagar não liquida meu desejo. Queria ser livre, sem compromisso, disposta a propor cópula furtiva com quem me convir. Meu problema não é a vida, é a falta. Condição existencial que liquida minha existência. Sem ser desrespeitosa com quem tem nos mandamentos uma referência, cansei de respeitar e amar e venerar a Deus e todos os próximos. Cansei de sublimar a ausência de objetos fúteis. Cansei da falta. Falta tempo, grana, horas de sono, reconhecimento. Falta a empregada parar de preencher a lista de pendências. Mal volto do supermercado e ela lembra do sabão em pó. Estaciono o carro e a reserva avisa do fim da gasolina. Entrego o relatório e o chefe agenda a próxima reunião. Sem contar as tarefas nobres: vacina, consulta de rotina, exames ginecológicos e a comida do peixe. Comprei peixe porque vive só. Bem aventurados os que inventaram o beta, pena que o infeliz come. Come pouco, miseras bolinhas fedorentas que entretêm as crianças duas vezes ao dia. Mas come comida que acaba segunda-feira as oito da noite. Beta só come bolinhas. Quando tentei atum em lata, morreu engasgado. E criança pega trauma, e paga análise, ... Long Dong morreu de AIDS, aos 45 anos; jovem. Podia ter estudado na faculdade, casado, parido, arrumado trabalho de vida inteira, mas não. Se meteu a enfiar mangueira no pinto e não deu conta de disfarçar a mentira. Coitado! É... Me sinto feliz como um ator pornográfico que vive a potência no pinto duro e padece da promessa do amor pelo resto do corpo.

domingo, 14 de junho de 2015

Amizade é texto sem revisão. Cheio de erros de concordância, grosserias gramaticais, hipérboles baratas e pleonasmos edificantes.

Amizade é costura de chita e fio percal de um milhão, resulta em tapeçaria persa feita a mão, por anos.

Amizade é roto justificando esfarrapado. É bela viola e pão bolorento por dentro e por fora, sem descanso. 

Amizade é cerveja de garrafa e pastel gordurento na quinta a noite, arrematando a semana antes do fim. 

É fumar cigarro na promessa de parar, sem medo de doença porque tem afeto que protege da guerra. 

É falar dos tropeços mergulhando de cabeça na erosão. 

É construir lembranças sem fim. 

Do primeiro vomito na beira da estrada, da mão na garganta que sela pacto de irmão de sangue, da transa sem camisinha que faz todas doarem sangue pra descobrir que está tudo bem. 

Da prova colada de assunto desinteressante, do professor bonito.

Do roubo da sobremesa pra virar bebida de adolescente.

Das desavenças, das diferenças, da tolerância.

Da calça emprestada que não servia, mas serviu, porque amigo cabe em qualquer tamanho. 

Do sapato frouxo que laceia para receber a bolha alheia.

Da viagem longa que canta a brincadeira de infância e anuncia a chegada da adolescência. 

Da fita que volta por insistência de viver o momento por mais um instante.

Da música, do monte de músicas, do Fábio, Junior, companheiro insuperável de fim de noite. 

Dos casamentos, dos amores, das paixões da Bahia, do Cerrado, da esquina.

Dos filhos nascidos e dos perdidos e dos criados e adotados e sacramentados, na saúde e na doença, na harmonia e na discórdia, na vida e na morte. 

Em nome dos pais, das mães e de todos os espíritos dispostos a proteção. E também dos que não, intrusos aniquilados pela lealdade. 

Das profissões escolhidas e esquecidas pelo caminho. Daquelas que perduraram e findaram um lugar.

Da promessa da velhice, da cadeira de rodas com cerveja e cigarro e humor. Muito e sempre. 

Das quedas, derrocadas e vitórias. Das fáceis, das impossíveis e das transcendentes.

Amizade é primeira menstruação, que sangra até a menopausa, que marca tempo. 

Que volta a cada ciclo, certeiro. 

Que se escreve nas madrugadas e nas manhãs de cólica. Nas de ressaca e de sufoco e de angústia agonizante. 

Na sala de parto e de cirurgia e de onde mais Deus nos colocar.
Que não mede distância, dinheiro e nada que o homem possa calcular. 

Que enfrenta.    

Amizade é dedo na ferida, no ponto fraco e na hemorragia, que cutuca com a garantia de estancar.

Amizade é DNA. Modifica o código, as regras, as leis.

É anatomia. Conhece pelo tom, pela voz, pelo passo e pelo olhar cego do cheiro de alegria e tristeza.

