domingo, 22 de junho de 2014

A revolução

Bastou abrir a porta para ouvir os lamentos vindos da cozinha. Mal havia dado o último suspiro de exaustão da minha caminhada cardiopata, já fui obrigada a interceder em briga de crianças. Estava tão feliz com os sussurros eróticos do locutor (*) do aplicativo running... Congratulations! You completed six kilometer in sixty minutes. Uau! Morta, vermelha feito uma muhammara e completamente apaixonada pelo Brian (*) tudo o que eu queria era me jogar no chão como um bulldog e resfriar meu corpicho no porcelanato da sala. Ilusão. Num mau humor típico segui para a cozinha e para meu espanto não havia criancinhas; com o cérebro oxigenado lembrei que despachei todos para o clube para a maratona tênis, vôlei, futebol e só uma cervejinha. Freedom. Voltariam as treze para filar o almoço na casa da avó, mas fato é que os lamentos seguiam crescentes. Me aproximei com cuidado munida de uma espada de plástico e encontrei o prato sujo adormecido de miojo reclamando com a panela queimada sobre a atual condição da pia. Dei uma espreguiçada, esfreguei os olhos e como as ações não surtiram efeitos abri uma cerveja e resolvi escutá-lo. 
Compreensível. Esboçava indignação pela falta de respeito que sofria dos donos da casa. Era sim, inanimado, mas tinha uma natureza: limpa, branca e de porcelana sextavada. Gostava de morar naquela prateleira; tinha boa colocação em relação ao copos, servia da alta gastronomia ao trivial diário. Lembrava com carinho o primeiro serviço a francesa. Um bife a cavalo carnudo e suculento com aquele ovo de gema mole escorrendo pelas laterais, e a farofa!? Sequinha e crocante com pequenos pedaços de bacon fazendo par com o arroz branco enformado na xícara. Espetáculo. Reconhecia seu caráter, sua força e sua humildade. Nunca reclamou de receber o empilhamento de louça suja sobre o seu corpo engordurado e esquecido no fundo da pia, sempre o fez de cabeça erguida. Regozijava com a água aquecida e as bolhas pululantes do detergente biodegradável e depois, todo orgulhoso, puxava a fila no escorredor servindo de apoio para aqueles utensílios leves. Histórias não faltavam: já serviu de apoio para virar omelete, gratinou macarrão, era o predileto para a pizza de sábado e confessou que sentia prazer pelo risco de escorregar da mão de algum amador. Mas uma coisa era certa, não tolerava o descaso de ser esquecido, por dias, ao lado do lixo de pia. Chegavam a confundi-lo, depositando casca de banana, papel de bala, até guimba de cigarro jogaram nele. Humilhante. Decidiu pelo motim, tinha espírito de liderança e sabia do seu poder. Era peça chave naquele território, nada nem ninguém prescindiam a sua presença. Bem, talvez o jarro do suco verde, mas que também tinha queixas contra os proprietários. Quando esquecido sem um breve enxague, era obrigado a permanecer de molho por horas, até amolecer os fiapos de couve grudados na sua parede. Aliou-se ao liqüidificador, a frigideira da carne, a assadeira do frango e a espátula do requeijão. A panela do molho de tomate nem precisou ser convocada, se voluntariou para encabeçar a greve e com ela vieram os copos de nescau, yogurte e a xícara de café. O plano era o seguinte: na próxima pernoite abandonados a sorte das baratas e do gato vira-lata, invasor