quarta-feira, 29 de maio de 2013

Segredos

Segredos íntimos se escondem na lista telefônica dos aparelhos celulares. Minha avó não tem celular; nem nunca teve. Ela nasceu em 1924 e o que de mais moderno fez parte da sua vida foi o cartão de débito do banco. Desistiu. Guarda o dinheiro numa carteira escondida tão bem no armário, que na maioria das vezes nem ela lembra que tem. Estipulou uma quantia: quatrocentos reais em notas de cinquenta, vinte e dez, para o caso de precisar dar um agrado  aos bisnetos. Minha avó certamente tem segredos, mas ela anda um pouco esquecida, tanto que os  esqueceu. Já os telefones, ela mantém anotados numa agendinha de mão tão velha quanto ela e que certamente revela bons segredos. Tem a Carmela do cerzido, a dona Carolina da quitanda, a Lurdinha do bolo de noiva e seu Armando, que ninguém sabe de onde é. Quando eu era mais nova, as vezes, minha avó dizia que eu andava com uma gente esquisita, mas hoje ela pensa que todo mundo é um pouco estranho e tudo bem, afinal, segundo ela, é por isso que eu tenho tanto freguês. Outro dia perguntou como eu lembrava de todos. Expliquei que anotava os nomes dos meus "fregueses" na agenda do celular, dos que estão e dos que estiveram. Como ela, eu usava um lembrete para diferenciá-los. Fazem parte de um grupo que denominei pelo nome do bairro em que fica meu consultório, a maioria eu nem sei o sobrenome, porque não importa.Alguns são identificados pelo bairro, nome e indicação. Outros pelo grau de parentesco existente, como o pai do fulano. Tem dado certo. Mal sabe minha avó que eu continuo andando com uma gente esquisita. Amigos. Um deles lembra dos seus fregueses de um jeito interessante. Hoje, entre um café e um biscoitinho seu telefone tocou cinco vezes. Em todas pediu licença para atender. Primeiro era o Ricardo Tep, depois o Juninho Bcp, o Álvaro Enfisema , Ana Maria DPOC e a Sara Sara, com essa última ficou especialmente feliz. Desejou sorte. Estranho. Bem estranho. 

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Momento catártico

 
Última meia hora de trabalho na internet, passada inevitável pelo face.
Toca o telefone e é a fofolete da atendente recém contratada pela porra do meu banco. Resolvi praticar a benevolência, uma das cinco metas para o próximo milênio. Afinal, tem sempre alguém mais ferrado do que a gente. Respondi com carinho todas as perguntas imbecis que levam do nada para lugar nenhum. Escutei com a atenção de um analista o discurso fabricado por alguma agência de publicidade.

 
- Temos algumas opções de produto para senhora.
- OK, siga aprendiz
- A senhora tem algum sonho para esse ano que ainda não conseguiu realizar?
- Faz me rir, né!?
- Não se...
nhora, um plano como carro, casa, viagem ao exterior,...
- Não senhora, meus planos são escusos, envolvem sangue, práticas recriminadas pelo estado. E meus sonhos nem meu marido pode saber.
- Entendo senhora, eu como sua consultora financeira quero lhe indicar uma linha de crédito.


 ( Pensei: essa pobre coitada que deve ganhar um salário mínimo por mês e tomar chicotada a cada ligação desligada se diz consultora financeira! Tem alguma coisa fora de órbita! Mas vamos lá: BENEVOLÊNCIA)

- Eu agradeço sua atenção, mas não tenho interesse.
- Entendo senhora, mas a sua linha de crédito pode acabar a qualquer momento.

 ( Quanto mais eu devo, mais linha de crédito aparece)

 - Ok, agora eu vou desligar.
- Entendo senhora, fico feliz em tê-la como cliente, mas as condições são vantajosas.