É sublimação.

É amor sem fim.


Amizade é texto sem revisão.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Cabeça

Eu tenho cabeça.
Ontem tive dor na cabeça.
Um analgésico de efeito rápido sanou a dor e,
devolveu a função plena
da cabeça.
Hoje acordei sem.
Tomei 1 cerveja e 1 taça de vinho.
A cabeça abriu espaço,
pra dor.
PQP!
Encontrei um jeito,
ortopédico,
para
impedir
a
instalação.
Deitei no sofá:
a meia luz,
ao meio som,
bem meia boca.
Pedi
silêncio, sossego e café forte.
E um pouco de tempo.
Demorou,
mas passou.

Rejuvenescimento

As duas senhorinhas, sentadas no sofá ao lado, esperavam pela ficha preferencial número 2049.
A minha vinha logo depois, a tempo de  espiar a conversa.
Para segurança do paciente, e pelo interesse de quem vos escreve, foi preciso preencher um formulário pré-exame respondendo aspectos clínicos da sua vida.
A menos senhora, primogênita de 68 anos, auxiliava a mãe, moça de 90 a viajar no tempo.
Primeiro queriam saber sobre o número de filhos. Recontaram, as gargalhadas, um a um; depois a idade do caçula. Discordaram. A filha jurava 62 enquanto a mãe dizia 61. Fizeram contas e tudo. Dai vieram os partos; teve normal, 3, o Jr de fórcepes e aquele aborto espontâneo. Curiosos, perguntaram sobre a amamentação. De peitos em peitos passou 3 anos com menino pendurado no bico. Não contente falaram de sexo: data da última relação, dores, corrimentos. Leve constrangimento resolvido com a lembrança saudosa do pai.
O resto do questionário - exames anteriores, doenças prévias, tratamentos - perdeu a importância.
Briguei com o atendente da padaria. Não houve feridos, infelizmente.
A cena consistiu num bate-boca de 3 frases; eu, reivindicando uma xícara maior e ele, defendendo a média.
Busquemos culpados.
Tudo começou numa daquelas conversas de virada de ano, fazendo o balanço das conquistas e das contas e concluindo que o ralo tava sem fundo (prometo que na próxima virada vou pra cama as 10 como se nada houvesse).
Na ilusão que tomar uma providência concreta mudaria o rumo do rombo orçamentário, baixamos um aplicativo de finanças domésticas no celular.
Entre um acordo de paz anual, mais diversão e menos trabalho, nos comprometemos a anotar no app todas (e todas) despesas mensais.
Assim fiz.
Janeiro foi um misto de euforia com pânico. Mês improdutivo, recebi quase nada e gastei quase tudo. Anotava, compulsivamente, cada picolé derretido na areia, alienada na esperança que fevereiro anunciava.
Ocorreu uma pequena melhora: os pacientes voltaram, novos chegaram (tomando providências de virada de ano), as aulas aumentaram e o ícone entrada ficou azul reluzente.
Ganhei estrelinhas pela dedicação.
Março e abril, de mãos dadas, revelaram a real situação dos meses cheios: chegaram os impostos, seguros e os imprevistos (cupim, vazamento, curto circuito e mudança de empregada).
Tentei ignorar o aumento vertiginoso da inflação e manter pequenos luxos: podóloga, café em padaria gourmet, ceviche boutique com as amigas e oficina de escrita criativa.
Não deu.
Maio se impôs como tormenta (e eu em bote de borracha).
Com calma, olhos e mente abertos, analisei numa marcação homem a homem, quanto e onde queimo o suor do meu trabalho.
Pasmem: com infra-estrutura (aluguel, saúde, educação, impostos, transporte e empregada)  gasto 65% do salário; com alimentação (doméstica e na rua) vão se outros 20%; mais 5% para garantir alguma dignidade no futuro (previdência) e os parcos 10% restantes para gozar de furtividades.
Entre elas está o café de todas as manhãs.
Prescindo de companhia, ainda estou de mau humor, sem muita disponibilidade para o outro, conversando com meu sonhos, os colunistas do jornal e algum romance inacabado.
Um momento tão íntimo pede espaço aconchegante e bem servido.
O chapeiro conhece a textura do queijo quente, a moça das frutas fatia a perfeição o formosa, mas o responsável pelo café, velho sovina, completa metade da xícara com espuma de leite.
Apelei, aos berros.

