domingo, 7 de dezembro de 2014

Toda festa de paulista começa com pelo menos uma hora de atraso. Se a época for dezembro adicione mais uma hora para reclamar do trânsito. Se for sexta-feira com chuva considere alugar um filme no Now até a chegada do primeiro convidado. Mas eles chegam: exausto, mal-humorados, cheirando a escritório e transpirando a sobrecarga de ser uma figura imprescindível no hostil ambiente de trabalho. Com o tempo a atmosfera se tornará agradável, basta suportar a magnitude celeste do desfiladeiro de reclamações (hipérbole paulistana); falarão mal do chefe (e sua ignorância gerencial para lidar com os problemas da firma), do prefeito (coxinha aspirante a holandês nativo), do eterno e insolúvel trânsito e do atual príncipe das trevas: Waze. De vilão a salvador em minutos (principalmente se o seu caminho estiver nas imediações do Morumbi-Taboão-Jaguaré). Passado todos os infortúnios (e já anestesiados por algumas cervejas artesanais) estarão na calçada se desculpando pela necessidade intrínseca de apenas um cigarro para relaxar, discutindo sobre dinheiro (do orçamento municipal aos melhores investimentos para virar um bi-milionário antes dos 50). A essa altura o som lounge já deu lugar a seleção playlist de algum descolado e Club des Belugas estará entre o volume 80-90. Falarão das férias, dos destinos exóticos, do último circuito percorrido (de tênis, bike ou camelo), do plano B e do que de fato é valioso na vida (família, saúde, uma casinha na praia para receber os amigos e uma boa previdência privada). Pena! Bem agora que a noite se tornou uma delícia é hora de partir; amanhã precisam estar na empresa (ou que seja de home office) antes das 7 para um call com a China.     

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Dieta

Determinação é o meu nome, dieta meu sobrenome e gulosa meu apelido; e antes que alguém gargalhe: sim, estou tentando meu 79º regime. Com um cálculo simples chegamos a uma média de duas dietas por ano, descontado o período de amamentação exclusiva. Lampejos de memória indicam chia na minha primeira papinha e farelo de aveia no meu Danoninho desnatado. Mas tenhamos fé! Não preciso dizer dos desafios cotidianos para enfrentar as tentações mundanas, o maior deles é lidar com a galera do funil que só faz comemorar. É cerveja porque é final de semana, segunda, véspera de feriado, pré natal, dia de Shiva, e eu sou apegada nessa maldita. Sábado fui parar no hospital por hiperhidratação; durante um encontro com amigos ingeri dois litros de coca zero, dois de água e três cafezinhos; ganhei cãibra e experiência. Outro desafio é encarar o fogão, enquanto a molecada está na vibe arroz/feijão/batata-frita, devo me contentar com uma proteína magra. O problema é que proteína magra tem cheiro/gosto ruim, explico: ovo tem gosto de ovo, frango de frango e atum de atum. Argh! Só por Deus e um farto maço de salsinha para encará-los! Tem também a questão do mercado: bendita função que no palitinho saiu para mim, desconfio que estavam marcados. Hoje, por pura necessidade (lê-se papel higiênico, ricota e salsinha), dei uma passadinha no inferno. Estava faminta, afinal quatro horas me separavam da omelete de clara com bife grelhado. Antes de mais nada (tipo cruzar um saco de bolinha de amendoim andando pelos corredores) corri para geladeira e escolhi, demoradamente, um yogurte zero gordura sabor ameixa. Já em punho dos meus pertences e aguardando a fila do caixa dez itens andar, percebo um rapaz forte, bem apessoado, com roupas sumárias de academia,  suado na medida me dirigir olhares enigmáticos. Por um instante pensei que fosse  um flerte, afinal além de todos meus atributos (40 anos e cabelo desgrenhado) eu havia perdido 800 gramas. Mas ai me dei conta que estava degustando a mini garrafinha com a língua de um tamanduá, não sobrou uma gota. Ruborizei e sorri discretamente. Foi então que ele me abordou e disse: "Oi, tudo bem? Você não gostaria de levar esses cinco pãezinhos? Peguei dois sacos, mas acho que é demais, vai sobrar, tá até quentinho, olha?". Sem reação agarrei no saco do moço, agradeci e lembrei das sábias palavras da Irmã Zuleide: " Filha, aquilo só pode ser o satanás desafiando sua perseverança. Força , fé e farelo de aveia. Creia no Dukan e repreenda esse encosto da gula! "

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Nesse momento, já em casa, escrevo trancada no quarto, enquanto ordenei que comessem todos os pães sem deixar migalhas.


