quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Ficção

  

Meio dia de uma sexta é um bom horário para iniciar as férias. Passar uns dias longe de qualquer tela deve restabelecer minha paciência com a humanidade. Parece poético dizer que minha matéria prima são as pessoas, mas o contato via dispositivos eletrônicos borrou um tanto as relações; efeitos pandêmicos. Termino o ano com planos ultrapassados, reduzir o tempo aos interessados em levar suas neuroses à planícies mais calmas e dedicar espaço ao ócio. 

Não hoje; tenho uma pilha de burocracias gritando por prazos e cobranças antigas esperando resoluções. 

Uma mensagem no celular desmente meus planos: “Doutora, quem me passou seu telefone foi a doutora Regina pediatra da minha filha, gostaria de agendar um horário com urgência”. 

Os pedidos de véspera de Natal sempre me instigam. São diferentes dos que acontecem nos primeiros dias do ano, época de promessas vazias. Quem pede ajuda no Natal revela um certo desespero, um pedido de medida protetiva para atravessar a época de balanço. 

Bem poderia ignorar a mensagem e deixá-la naufragar na lista de pendências, mas decido responder. 

A Regina sempre faz encaminhamentos precisos, sua análise e sua prática clínica entregam casos com o trauma circunscrito. 

Ligo para a mãe, com preguiça, mas certa de que imprimir a voz no primeiro contato contribui para a construção do trabalho. 

A menina tem quatro anos, passou por uma situação traumática e a família não sabe se o que ela conta é fantasia ou realidade. Os pais parecem devastados; trauma recente. Agendo para a sexta, sabendo do risco de levar a questão para as férias. 

Chego cedo ao consultório, piso na poça de água no estacionamento, já estou atrasada. Abro a porta, acendo a cafeteira enquanto ligo o computador para a série on-line de trabalho. Distraída, esbarro na caneca e inundo a fórmica branca de uma borra quente de café. Escorre pelos cantos, pela parede, molha a agenda e o Seminário 11 depositado no canto esquerdo da mesa.  Respiro fundo e atribuo o gesto a pressa. Gasto um pacote de papel toalha para diminuir o dano, inutilmente. Atendo dois pacientes, faço uma reunião na posição passiva enquanto a manicure pinta minhas unhas de magenta. Depois gasto mais um par de horas finalizando relatórios e outras burocracias que uma secretária daria conta. 

Tenho uma hora de almoço e nenhuma fome. No frigobar uma maçã murcha, uma água de coco e um pacote de bolacha velha. Decido ficar por ali mesmo, estou sem paciência para os outros. Deito no divã e termino o livro com o auxílio do despertador; meia hora de cochilo deve ajudar a atravessar o último período de trabalho. 

Quinze minutos antes do horário combinado levanto, escovo os dentes olhando no espelho, o botox ficou bom, mas não liquidou a ruga na minha sobrancelha direita. A dermatologista falou que ali só preenchimento, mas a ideia de injetar um líquido estranho na testa não me parece confiável. Ajeito o cabelo, penso em passar um batom, mas lembro que a máscara me liberta destas vaidades vulgares.

Espirro um desinfetante na sala, por precaução higienizo os braços das poltronas e sento com as pernas cruzadas em posição de analista, a quarentena me fez esquecer o semblante de suposto saber necessário para as análises. 

Eles chegam pontualmente e juntos, não raro preciso esperar os casais se encontrarem na sala de espera antes do início da sessão. 

Cumprimento padrão, ofereço água e café, não aceitam, dirijo os a sala e as poltronas destinadas aos pacientes. Estão visivelmente assustados, checo a caixa de lenços e o relógio, pressinto que essa conversa levará tempo. 

Maria Clara tem 4 anos, quase 5, filha única, frequenta a escola desde o berçário. Aprendeu a falar cedo, geniosa (como a descrevem), decide pelas roupas, demonstra preferências por brinquedos, comidas e lugares. Nomeia os melhores amigos, já consegue se virar na piscina, sabe o nome da rua e do bairro que moram. Os pais trabalham, a mãe de mais, o pai de menos. A menina tem (ou tinha) uma rotina de mini executiva: escola, natação, dia de clube, horário de parquinho. A babá, Nena, trabalha pra família desde que Maria Clara nasceu. Dormiu no quarto com a menina até os dois anos, depois se mudou para um cômodo na lavanderia. São (ou eram) íntimas. 

A babá acompanhava a criança em todas as atividades. Sabia o nome das amigas, cortava o bife no tamanho certo, coava o suco de laranja, era uma mecenas física, social e psicológica da criança. Colocava para dormir e contava histórias de ninar todas as noites. 

Os pais participavam das atividades, mas confiavam tanto na relação das duas que não se incomodavam com a presença constante de uma estranha familiar pelos cantos  da casa. 

Um dia inteiro depois de um dia qualquer estranharam o silêncio dos cômodos, cena improvável. Primeiro pensaram que foram terminar a brincadeira no prédio de uma amiguinha, depois talvez uma tarde demorada na casa da avó; o telefone da babá não atendia, as mensagens lidas sem respostas, nenhuma hipótese confirmada e, com o avançar  da hora, suspeitaram pelo trágico.

Como dois neuróticos funcionais, recorreram a ordem suprema: delegacia de polícia. Desespero e informações detalhadas, o delegado contribuiu para o que seria a pior noite de suas vidas. De acidentes a sequestro, todas as hipóteses foram levantadas para iniciar as investigações. 

Discurso desordenado imerso a um mar de lágrimas, me contaram a trajetória infernal das horas seguintes. 

Percebi que estava na mesma posição há quarenta minutos quando minha perna direita adormeceu e começou a doer. Pensei em descruza-lá, talvez mudar de lado ou simplesmente pousa-las paralelas com os pés no chão. Não tive coragem. Permaneci assim até um momento em que a mãe, tamanha angústia, insinuou vomitar no tapete. Precipitei a caixa de lenços e em seguida ofereci a garrafa de água disposta na minha escrivaninha. 

Ela aceitou, deu um gole tão intenso que pude escutar o movimento da laringe decidindo se mandava o líquido para o estômago ou para o pulmão. O pai, ansioso, chacoalhava as pernas desordenadamente. Olhou para o relógio, para a mulher e para mim. Avisei  que tínhamos tempo, ajeitei as pernas, lembrei da conversa pelo celular, a menina estava com eles, foi a Regina que encaminhou, tinha algo de fantasia ou realidade; eles chegariam a questão. 

Enquanto esperavam por alguma notícia da polícia, parece que se empenharam por aniquilar o casamento. 

Pelo que pude testemunhar por ali, na tentativa de exaurir o horror das fantasias sobre o sumiço da filha, não faltaram todos os ingredientes nocivos à qualquer relação: desespero, raiva, acusações e revelações.

Até ali sabia dos atos prodígios da menina, da complacência paterna e da devassidão materna. Por alguma razão demoraram a revelar um acontecimento, talvez estivessem na fase dos efeitos que um hecatombe pode provocar; terra arrasada sem parâmetro para reconstrução. Talvez duvidosos de suas hipóteses, incrédulos de sustentar como verdade aquilo que não encontra correspondência na realidade. Ou talvez não houvesse um acontecimento. 

Enfim, após uma caixa de lenço e hora e meia de fragmentos desconexos perguntaram se eu seria capaz de dizer sobre a verdade que habita o discurso de uma criança de quatro anos. 

A verdade só pode ser dita nas malhas da ficção e nisso as crianças são mestres, falei encerrando a conversa e restabelecendo antes de partir o interesse pelas narrativas. 

Combinamos um novo encontro para depois das férias.