Eu já disse que não gosto de espuma de leite! Café com leite não é o mesmo que café com espuma de leite! Cinco reais uma mísera xícara, não pode conter espuma. Eu quero líquido de leite, entendeu!

O gerente intercedeu. Buscou pessoalmente uma caneca maior e combinou com o atendente que a minha média seria servida, a partir de hoje, naquela xícara.
Justo.
Demorei a beça na padaria, em tempo de escrever até crônica e, pela piscadela do gerente na saída, desconfio que tenha usado o mesmo aplicativo.
Oremos!
Dos lamentos da cidade 

Moro num pequeno oásis cercado de favelas por todos os lados. 
As favelas são cercadas pelos rios, pelas marginais e pelas bocas de crack. 
Como o oásis foi planejado antes de ser construído, lembraram de colocar alguns ornamentos: uma praça, um campo de futebol, algumas áreas verdes, um coreto, um pequeno centro comercial, um clube (cercado de muros por todos os lados) e um shopping. Ah! Por respeito, princípios e a boa educação fizeram uma escola pública. 
Quando construíram o oásis não haviam favelas como ornamento (tampouco como desejo). Mas como desejo foi feito para não se realizar, elas vieram e povoaram as imediações com gente mais simples , mais pobre, mais preta. 
As casas receberam famílias com condição financeira de pagar escola particular para os filhos, mensalidade para freqüentar o clube murado e ingressos para o cinema que fica dentro do shopping.  São casas grandes e respeitosas: tem quarto com banheiro exclusivo para os pais, sala de refeições, amplo cômodo de empregada lá pros lados da lavanderia.
Gente com todas essas condições precisa de gente para ajudar com a casa e com os filhos, e gente para trabalhar precisa chegar na casa de família. Com isso construíram acesso: linha de trem e terminal de ônibus. Alguns vinham de longe, outros de nem tanto. 
Com tanto entra e sai, vieram umas pessoas com más intenções. Pensaram num jeito de melhorar essa vida e, num cantinho da área verde, instalaram um posto policial.  Poucos protetores para tantos aflitos, aí fizeram uma igreja (que ninguém é de ferro) e umas guaritas nas portas de entrada do oásis. Lá mesmo na rua onde moro tem guarita e três guardas (de manhã, de tarde, de noite). Todos moram na favela. O mesmo acontece no pequeno centro comercial, no clube, no shopping e até na igreja; com medo da invasão dos moradores da favela, contrataram pessoas da favela para proteger os lugares públicos.
As vezes nem precisa de tanto, com o preço do pãozinho ninguém pobre entra na padaria, com o preço da academia do shopping, tampouco. As pessoas diferentes se encontram na fila do mercadinho: uns com carrinhos cheios, outros com pequenas sacolas; uns pagam com cartão de milhas, outros com porta-moedas. No coreto ficam as crianças, as grávidas com filhos pequenos esperando uma moeda de boa ação. 
Assim é a vida. 
Mas o que aconteceu outro dia me deixou um tanto chateada. 
Já faz tempo que as pessoas do miolo, junto com as pessoas  das margens, construíram um adorno que não estava previsto na planta original: um campo de futebol e uma pista de bicicross. Em dias de calor, manhãs de sábado e tardes de domingo  o povo se encontra por lá e fica um colorido só: tem preto, tem branco, de chuteira laranja ou furada, de bicicleta cara ou carrinho de rolemã. Da até para acreditar que não existe (tanta) diferença; ou dava. 
Acontece que a cidade resolveu pela democratização dos espaços públicos : fez faixa de bicicleta por todos os lados, colocou sinal de internet no poste da rua e resolveu tomar posse daquilo que já era do povo; aqui no nosso oásis foi lá no campo e na pista de bicicleta; invadiram e destruíram o que tinha sido construído pelo povo. Imbecis! 
Quebraram as machadadas cada monte de terra, jogaram no lixo os pedaços da trave do gol. Puta bola fora! E não disseram nada. Suspiraram a palavra revitalização, quase como um lamento de morte. 
Disseram do planejamento, do poste com internet, dos bancos da praça e há um ano não fizeram nada mais do que acabar com a tentativa de aproximação e convivência entre as partes, num lugar que dilui as diferenças: ali, no lúdico. 
Tentamos ligar na prefeitura, ninguém atendeu. A mensagem dizia que estavam cuidando dos bichos da dengue. 

P.S: Lá onde havia restos, reconstruíram, no improviso, outro campo, outra pista. Até quando?