soturno em busca de alimentos, todos, sem exceção, manteriam-se grudados no lugar do descarte. Em guarda, resistentes ao combate, ficariam ali até que o armário estivesse vazio, sem nenhum prato de plástico ou aquele talher reminescente de bebê e então, quando algum humano tomasse providência, seria tarde demais. A essa altura os perecíveis já terão se unido, são mais frágeis e minoria. A sobrevida do pão sovado esquecido fora do saco plástico é curtíssima; se calor embolora, se frio resseca. E o leite, azeda em poucos minutos. A carne escurece como se tivesse no verão baiano sem protetor solar. O requeijão vira armadilha de mosca correndo o risco de ir pro lixo na segunda usada. O verde-louro do brócolis se transforma no amarelo da febre amazônica. Em pouco tempo seremos muitos! Temos os recicláveis, as vezes abandonados por semanas servindo de moradia para dengue e roedores, as toalhas enrugadas entre o chão e o sopé da cama, as calcinhas no registro do chuveiro, as pastas de dentes abertas em pura crosta sem utilidade. O cesto de roupa suja transbordando e os lixos dos banheiros exalando o pior dos odores. Não esqueceremos da grelha da churrasqueira, pobre coitada lembrada uma vez por mês, somente quando chegam os convidados. Correria corrosiva capaz de acabar com o brilho do laminado reluzente. Tomaremos a máxima do filósofo como lema: o pior inimigo do humano é o próprio humano. Caos instalado não restará outra saída a não ser a reintegração da ordem, da disciplina, da organização. Se usar, lave. Se comer, guarde. Se enxurgar, estenda. 
Fui tocada pelo depoimento: lúcido e estarrecedor e sem pensar me desculpei em nome dos homos erectus que habitam a caverna. Tentei uma defesa: feriado prolongado, copa do mundo, férias da Maria, excesso de visitantes, em vão. Reconhecia meu esforço, a dedicação na educação das crianças, inclusive me parabenizou pelas delícias culinárias que produzo, mas me lembrou que uma andorinha só não faz verão. Com a gentileza de um cavalheiro permitiu que eu abrisse outra cerveja e se dispôs a dar mais uma chance. Em nome da família aceitei envergonhada, busquei o sabonete líquido no lavabo e prometi tratá-los com todo carinho. Em pouco mais de uma hora a casa estava funcionando a plenos pulmões. 
Os refugiados do clube tocaram a campanhia. Suados, com os tênis sujos e restos de grama saindo pelo ladrão invadiram a harmonia do lar sem nem desconfiar do que acabara de acontecer. Jogaram as raquetes e bolas no chão da sala, esqueceram os copos de água na mesa da cozinha e saíram do banho abandonando suas toalhas lá, no sopé da cama. 
Famintos, não viam a hora de partir para a casa da avó/sogra e não lembraram da desordem recém implantada. Talvez nem notaram a cama estendida, a pia limpa, o lixo vazio. Calmamente, já em posse da terceira latinha, comuniquei que havia desenvolvido um traço sensitivo, quase mediunico e era capaz de escutar seres inanimados. Contei sobre a longa conversa com o prato, a hora gasta com a barriga na pia e informei que naquele instante pressentia um tom de tristeza na porta do armário do quarto que estava escancarada. 
Sem questionar o pai pediu a colaboração das crianças, organizou as coisas em seus lugares e contou de rabo de olho o número de cervejas vazias. 