 (Aí eu perdi a classe)

- O negócio é o seguinte, eu não sou senhora, a senhora não é consultora financeira, aliás male male sabe fazer equação de segundo grau, por favor não me enche o saco e muito menos diga que fica feliz, a senhora não tem motivo para ser feliz ou tem? Tem carro, casa própria, já foi pro exterior, o filho passou de ano, seu marido tá empregado, quanto tempo você fica no trânsito até chegar no trabalho, esses caras dão alguma atenção pra você , sabem ao menos seu nome, então ... caso a senhora não tenha tv em casa essa propaganda é da porra do supermercado, aliás, aproveitando a ligação ... o que faz você feliz, hein senhora?

 (A mulher começou a chorar. Marquei um horário no consultório pro próximo domingo, é o único dia que ela pode. Benevolência, benevolência ...)


 
 
 

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Manual alternativo de patologias relacionais


Em meio ao lançamento do último DSM, o V , tenho lido reportagens de toda sorte de críticas e indignações a respeito do excesso de diagnósticos propostos pelos ditos papas da psiquiatria. O normal se patologizou e por conseqüência se medicalizou. A isso soma o discurso de que a criação de categorias diagnósticas bem definidas orienta o trabalho dos profissionais de saúde, pois estabelece diretrizes terapêuticas. Fato é que a galera não se apresenta mais pelo apelido, nome ou sobrenome; viramos uma grande família: dos deprimidos, ansiosos ou qualquer outra possibilidade. E eu, que sou uma integrante da segunda maior família brasileira – a primeira são dos Silvas e a segunda dos Santos, os Souzas não tem com o que se preocuparem, ocupam o terceiro lugar – perdi posto. 

Os consultórios lotam de humanos – muito jovens e muito velhos – enchendo a cara de pílulas milagrosas. Trabalhando a partir do dispositivo da psicanálise tenho sambado miudinho para dar conta de manter um canal de comunicação com os profissionais que tem o poder, ou seja, o receituário azul. Quando usar ? Porque usar ? De que forma usar ? são perguntas constantes na clínica. As famílias ou os adultos que vem para análise – e, portanto já fizeram um movimento em busca de ajuda – normalmente nos questionam sobre efeitos do uso da medicação. Respondo: eu não sei. E de fato não sei, pois as conseqüências (ou desdobramentos) que podem ocorrer ao se reconhecer numa tipologia patológica com uma medicação específica, só aparecerão a posteriori. Conheço pessoas (algumas) que fazem uso contínuo, há anos, de medicações psicoativas, pois entendem um transtorno transitório como uma patologia crônica. Sabemos, que a lógica da pulsão tende a evitação do conflito, o que ela quer é realizar-se, chegando a um ponto muito próximo do zero. O trabalho de uma análise se propõe a adiar essa compulsão a repetição e para isso recorre-se a outras formas de suportar a dor, em geral utilizando o método da palavra. Às vezes a briga é injusta.

Recordar, repetir para só então elaborar perde terreno para anestesiar, esquecer e repetir, a partir do mesmo lugar, com uma maquiagem diferente. Trata-se de um traço sutil; percebemos nas nuances do discurso um sujeito posicionado na vida a partir de um diagnóstico medicado.

Outro dado importante é que tem muita gente ganhando dinheiro volumoso com isso e essa cara não sou eu. Psicanálise dá trabalho, não é dos tratamentos mais baratos (ex: uma caixa de um remedinho que segura a onda das mulheres no puerpério e de lambuja promete aumentar a produção de leite custa R$10,30 nas melhores drogarias), custa tempo (vamos combinar que uma vez por semana é o mínimo para o tratamento funcionar) e não tem a dose definida de saída (diferente da classe de antidepressivos que promete um ano de tratamento assim que o sujeito se sentir plenamente feliz, ou seja, nunca).

Um ponto questionável nos manuais diagnósticos de psiquiatria diz respeito ao texto se propor a catalogar e agrupar sinais que compõe uma categoria nosográfica. No entanto, não há, nem antes nem depois, capítulos que se ocupem em discutir etiologia, consequências e tratamentos. Parece que as coisas são porque são.

As teorias psicodinâmicas, sociais, antropológicas enfim, a turma das ciências humanas, queimam a pestana tentando compreender como uma gente vira gente, como se tornam saudáveis e/ou doentes. Em comum concordam com uma palavra: alteridade.

