domingo, 16 de fevereiro de 2014

Curso de etiqueta

Visitar nossa história pela caixa de cartas, cartões, fotos e recordações antigas é sempre uma aventura nostálgica (e empoeirada). Reencontrar segredos, amigos esquecidos nos porões da memória, declarações de amor eterno, projetos desenhados no guardanapo de papel, imagens antigas e amareladas. Que delícia!

Foi o que fiz nesse domingo chuvoso carregado de preguiça.  Entre tantas lembranças encontrei uma curiosa: o encarte cheio de notas do curso de etiqueta para moças, maio de 1989. Sem muito esforço consegui lembrar local e companhia da empreitada. Foram três manhãs de sábado em que eu e uma prima aprendemos com a professora Janete, os bons modos oferecidos pela loja chique de utensílios domésticos importados – Show de Cozinha.  Li e reli minhas anotações e entre o espanto e a comicidade decidi compartilhar – parte - do meu nobre aprendizado. Divirtam-se!

1ª aula: Formalidades

  • Seja gentil com todos. Peça por favor, com licença, diga obrigado em todas as ocasiões e não tenha vergonha em se desculpar quando necessário.
  • Para as apresentações respeite a ordem: crianças para adultos, menores para maiores, subordinados para subordinantes (exemplo: aluno para diretor), homem para mulher, pessoa comum para gente famosa (nesse caso nunca diga o nome da pessoa famosa).
  • Publicamente nunca vá contra o filho e não chame sua atenção. Se for preciso leve-o ao banheiro e fale baixo.
  • Quando estiver sentada em uma reunião ou evento social, não se levante para cumprimentar, espere que os outros o façam. A exceção são as pessoas idosas. Caso você esteja chegando e os outros já estiverem sentados não comprimente um por um, diga um olá geral e tente contato com as pessoas a seu lado. Lembre-se: sempre muito atenciosa.
Cartão de visita:
  • Para mulheres solteiras sem telefone e apenas o primeiro nome. Quando alguém interessar coloque o telefone a lápis. Tenha sempre na bolsa uma bonita lapiseira.
  • Para mulheres casadas coloque o nome do marido junto com o da esposa e então, telefone e endereço.
  • Para o cartão profissional coloque tudo.
  • Utilize o cartão pessoal sempre que for presentear. Sempre coloque cartão ao mandar flores.
  • Lembre-se que não é elegante enviar presentes para o hospital. Se a pessoa estiver doente não mande flores. Tão pouco para as mamães. Envie, um dia antes da alta, para a casa. Estarão bonitas quando o bebê chegar.
  • Caso vá levar alguém ao aeroporto não leve flores.
  • Dica: tenha sempre rosas em casa, tira o mau olhado.
  • Para homens somente cravos e plantas.
  • Quando uma mulher manda uma orquídea para outra mulher ela tem algum interesse sexual. Quando um homem tem interesse por outro homem, costumam usar um lencinho para fora do bolso de trás da calça. Trata-se de uma forma discreta de comunicação.

