Esse calor dos infernos não favorece ninguém: nem a maquiagem
importada que se derrama como as cataratas do Niágara na lapela do jaleco
branco, nem o cabelo escovado que mantém um aspecto seboso constante, nem a atenção
flutuante que te leva a um estado de torpor e sonolência permanente, nem a comida
do self-service que perdeu o frescor bem antes do meio dia; muito menos eu! E
foi exatamente ao meio dia, em frente ao pequeno espelho do lavabo do
restaurante por quilo, entre o sabão liquido com cheiro de desinfetante de vaso
sanitário e o papel toalha reciclado que percebi o tamanho do calor pelo meu
reflexo desintegrado.
Em situações como essa o mundo deveria parar e esperar o bafo
passar, mas não; obrigados por algum sistema capitalista, enfrentamos trânsito,
roupa social e a fila da comida - aquele espetáculo de horror que pode durar um
instante ( se todos os velhinhos aposentados, as moças de dietas e os milhares
de representantes farmacêuticos já tiverem passado) ou uma eternidade (se a
fila for composta por essa gente aí de cima). Fato é que entre mim e o macarrão
ao pesto havia uma fila infinita de folhas murchas, tomates tronxos, legumes
cozidos pelo tempo, um conglomerado de mini frituras, a velha dupla arroz e
feijão e ela: a quiche do que sobrou de ontem.
Até simpatizei com a moça: alta na medida, bronzeada ...
aquele tipo corpulenta apetitosa. Fatiada por algum chef estilista, mantinha
seus pedaços em perfeita harmonia. Quase dava para ouvir seus sussurros de agradecimentos
quando pegavam suas fatias inteiras e na ordem. Não se tratava de uma ordem
qualquer, seu composé de triângulos isósceles fora calculado com mestria para
compor uma obra de arte. Rúcula com damasco a esquerda, o sol poente da cenoura
contracenando com a intensidade sanguinária da beterraba esparramadas pela
austeridade da porcelana branca, o arroz integral dourando o solo e ela, a
estrela do meio dia se esparramando como uma diva solitária pelo lado direito do
prato. Mas aquele ninho de mafagalfo, besuntado do verde louro e salpicado de camarões
anões sete-barbas chamou mais minha atenção e esse era o alvo.
Não fosse o instante perdido assustada pela minha imagem,
teria impedido o quarteto das jovens moças de pegarem a dianteira. PQP!
Malditas dietas: gastaram 5 minutos resgatando os nacos de
frango grelhado da salada (over protein), meia hora destruindo a ratatouille
para tirar a cenoura (carbo), mais um tanto operando o peixe ao molho de ameixa
(frutose) e para aniquilar a harmonia do buffet cometeram uma verdadeira violência
contra a quiche. A primeira pegou uma fatia e lá pelo feijão fradinho desistiu
porque a farinha não era integral e tinha glúten; devolveu. A segunda pegou (a
mesma), mas um pouco antes da batata chip percebeu a presença de um derivado do
leite e quase teve um choque anafilático; lactose. A terceira, destemida,
resgatou o pedaço e caminhou até a sobremesa, para então recuar com o argumento
de que tinha presunto (embutidos). A quarta, vacilante, cortou a fatia na
transversal (ou seria longitudinal?) abandonando a própria sorte o bico da
torta na bandeja; covarde! Triste fim! Depois de tanto rebuliço o pequeno pedaço
iria para o lixo pela total falta de solidariedade de pessoas egoísta que só
pensam na própria sorte e esquecem que na próxima semana, essa dieta já terá naufragado
como tantas outras.
Dedico essas palavras #pelofim do calor, do quilo, do sem glúten
e sem lactose.