A respeito da alteridade, outro dia, assistindo a aula de uma colega competente, discutíamos que a melhor forma de se fazer gente é com outra gente (de preferência com alguma qualidade). O problema é que gente não vende, porque tá aí aos montes, basta olhar para o lado que certamente tem uma gente dando sopa. Já mini ofurô para banho, termômetro ultra sônico, babá eletrônica tridimensional que traduz o significado do choro do bebê, porta pedaço de picanha para retirar o sumo da carne e lenços aromatizados de lavanda e melissa que servem para acalmar o recém nascido , ah! ... isso não tem em qualquer lugar (em Miami certamente tem), custa caro, a publicidade se regozija com cada propaganda veiculada e por aí vai. Com diria Salim: "loginha" de promessas.

Bom, decidi entrelaçar esses dois temas (sociedade do consumo e pandemia de doenças psiquiátricas) com a pretensão de vender meu peixe (rico em ômega 3), afinal de contador de caso e caixeiro viajante todo mundo tem um pouco.

Proponho então, a criação de um manual alternativo para patologias relacionais. Isso quer dizer que a etiologia dos quadros abaixo derivam da troca com o Outro, at all.
Os quadros foram apresentados seguindo um trilhamento cronológico, contudo vale ressaltar que contingências podem interferir no momento da manifestação, ou seja, durante toda vida.

1.Transtorno dismórfico corporal da primeira infância: acomete bebês que se oferecem enquanto objeto de satisfação do Outro. Em geral eles acreditam que se resumem a uma mãozinha ou um pezinho e por vezes, a própria barriga e que a parte do corpo elegida saciará a fome da mamãe.

2.Transtorno de angústia de separação: normalmente ocorre por volta do 8º mês de vida, a criança demonstra estranhamento quando separada das figuras importantes. Manifesta insegurança através do choro e resistência em permanecer com pessoas que não a mamãe. Conhecido também como a Crise do Baby Sauro.
 
3.Transtorno esquisito de aquisição de linguagem: a criança nomeia objetos a partir da sua função. Normalmente indica uma imitação dos genitores que regrediram a idade mental da mesma chamando o carrinho de vrumvrum. Praticamente um grunhido. Na gramática pertence a classe das figuras de linguagem e tem um nome bem sugestivo para um transtorno: onomatopéia.
 
4.Síndrome do bicho papão: a criança jura que um monstro S/A habita o andar de baixo da sua cama, alguns se escondem dentro do guarda-roupa e os menos habilidosos permanecem atrás da porta. Os sinais associados são: dificuldade em dormir no escuro, sustos espontâneos e eventualmente xixi na cama. Existem variantes da tipologia dos monstros como: bruxas, dinossauros, assombrações. Alguns estudos (com hipersensibilidade) indicam que esse transtorno tem uma intenção subliminar : dormir agarradinho com a mamãe e o papai.
 
5.Distúrbio do Marcelo, Marmelo, Martelo: o nome do quadro foi dado em homenagem a PHD Dra. Ruth Rocha, que descreveu pela primeira vez o quadro sintomatológico do seu paciente MMM. Trata-se de crianças que questionam o sentido e significado das coisas. Há relatos de comorbidade com o 5.1Transtorno Ecolálico com prevalência da palavra PORQUÊ, PORQUE e POR QUE.
 
6.Distúrbio sonoro esquizo alucinatório: acomete mais meninos do que meninas, trata-se de um prazer discordante dos bons comportamentos instituídos pelas mães (somente as mães) . O fedelho costuma arrotar e soltar pums em ambientes inadequados (embora nesse caso só o banheiro seja adequado). Quando acusado diz que nada aconteceu, que não ouviu nada, atribuindo ao observador o caráter alucinatório. Causa incômodo em ambientes fechados e situações silenciosas, como: reuniões, missas e consultórios médicos.
 