2ª aula: Como receber

  • Chapéu: usa-se grande pela manhã diminuindo no decorrer do dia.  Horário limite: 20h. Depois é proibido.
  • Luvas: usa-se pequena pela manhã aumentando no decorrer do dia. A noite bem comprida.
  • Se alguém pedir água (sendo você a dona da casa), traga simplesmente o copo. Se outra pessoa fazê-lo (um convidado, amiga, ou for você na casa de outro) traga com um pires. Caso seja a empregada sirva com um pires na bandeja.
  • Se você estiver na casa de alguém e este não estiver presente, levante-se para cumprimentá-lo.
  • Dicas importantes: em uma festa ou reunião social nunca fale sobre doenças, família, empregadas, política, peso, idade e religião.
  • Nunca perguntar idade e salário. Não usar termos antigos e abolir a frase “se eu fosse você”.
  • Para ser admirada tem que ser bem informada e atualizada. Leia bastante. Verifique as principais notícias da semana antes de um evento social. Se estiver numa reunião de trabalho não enrole. Seja sincera se não souber de um assunto. Não demonstre insegurança.
Presentes: 
  • Para pessoas que você não tenha muita amizade dê um disco ou um livro, pode ser um vale-presente.
  • Roupas íntimas só para pessoas íntimas.
  • Entre patrão e empregado presente simples, não muito caro.
  • Para crianças sempre brinquedo, sempre o que a criança gosta nunca o que a mãe gosta.
  • Presente de nora: centro de mesa, pano de prato, toalhinha de mão, rolhas enfeitadas.
  • Sempre agradeça o presente mencionando o conteúdo, diga que estava precisando e o quanto é de bom gosto.
  • Não diga: não precisava, não se incomode. É deselegante.
  • Sempre avise quando for visitar alguém.
  • Caso você marque um compromisso na sua casa e haja um imprevisto de última hora, espere o convidado chegar e explique o ocorrido. Priorize os eventos em família, lembre-se que a família esta em primeiro lugar.
  • Quando sua visita chegar desligue a TV e dê atenção a ela. Primeiro converse , converse e converse para só então oferecer um café. Caso seja um almoço ou jantar deixe o café próximo do fim do evento. Entenda que é a hora de ir embora.
  • Sempre respeite a vontade dos convidados, se disser que só quer um dedinho de café, sirva somente um dedinho.
  • Se você for a visita e chegar na hora das refeições, nunca aceite. Tome apenas um copo de água.
  • Não faça ligações antes as 8h nem após as 22h. Nem visitas.
  • No hospital não fale de doenças, apenas de temas agradáveis.
  • Lembre-se: nunca dê a mão para quem esta a mesa. Nem para os enfermos.
  • Visitas de cerimônia: mesmo que estiver indisposta vá. Se o chefe do seu marido for viajar para Europa, pergunte quantos países ele vai visitar. Você ganhará o papo.
  • Visita de pêsames deve durar apenas 10 minutos. Chore com o enlutado e coloque-se a disposição. O mesmo vale para casais que se divorciaram.
  • No velório, se houver uma ante-sala cumprimente as pessoas, caso seja direto na sala do morto, veja-o primeiro e depois cumprimente. Não se esqueça de anotar o nome no livro de registros. É elegante.

3ª aula – Boa aparência

  • Higiene em primeiro lugar, depois postura e por fim vestuário.
  • Banho: utilize uma esponja orgânica que ajuda a eliminar as células mortas. Esfregue em movimentos circulares. Após o enxague passe um óleo pelo corpo e tome uma ducha final. Garantia de pele sedosa.
  • Lembre-se que somos os últimos a sentir o próprio cheiro. Cuidado!
  • Partes íntimas tendem a ter odor forte. Use sabonete bactericida.
  • Dilua o shampoo com um pouco de água e esfregue duas vezes. Condicionador somente nas pontas. Enxague em abundância.
  • O perfume deve combinar com a ocasião. Tons cítricos e frescos pela manhã e eventos externos. Aromas fortes, amadeirados e doces para eventos sociais noturnos e ocasiões íntimas. Duas gotas em cada pulso e atrás da orelha.
  • Maquiagem também. Não saia de casa sem ao menos um gloss.
  • Leve na bolsa lenços descartáveis. O fundo da bolsa sempre encostado ao lado do corpo.
  • Não cruze as pernas em: velório, igreja, mesa. O pé pode cruzar sempre.
Dicas de leitura:
  • O corpo fala
  • O corpo tem suas razões
  • Complexo de cinderela
  • Síndrome de Peter Pan
  • He
  • She
  • We


 


terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Furby

Sobre a constituição da subjetividade e o conceito de alteridade

Após um intensivo e maçante trabalho de esgotamento de paciência, repleto de chantagens, cálculos financeiros e contagem de moedas,  cedemos a vontade de um consumidor mirim e compramos um Furby. Durante meses fui persuadida por um desejo persistente, pelas notícias trazidas diariamente da escola e das mil histórias envolvendo o bicho eletrônico peludo e tagarela. Além de achar um baita desperdício de grana, temia pela minha sanidade mental (que há essa altura anda um pouco comprometida ). Fato é, que o cara descolou uma provisão financeira de aniversário, juntou o dinheiro do lanche e negociou a última batatinha da lanchonete por um macarrão caseiro para completar a cifra e, no último domingo, recebemos um gremilin azul e amarelo na estante da sala que balbucia um dialeto babilônico extinto há milênios da face da terra.  Noo-noo day doo-ay! 
Como todo brinquedo - que deve ter uma vida mais curta do que uma mosca, ou ao menos até o próximo dia das crianças - o esquisito tem um desenvolvimento ultra power avançado. Assim que as quatro pilhas alcalinas entram em ação, ele amadurece mais rápido que banana no verão. De um estado basal furbylômico ( "todos nascem assim, Ohmãe!"), ele pode adquirir vários tipos de personalidades (calmo, bravo, amoroso, maluco, chato e misterioso), desenvolver uma habilidade (cantor, vicking, princesa, mutante e mais alguma coisa que eu esqueci ) e uma identidade de gênero (menino ou menina). Segundo o manual - um misto de livro de desenvolvimento infantil com guia de instalação e bom funcionamento - algumas dessas aquisições dependem da forma de interação.  Se não me falha a memória tentei passar a mesma idéia de um jeito muito mais dinâmico e constante - algo como trate os outros com respeito e educação, veja como nos relacionamos com os outros e todo esse blá,blá, blá típico de pai e mãe. 
Bom, hoje, durante uma das ligações vespertinas para verificar o estado geral da casa e das criancinhas fui convocada para uma conversa ao vivo e a cores assim que chegasse, o tema: Furby. Tinham o que dizer sobre seu desenvolvimento: era um menino, com habilidades artísticas, exímio cantor, que rapidamente aprendeu o dialeto local e acima de tudo tinha se revelado um bichinho com uma personalidade "de amor". Fiquei curiosa, queria mais informações sobre tantas revelações em tão pouco tempo. Sem pestanejar havia resposta para cada um dos itens. Era menino porque os cílios não faziam voltinha (afinal isso é coisa de menina, né?!) e pela voz grossa (fato confirmado pela cantoria infindável em dó maior). Quanto ao idioma os louros ficavam com o professor que se dedicou com afinco. Já a personalidade "do amor" era simples: primeiro ele precisava de um nome que gostasse e combinasse com ele - Puppy , depois era só tratar ele com carinho e atenção, lembrando a hora de comer, a hora de fazer cosquinhas na barriga, a hora de dormir, " tipo essas coisas que a gente gosta pra gente". 
Kay way-loh! 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Venho a público declarar minha posição em relação ao tema: 

Discordo plenamente da iniciativa da empresa enroladora dos papéis higiênicos Neve em achatar os pobres rolos de folhas duplas. 
A marca surgiu antes mesmo do meu glúteo e adjacências e, desde então, mantenho fidelidade e lealdade franciscana. 
Minha posição conta com argumentos consistentes: 

1 - Fica feio
2 - Ao desachatar perdemos a possibilidade de fazer sucata, tipo chocalho com grãos de arroz, caleidoscópio , borboleta, binóculo, porta-lápis. 

3 - O que é certo é certo. Alguém gosta de melancia quadrada, e de ovo em embalagem líquida e de papel higiênico achatado?!

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Tortura

Essa é mais uma cena frívola entre torturado e torturador. Técnicas ensaiadas, fiel ao script, obstinada aos apelos da vítima.

Se conheceram naquela tarde. O locutor da rádio local acabara de informar que a temperatura do mês fora a mais alta dos últimos quarenta e três anos. A força do ar condicionado lutava contra o entre e sai das pessoas. O cheiro era agradável, almíscar amadeirado temperava o ambiente misturado aos aromas que saiam dos frascos. Lavanda, rosas, sândalo, notas de bergamota. No fundo, canto da direita, a primeira fila se formava e o tom adocicado dava lugar a acidez vinda das prateleiras desenhadas por pequenas caixas enfileiradas. A pressa estampava os rostos que, na tentativa de abreviar o tempo, liam e reliam os papéis em mãos. Éramos a maioria, mas nosso poder era pífio diante dos uniformizados. A inquietação tomava conta do lugar, sabíamos que a espera se repetiria no encontro com um deles, na hora do acerto de contas e corríamos o risco de sermos barrados na saída. Quando acontecia com um de nós, não havia solidariedade que atenuasse os efeitos vexatórios. O maior de todos, vestido com trajes especiais, se aproximava com o porrete em mãos e iniciava a revista intimando a vítima a declarar a verdade. A vigia das crianças era constante, temíamos que, por brincadeira ou distração, levassem algum objeto para o lado proibido e soasse o alarme. Não havia com escapar. Todos os objetos estavam marcados por um código secreto que só os uniformizados sabiam como desativar. Era preciso muito cuidado. Não bastassem, câmeras dançavam de forma sincronizada diante dos nossos olhos, certamente havia alguém mais poderoso monitorando nossos passos e se divertindo com nossa agonia.
O exército fingia benevolência, sorriam durante a abordagem, demonstravam gentileza extrema por alguns. A violência física era proibida, mas coagiam a violência psicológica. Praticavam as regras do além-muro; priorizavam os velhos, doentes, deficientes e aquelas coitadas que seguravam sua prole no colo ou no ventre. Eram alvos fáceis para a tortura. Ele era um deles.