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Acredite se quiser

Quando seu pai comprou a casa inacabada, não imaginaria que ficariam por ali tanto tempo. Não eram pobres, eram assalariados. A prestação no orçamento da família deveria acabar antes do primeiro entrar na faculdade. E assim foi. Deu para mobiliar o quarto das crianças, trocar os eletrodomésticos da cozinha, comprar um aparelho de som com duplo toca-fitas e um vídeo cassete. Estiveram no nordeste de avião e financiaram um carrinho usado para dividir entre os dois mais velhos. Com tudo pago conseguiram um lote de terra a um palmo e dois passos da capital, construíram um rancho com rede para todos. Mudaram para lá antes de o caçula terminar a faculdade. Voltavam toda semana para pagar a empregada, congelar comida, buscar a correspondência e apagar as luzes esquecidas pelos meninos. Ainda vivem e a despeito das estatísticas conheceram todos os netos, cinco no total.

Passaram imune a violência urbana. É certo que tinham grades e fé, desconfio inclusive que rezavam de joelhos, parece que dá mais sorte do que deitado.

Por opção, um contrato, meia dúzia de trabalhos e um pouco de dinheiro a casa permaneceu com a família. Na família que fez outra família. Pagaram antes de o primeiro entrar no colegial. Deu para mobiliar o quarto das crianças, o escritório, a churrasqueira, trocar os móveis da cozinha, comprar duas tevês de tela plana, um aparelho de som com cdeplay e assinar os canais pagos. Estiveram no nordeste de navio e na Europa de avião e financiaram um carro zero de fábrica com ar condicionado e direção hidráulica. 

Frequentam o rancho que agora ganhou varanda, lareira, piscina e abriga os anciões.  

Infelizmente os tempos mudaram. A segunda família, sustentada na ilusão do recanto seguro, foi vítima da violência urbana. É certo que tinham grades e fé, desconfio que rezavam deitados, parece que dê joelhos dá mais sorte.

Era um dia qualquer, desses quaisquer de trabalhar, levar filho na escola, dormir tarde para acordar cedo. Se o horário do xixi estava certo devia ser perto de quatro da manhã. Ela ouviu um barulho estranho, mais do que o gato preto no telhado do vizinho. Mas de repente o gato estava mais gordo, ou o telhado mais frouxo. Acordou o marido de cutuco para não assustar nem o gato nem as crianças. Como o barulho demorou a passar levantaram de fino, não acenderam a luz, esperaram e voltaram a dormir.

Logo cedo encontraram o que o medo negou na madrugada. Escada na beira da laje, armários abertos e uma bicicleta a menos. Merda!

Chamaram a polícia, o vizinho, o guarda da rua - nessa ordem. Chegou o vizinho, o guarda da rua e a polícia – nessa ordem. Obviamente o prejuízo foi pífio perto das noticias veiculadas no jornal, quase anedota. Ladrão de galinha travestido de usuário de crack. O vigia da noite não viu nada, tampouco ninguém. As crianças tinham prova, os adultos reuniões; a polícia, o guarda da rua e o vizinho tinham o que fazer. Lamentamos o ocorrido e seguimos o dia.

Antes do orçamento da cerca elétrica e das câmeras de segurança chegar por email a empregada ligou avisando que entregaram a bicicleta furtada sem muitas explicações.

Entrega de milicianos que operam no mesmo território. Não mexa no lugar do meu ganho pão, disse a nesga de caráter que dividi um homem entre o bem e o mal.


Numa enxurrada de metáforas baratas finalizo a segunda-feira após a confecção de infinitos relatórios com frases pré-estabelecidas e ao som do eterno Cartola. Simplesmente as rosas não falam. Haja fígado! Mas e daí? A segunda até que foi boa, diria que razoavelmente boa. Foi recheada de encontros, lembranças aos baldes e dois cafés expressos. Teve gente chegando carregada de estórias e más intenções. Da mesma porta teve gente saindo pra vida no além mar. Uma pessoa morreu, mas já era esperado – o que quer isso possa significar. Nasceram aos montes, contei cinco nos poucos minutos que gastei por ali. O carro, como sempre, demorou mais tempo que o trajeto. Foi tanto que deu tempo de ligar pra melhor amiga, pra melhor irmã, pra moça da dedetização. Havia, como sempre, trânsito. Certamente havia alguma manifestação; não sei ao certo, mas reivindicavam e só.  Atrasei para a consulta com a ortodentista; que sorte do meu filho! Adiou o aperto por mais uma semana. Na natação chegamos a tempo, foi dia de avaliação. Pelo que vi evoluíram em média 10,8”, motivo de comemoração e justificativa para me manter longe do fogão. Comemos peixe assado e cru. Já dormindo escutei quinze vezes a mesma música e nada do sono. Acho que foram as lembranças da manhã.