7.Transtorno da Liga da Justiça: mais comum de acometer primogênitos que costumam questionar e reivindicar seu reinado. Manifestam-se de forma birrenta sempre que o caçula obteve, segundo seu parecer, algum privilégio. Pode ser desde uma bala até aquele dia, há meses, que o fulaninho dormiu na cama dos pais, porque estava com 40 de febre e ele, o maior, não. Alguns choram , outros gritam. Em casos mais graves podem bater o pé no chão em sinal de protesto. 7.1 Comorbidade com o transtorno somatoforme atípico: quando sugerem doença sem causa aparente. Para diagnóstico diferencial basta dar um beijinho no local indicado, se passar confirma o transtorno.
 
8.Transtorno tripolar: os primeiros sinais aparecem na pré-adolescência. Alternam estados de euforia com profunda depressão e, ocasionalmente, instantes de plena indiferença, normalmente basta o(a) melhor(a) amigo(a) ligar convidando para sair que tudo se resolve.
 
9.Transtorno disrruptivo de besteirol: revela-se através de um ataque súbito de risadas exageradas sem motivo aparente. Indicam que uma palavra, um gesto ou qualquer bobagem que o valha, em geral vinda do outro, causou o quadro. Altamente contagioso, de rápida transmissão e propagação. Custa a passar. Pode acarretar lacrimejamento sem sugerir tristeza. Conhecido popularmente como "chorar de rir".
 
10.Transtorno de espelhamento: a criança ou adolescente passa horas em frente a um objeto refletor. Normalmente esta associado a sinais precoces de auto-reconhecimento. Os mais afetados pelo transtorno, quando questionados, respondem que mantêm esse comportamento por serem muito lindos. De forma covarde acusam os genitores de terem reforçado essa crença.

Se apresentar 2 ou 3 dos sintomas abaixo, certamente sua cria padece de uma moléstia gravíssima, procure imediatamente ajuda, você pode levá-lo ao parque, convidá-lo para fazer um bolo de chocolate, tomar banho de chuva, ver um filme de sofá com pipoca ou cantar uma música de suas preferências. A posologia será definida enquanto durarem os sintomas. Alguns casos apresentaram efeitos colaterais severos como reforçamento dos sintomas. Atenção : sujeito a vício.

Se você tem algum relato, depoimento, declaração ou testemunho sinta-se a vontade, esse é um canal aberto. Como profissional da saúde entendo e concordo com a necessidade de diretrizes, mas a partir da clínica me oponho aos abusos que se mostram tão ou mais violentos do que a própria doença.

Além do mais, para a vida, a cada dia reafirmo a certeza que o humor bem dosado é uma forma de resistência aos excessos.

E em breve lançaremos o DSM da mulher madura.

Aguardem.
 



segunda-feira, 20 de maio de 2013

Carta branca

 
Existem várias formas de eternizar um personagem. Papéis de sucesso em Hollywood, grandes pensadores, inventores dignos de um Nobel e até mesmo um serial killer procurado pela Interpol. Mas não há método mais sólido do que acordar, perante um padre, qual será a carta branca de um casamento. Foi assim que Javier entrou em nossas vidas.

Era um sábado de primavera, os preparativos para a festa foram calculados durante os quatro meses que antecederam aquele vinte de novembro. A casa rupestre, na gema da cidade grande, foi escolhida e aprovada por todos: meus pais, meus sogros e a infinidade de padrinhos que abençoaram nossa união. As flores, as músicas, as comidinhas e a quantidade de bebida por convidado, tudo foi minuciosamente discutido, pensado, provado e aprovado. O vestido desenhado e confeccionado pela madrinha sofreu ajustes até a véspera. A ansiedade da noiva mostrou sua força e eficácia contra todos os regimes já tentados. Eu estava linda! Linda e radiante como uma princesa deve ser. O dia amanheceu ensolarado, mas manifestou sua revolta trazendo uma tempestade inesperada. Não foi suficiente para desmanchar nossa felicidade. Dizem que os casamentos abençoados em dias de chuva duram eternamente.  Às dezoito horas meu pai me esperava na porta do salão. Se emocionou como nunca antes e beijou minha testa me desejando o mundo.