Chamou atenção assim que passou pela porta automática. Baixo, calvo e vagaroso, escondia a falta de cabelos por um boné puído. O rosto marcado revelava a ação do tempo. O pé inchado, apertado pelo desgastado chinelo de couro, não escondia a micose nas unhas e a erisipela na canela esquerda. O suspensório sustentava a calça curta e o cinto servia de apoio à bengala, enquanto procurava com dificuldade o papel branco no bolso rasgado. Pela grossura da lente mal enxergava e as poucas palavras que conseguia praguejar revelaram a barreira da língua e do cérebro.

Quando seus olhares se cruzaram pude notar o prazer sádico ouriçando os pêlos do seu corpo. Ela era linda. Pele alva, sorriso fácil, discreto. Cabelo preso em coque com dois finos tufos soltos embalados pela brisa do ar. A maquiagem era leve, sem cor. Os cílios protusos e os lábios suavemente brilhantes realçavam o rosa natural. As unhas impecáveis, leitosas, com um leve traço branco formavam uma borda de inocência; nos olhos vestia uma miopia branda, no máximo três graus e meio. Duas pequenas pérolas compunham o quadro, vindas diretamente da costa nórdica do oceano Índico. Ela era linda, serena e perversa.

- Posso ajudá-lo senhor?
- Não tô achando a receita...
- Não tenha pressa senhor.
- Bom, é esta aqui.
- Esse é nome do princípio ativo, o senhor quer genérico, similar ou da marca tradicional?
- Não, não, eu só quero esse aí.
- Sim, eu sei, mas qual dos três?
- Não, não, é só uma caixa.
- Só um instante que eu já volto.
...

- Pronto, são esses, qual o senhor quer?
- Não moça, é só um mesmo, só um mesmo.
- Mas o senhor precisa escolher, qual o senhor toma?
- Nenhum ainda, meu médico falou que agora eu preciso desse remédio para a ferida da perna, essa aqui olha.
- Sim eu sei senhor, bom... Seu documento, por favor.
- Ah... Acho que tava aqui, não, aqui, não, aqui!
- Obrigada, o senhor pode ler e assinar aqui?
- Eu não enxergo direito moça.
- Entendo, mas o senhor está ciente que não pode trocar o remédio?
- Sim, sim, sim.
- Me acompanhe até o caixa que eu cobro para o senhor.
...

- O senhor tem cartão fidelidade?
- O que, cartão? Não, não, vou pagar em dinheiro.
- Sim, entendo, CPF na nota?
- O quê, CPF? Pode ser.
- O senhor pode digitar aqui, por favor?
- Eu não enxergo direito, onde, onde?
- Aqui, deixe ajudá-lo? O senhor pode confirmar?
- Por favor, moça, faz para mim, eu não enxergo, não escuto direito.
- Sim, entendo. Mais alguma coisa senhor?
- Não, não, eu só quero ir embora.
- Sim, entendo. Dinheiro ou cartão?
- Toma aqui, toma aqui.
- São vinte e cinco reais e sessenta e cinco centavos.
- Tá bom, tá bom.
- O senhor teria sessenta e cinco centavos?
- Não, não, toma aqui, toma aqui.
- Sim, entendo. Aqui está o troco. Dez, vinte e cinco, trinta e cinquenta. A nota senhor, posso colocar na sacola.
- Sim, sim.
- Tenha uma boa tarde. Próximo.

Pude observá-lo até a entrada no carro preto parado na porta da farmácia.
Quem seria? O levariam para onde?
Pobre coitado.


Ela, sorridente, buscava a próxima vítima.