Indicação

Perguntei ao professor - a esses e tantos outros - como se define uma crônica.
Nunca vi perguntinha difícil de ser respondida, enrolam mais que filósofo em mudança de época; citam os consagrados, lêem dezenas de exemplos em busca de categorias e sempre encerram com a máxima "busque seu estilo". 
Como psicanalista, fui treinada para não responder as inquietações dos pacientes; já as minhas desejo objetividade, na falta sigo a busca. 
Antônio e Gregorio, companhias atuais nos cafés matinais aos domingos e segundas, trataram indiretamente do tema. O menino Prata contribuiu dizendo que toda crônica é uma ficção, ainda que inspirada em fatos reais e o garoto com nome impronunciável definiu, de forma mais precisa, que a crônica é uma ilha de amor cercada de ódio por todos os lados. Gostei. 
Dia desses tropecei com uma figura em busca de um encaminhamento para terapia. O pedido de indicação para uma análise é um troço mais delicado de conduzir do que dica de neurocirurgião. Felizmente nunca me pediram o telefone de um neurocirurgião, mas já pensei sobre o tema. Avaliaria o número de sobreviventes, depois dos sequelados, o nível de tremor nas mãos do médico, sua capacidade de concentração, aplicaria testes psicométricos e de personalidade, daria uma olhada no currículo, na simpatia e até no facebook. 
A diferença crucial (entre o psi e o neuro) é que no neuro basta dizer o nome do problema (tipo cisto sebáceo em giro pré-central) para você lembrar se o colega é especialista em cistos sebáceos em giros prés-centrais ou não ; caso fosse, ficaria comovida e solidária com a situação e faria o encaminhamento.  
Já no psicanalista é preciso ouvir o problema, entender as nuances, arriscar um breve interpretação e rezar: pela empatia, transferência, valores, números de sessões e proximidade da casa ou do trabalho.
Raramente pedem ajuda em tópicos: problemas conjugais, álcool e drogas, enurese e ecoprese, distúrbios do sono, filhos adolescentes, mudança de trabalho, crise de identidade. 
O problema vem em narrativa épica: "deixa eu te contar rapidinho o que tá acontecendo". Sento, peço um café, abro o coração e a mente, crente que a dor e o sofrimento sejam legítimos. 
O começo da fala anunciava o grau de importância do pepino (e da minha pessoa) : 

 "Já faz tempo que penso em falar com você. Disseram que você pode me ajudar. Há 20 anos sofro com isso."

Pedi um café, triplo. Um problema de 20 anos duraria uma eternidade. 

"Minha vida vai bem. Tenho saúde, filhos lindos, pais vivos, casa própria, trabalho e amigos." 

Comecei a tremer, cenário assustador para introduzir a questão. Típico de filme de terror: família feliz em casa de campo bucólica a espera da visita do serial killer. 

"Falando assim parece que tudo vai bem. Vejo pessoas em condições piores que não se queixam de nada e eu aqui, reclamando."

Início de autopiedade somado a autoflagelo. 

" O problema, veja, nem sei se é um problema, é a solidão."

Lucidez poética. 

" Não sei se o que quero é muito, acho que não. Todo mundo tem uma companhia para dividir as coisas da vida. Eu nem preciso de alguém para dividir conta, sou independente. Quero alguém que me faça feliz e só! " 

Sei

"Mas o problema é que não rola. Não sei porque? Encontro pessoas que parecem bacanas, a conversa dura uma ou duas saídas e depois desaparecem. Não acho que quero algo demais. Quero um companheiro, romântico, cuidadoso, trabalhador; não precisa ser muito novo, nem muito velho, sei lá. "

Sei, sei

" E modéstia a parte, eu sei meu valor."

Esperança. Ego fortalecido.

"Sou bonita, inteligente, charmosa e, parece futilidade, mas preciso dizer, uso calça 38, 38! Agora diga, quem com calça 38 fica sozinha?" 

Fala sério! A figura tava indo bem, reconhecendo um lampejo de desejo, negociando as opções de objeto, repensando as modalidades de satisfação e de repente mete uma dessa. 
Aí não dá, Creonice! Que Freud me perdoe, mas fiz cara de gravidade, atuei na  pura inveja (da calça 38 e só) e considerei que um problema de tantos anos não  seria fácil de resolver; valeria uma análise de artilharia pesada para avaliar que elementos psíquicos impediriam um pedido tão simples de realizar para a maioria dos mortais. 
Definição comprovada: uma ilha de amor cercada de ódio por todos os lados! 
Fiz semblante de saber e indiquei uma colega 44, super realizada!