Como manda o figurino fui entregue ao noivo. Só nos sabíamos do combinado, quando o padre terminasse o sermão e lê-se os votos, selaríamos nossa união com um beijo nos lábios e as cartas brancas em mente. Assim de simples.

Era um sábado de primavera do século passado. De lá pra cá a vida seguiu e aconteceu. Comemoramos a festa até o sol raiar, aproveitamos cada chocolate de menta esquecido no travesseiro da lua de mel, voltamos para casa nova, para o trabalho, para os estudos, para os filhos que vieram, para as crises e reconciliações.

Como nós, Javier seguia trabalhando. Durante esses anos encarnou toda sorte de personagens. Foi David em Carne Trêmula, o excepcional Ramon Sampedro em Mar adentro, impressionou o mundo como o assassino Anton Chigurh em Ondes os fracos não têm vez. Conheceu Penélope como Juan Antonio de Vicky Cristina e Barcelona e ganhou meu eterno amor contracenando com Julia Roberts em Comer, Rezar e Amar. Ah! Felipe! Quantas noites esteve presente em meus sonhos! Também se casou e com ela teve um filho: Léo, como o meu. Não era dada a superstições, mas a escolha do mesmo nome era muita coincidência, outra, além do Bardem – Bader. Destinos cruzados, não?!

Bom, vocês devem estar se perguntando o que significa uma carta branca. Pois bem: carta branca é um empréstimo do francês carte blanche, que traduzido ao pé da letra quer dizer cheque em branco. Com um pouco de transformação podemos utilizar a expressão como uma forma de atribuir poderes plenos e ilimitados a alguém. Dentro de um casamento monogâmico católico romano, quer dizer que você pode pular a cerca sem dó na consciência.  Seu uso é único e irrestrito, permite ao par que proceda como quiser, sem consequências para a união, quando de um objeto de desejo cruzar o seu caminho. Para que o documento seja utilizado com critérios de segurança, devemos garantir que o objeto representado seja alguém da ordem do impossível. O meu era Javier.

Tão logo todos saíram a campainha tocou. Que saco! Com o dia livre minha programação era sair da cama assim que o sol se pusesse. De cara e humor amassados, abri a porta e encontrei uma figura familiar segurando um envelope.

- Javier?!

- Sí,  ¿cómo está

Um pouco confusa perguntei a que devia a honra.

- Vino personalmente a darle carta blanca.

Vivi instantes de arrependimento. Pensei: maldita hora que eu desmarquei aquela depilação! Achei um pouco ousado me atirar nos braços do rapaz ali na garagem, o guarda, em alerta, caminhava com tanta agilidade de um lado para o outro que aquela altura eu já era manchete do jornal do bairro. No me importa! Convidei-o para entrar, ofereci a cadeira e pedi uns minutos para me arrumar. Chuveirada express, escovei os dentes, lavei rosto e vesti certamente o pior traje do guarda-roupa. Não pensava nem no meu marido, tão pouco em Javier, tentava a todo custo lembrar que modelito Penélope vestia na última capa da revista Caras. Decidi pelo moletom velho e despojado, acompanhado da camiseta branca surrada. Pra fazer um charme coloquei um sutiã preto e prendi o cabelo um tanto desarrumado. Passei uma base informal e um brilho nos lábios. Borrifei duas ou três vezes a água de colônia e fui. Na verdade eu estava mais para uma lavadeira do Abaeté do que para uma mulher sexy, mas ... Voltei para sala e ele, servido de uma dose de uísque admirava o quadro exposto na parede da sala de jantar. Caraca! Plena segunda de manhã, eu numa ressaca lôca, daquelas que nem o povo do Palau daria conta de rebater e aquele homem na minha frente tomando um destilado! Pelas barbas de Santo Isidoro de Sevilha!

- ¿quieren una dosis

- Sí, claro! Porque no? – era o máximo que meu espanhol suportava

- Que bella foto. ¿ donde és ¿Grand Central Station

- Não, não. É a estação da Luz, é central também , mas é aqui em São Paulo, capite?

- Sí, como no.  ¿  Puedo poner una canción.

- Si, como no. Puede ligar.

O tempo para a leitura do CD certamente foi o silêncio mais duradouro que já vivi em toda minha vida. Adormecido na caixa três do tocador estava, nada mais nada menos, que a famosa Mart´nalia ao som de Cabide. Entreguei pra G-zuis! Entornei o copo ao mesmo tempo de Javier completava o outro. Surreal era o adjetivo mais simples para descrever a cena. Quando a negona soltou a pérola “Quero ver chegar junto Prá me juntar, eh! Me fazer sentir mais viva Me apertar o corpo e a alma Me fazendo suar Quero beijos sem tréguas Quero sete mi'léguas Sem descansar Quero ver Se você tem atitude Se vai encarar... “

-   ¿  el que és el bela canción

O que você responde para um cidadão a respeito da letra dessa música! Trata-se de sexo selvagem, amore mio. É disso que se trata, mas eu não sabia traduzir pro tal do catalão “chegar junto pra me juntar”, era demais pro meu latim. A malemolência da carioca de Vila Isabel falava por si. Bastou meu olhar, ele com aquela mão carnuda, dedos grossos, me puxou pelos cabelos e enquanto segurava minha coxa em volta da sua cintura, lembrei do meu pai me desejando o mundo, do acordo com o marido, da benção secreta do padre e dos intermináveis anos de análise negociando com minha analista e meu super ego o tal do reconhecimento do meu desejo insconsciente ... ele estava ali, encarnado no melhor modelo. Aumentei o volume e não passei vontade. Bem soube o quanto o pé de mármore da mesa de jantar era resistente. Pagamos em cinco parcelas dolorosas, mas sabíamos que era forte. Aguentou a mim, Javier e toda sorte de desejos inescrupulosos que habitavam minha mente. Ah Javier! Nunca mais serei a mesma; tamanha a vergonha que passei, quando a Maria, minha empregada diretamente de Carapicuiba, me acordou assustada:

- Dona Patricia, dona Patricia ... tá tudo bem com a senhora? Tá sentindo alguma coisa?  Quer que eu peça ajuda pra vizinha? A senhora tá tão estranha ... vou preparar um chá e já volto.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Casu Marzu : a larva.


Por favor, entre. Que bom que chegou! Deixe eu guardar sua bolsa e seu casaco. Quer tomar alguma coisa? Acabei de preparar um chá, mas se preferir passo um café. Nem uma água? Vou buscar. Sente-se. Mais uma vez obrigado por vir, preciso muito te contar uma história. Já faz um tempo que tenho sentido um mal estar pela manhã. Pensei que fosse algum processo infeccioso, tomei uma medicação por conta, melhorou um pouco nos primeiros dias, mas depois além do aperto no peito, as dores estomacais agravaram meu estado. Decidi me consultar com um médico, não sabia quem procurar até que os colegas me indicaram um clínico geral com especialidade em coração. Disseram que na minha idade seria importante avaliar o rendimento cardíaco, tantos anos trabalhando com fermentação, cavocando buracos nos queijos, minha pressão alterada ... enfim, aceitei. O doutor demonstrou preocupação logo de cara; pediu uma infinidade de exames, teste ergométrico e cuidado com a alimentação. Achou prudente largar o cigarro. Expliquei a ele que meu trabalho não favorecia suas recomendações e que o cigarro ... não passavam de cinco por dia. Com essa vigilância pro-saúde, programas anti-tabagismo, meu prazer estava bastante limitado. E quanto ao emprego ... onde uma larva como eu conseguiria um colocação tão digna?! Bem sei quantos degraus galguei para chegar aqui! Foram anos de dedicação.
Na juventude fiz estágio numa fruteira apodrecendo bananas e laranjas, depois consegui uma vaga na goiabeira do seu Nhô Lau. Trabalhei por uns tempos nos sacos de arroz e nos pacotes de feijão e de farinha de trigo, mas nada, nada se comparava com a fermentação. E não se trata de qualquer seguimento de laticínios, você sabe como é. Na época dos iogurtes eu vivia com azia, quando passei no processo de recolocação interna para a vaga do meia-cura, meu tormento era o sotaque mineiro e nem por isso deixei de ir, na sequência teve o cream cheese, o queijo prato, as bolinhas de mussarela de búfala e eu sempre presente e dedicado ao trabalho ... até que no último ano, finalmente fui promovido ao Casu Marzu ... o mais puro queijo de ovelha já visto no mundo! O The Washington Post dedicou um artigo sobre meu trabalho! Ganhamos o prêmio Noticia Bizarra do ano, mas e daí?! Nem os Nobels conseguem um espaço de tanta visibilidade na mídia. 
Ah! Agora eu sei que sou da tropa de elite dos queijos. Aquele aroma, a mudança de coloração durante o decomposição  ... uma verdadeira obra de arte, me lembra muito as pinturas do Renoir. 
Posso ser acusado de vaidoso, mas como não ser?! Eu sou um verme! Um verme! Um verme que não tem a chance nem mesmo de virar mosca! Eu posso ser devorado antes! Com a proibição da comercialização do queijo, os apreciadores estão cada vez mais ousados. Deram agora para comer o queijo sem esperar nossa partida. Pegam a colher  e degustam minha vida com uma taça de vinho em punho. 
Você não é a primeira pessoa a falar isso. Ja pensei se estou com depressão, mas se for ... o que posso fazer? Viver no campo?! Que seja ironia, sair daqui seria um ato de covardia. Todos almejam minha posição. Sou reconhecido, louvado, tratado com respeito como poucos. Não estou sendo arrogante, é verdade. Desde que fui promovido sou tratado por doutor, ainda que minha especialidade seja apodrecer queijos!!! Isso é irônico. 
Sim, sim, tenho lido reportagens sobre a vida minimalista, mas você há de convir que não existe vida mais mínima do que a minha, lembre-se: eu sou um verme. 
Negação?! Mecanismo de defesa?! Será!? Você tem alguma razão. Não tenho mais amigos, minha última namorada ... não lembro, talvez na fazenda. Férias? Emendei o feriado do dia do trabalho no ano passado, caiu num sábado. Mas era meu plantão! 

(Silêncio)

Pensando bem o campo pode ser uma ... sempre é uma opção. O mercado de trabalho é convidativo; não é tão glamouroso, mas a alimentação é orgânica, posso tomar banho de sol todos os dias, passear pelos pastos e com um pouco de sorte até virar mosca. As vacas não são tão ágeis quanto os queijolatras. Demoram a alcançar as feridas com aquela língua gosmenta. 
Conheço um cara que tirou uma ano sabático. É um bom jeito de encarar um afastamento. 
É ... você tem razão ... sabe que me sinto um pouco melhor?! Falar é sempre bom. De qualquer forma muito obrigado. 
Podemos nos encontrar a semana que vem?
Quer mais uma água ?  

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Como uma caminhada pode virar um programa de índio


Há tempos (não mais do que quinze dias) não via o núcleo íntimo da família. Sábado ensolarado, resolvemos proporcionar um almoço para os entes queridos (incluindo o cunhado-agregado). A simpatia do meu marido, num ato de gentileza, reforçou a lembrança para que trouxessem uma troca de roupa, afinal com uma casa tão espaçosa, todos poderiam ficar para dormir. Levaram a sério. Antes do meio dia uma van estacionou na minha garagem descarregando pessoas - munidas de malas - de todas as idades. 

Uhu! Quanta animação! Crianças correndo pelos cômodos, a música brigando por espaço com o barulho da TV, cerveja respingando no piso branco da cozinha, intrusos petiscando direto da panela, basicamente família como deve ser. 

O almoço estava ótimo; comemos, atualizamos o feed de notícias de todos os outros não presentes, discutimos as manchetes da semana e já programamos até o réveillon. Até aí, tudo bem! 

Normalmente após o quinto cafezinho, com os homens deitados na frente da TV (vendo alguma semi-final dos mil campeonatos existentes no mundo) e as crianças um pouco mais calmas, nós, as irmãs metralhas, costumamos levar o cartão de crédito da nossa mãe para dar uma volta no shopping. Propus que fossemos a pé, afinal uma breve caminhada ajudaria a atenuar os efeitos da refeição nababesca. Insisti, Deus sabe como insisti, mas a fofolete resistiu a investida, alegando medo do escuro. 33 anos! Faz me rir! 

Entre contra-argumentos, discussão acalorada, minha mãe desistindo do cartão,  aconteceu o inesperado: os presentes - menos os homens, é claro! - voltaram suas atenções para nós e em minutos, o que seria uma breve caminhada, tornou-se um mico: final de tarde de sábado, van apinhada, partimos rumo ao shopping abarrotado. Até a bisa, com quase noventa anos, acordou do sono eterno em frente a TV e veio a galope com o chinelinho na mão gritando: Eu também vou, eu também vou! Quero conhecer o shopping de Osasco! 

Socorro! Só uma vozinha octogenária para obter prazer num shopping de Osasco! Uma das crianças, a fim de garantir lugar na excursão, entrou no porta mala e lá ficou. Sem saída, partimos.

Bom, conseguimos permanecer cerca de 2h no estabelecimento, suficientes para comprarmos alguns itens de necessidade básica: um celular, um óculos de sol, uma chaleira elétrica, pilhas, uma camiseta do super homem, 20 pacotes de figurinhas, um morango no espeto, dois pretzels e cafés, muitos cafés. Preocupadas em perder um bebê de dois anos ou uma velhinha um pouco atrapalhada decidimos retornar. 

Parênteses: em outros textos já fiz listas de itens básicos e me dei conta que em todos, alguém comprou um óculos de sol; que família louca, né?!  

Quase próximos da saída, notamos pelos milhares de cartazes espalhados que estávamos em plena campanha do dia das mães. Evidentemente que não concorríamos a uma viagem para Suíça, tão pouco um kit da L'occitane. O brinde, compatível com o local, era um relógio de parede que mais parecia uma pizza brotinho; uma chapa de compensado adesivada com a palavra amor  entre duas maritacas, dois macacos prego e dois adoráveis  coelhinhos  (acho que sobrou da campanha do dia dos namorados). Enfim, nossa pequena fortuna de compras básicas nos garantiu meia dúzia de peças repetidas, uma vez que só ofereciam três lindos modelos. Virou piada. Trocamos um por cafés, os outros embrulhamos para presentes: daremos, no próximo dia das mães, para as sogras, para a tia avó, para a vizinha gente boa e para a bisa, que como anda meio surda não escutará o melódico motor importado da China. Enlouquecedor! 

Obviamente que na volta ao lar os meninos crescidos sorriam enquanto abriam mais uma cerveja. 

Família. 

Cenário


16:51. Um rapaz espera o ônibus recostado na parede do ponto, veste camisa rosa, gravata curta e óculos de sol. Faz sol. A moça do tempo anuncia a chegada da frente fria e da baixa umidade do ar. Embaixo da ponte um mendigo brinca com seus cachorros. O menor brinca com a capivara no canteiro do rio. Há uma capivara no canteiro do rio. Um amontoado de pessoas fuma crack. No bar os homens bebem cerveja na segunda-feira. As crianças brincam entre elas e com outros cachorros. O mendigo já ficou para trás. No farol o palhaço vende pirulito e o cego acompanhado pede esmola. A mãe de uma pessoa do amontoado também pede. Na ponte um grupo de três corredores correm, rápido. Perto, um grupo de dois pedala, mais rápido. Um motociclista é atropelado. Seu capacete voa. O helicóptero azul pousa depressa. A pomba, menos ágil, quase é atropelada pelo carro. O menino beija a boca da menina. Um ônibus freia, passageiros sobem e descem. Outras crianças atravessam na faixa de pedestre, aquelas ficaram para trás. O farol fecha e abre. Passo a primeira, a segunda e a terceira lombada. Dou passagem para a ambulância. O carro grande aproveita a passagem. O guardinha acena e também me dá passagem. E eu? Chego em casa. 17:04.