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Força, fé, farelo de aveia, salsinha e proteína magra. Amém.

Força, fé, farelo de aveia, salsinha e proteína magra. Amém.
Força, fé, farelo de aveia, salsinha e proteína magra. Amém.

Carta 1. Para você.

Carta 1. Para você. 

Parece óbvio, mas não é. 

De forma bastante simplificada a temporada na Terra segue um fluxo frugal: nascemos, vivemos e morremos. Para alguns a temporada pode ser breve, para outros um pouco mais prolongada; no entanto, seja qual for a duração do ticket, a estada dos humanóides exige certa adaptação no modo de funcionamento psíquico, há quem chame isso de processo de subjetivação. Em outras palavras, se você foi um dos espermatozóides que ganhou a corrida desenfreada, furou a barreira da resistência ovular e se manteve em franca multiplicação durante nove meses... Não pare! A batalha não está ganha e seu trabalho está apenas começando! Se a princípio o objetivo era aniquilar os inimigos, nos próximos anos a meta se torna estabelecer uma harmoniosa convivência com os pares.

Entenda que não se trata de obrigatoriedade, você poderá se organizar como ermitão, monge tibetano ou simplesmente como o esquisito da escola, mas saiba: pagará um preço. Até que seus primários responsáveis aceitem seu modo de vida, é provável que passe por uma batelada de consertadores físicos, psicológicos e sociais que tentarão achar uma causa provável para o seu estilo-problemático. Em geral encontram, e se não encontram inventam (as vezes comprovam, as vezes não). Fato é que nos dias de hoje pouca coisa fica sem explicação; talvez falem que seu código de DNA veio com defeito ou sofreu alguma alteração por radioatividade, podem sugerir que sua morada não era adequada para virar humano, que as condições do seu entorno não favoreciam um funcionamento razoável, que você sofreu algum trauma nos primórdios da vida ou que o excesso de bugigangas consumidas durante o percurso contaminou seu corpo e sua cabeça. Explicações  não faltam e junto com delas vêem as soluções. A mais comum é a medicação. Hoje em dia temos remédios para quase tudo: para nascer, crescer, aprender, para dormir e respirar, para comermos, parar de comer,  para parar de chorar, de gritar, de brincar, temos remédios até para transar e para morrer; são medidas eficazes, mas como eu disse tem um preço. Alguns tratam só do problema, mas outros comprometem tantas coisas. Outro dia conheci um rapaz que queria parar de pensar, mas não queria parar de namorar. Conseguiu as duas coisas e aí começou a chorar, teve que tomar remédio para parar de chorar, só que ai parou de dormir e com isso de trabalhar; ficava a noite toda comendo e de manhã dormindo. Coitado! Era melhor continuar pensando, ao menos dormia, trabalhava, chorava ( de vez em quando) e namorava. Alguns vão propor que você mude hábitos: acorde mais cedo, tome água de berinjela, mexa o corpo, faça uns exercícios para memória e esqueça todos entorpecentes (álcool, drogas e chocolates). Antecipo que não é fácil; na mesma loja que mandam você mudar oferecem mercadorias tentadoras que só fazem piorar. Luta inglória dos tempos de espermatozóide! Outros mais preocupados chegam a cogitar tirá-lo de casa, às vezes pode ser interessante. Organizam lugares preparados para recebê-lo: arrumam o chão, as paredes, os utensílios necessários para viver; contratam umas pessoas mais gentis, empenhadas pela causa. Em geral elas aceitam seu modo de vida com um pouco mais de tolerância, mas não deixam de querer adequá-lo ao mundo da maioria. E falando em maioria, é assim que se organizam por aqui. O objetivo não é tão claro, mas alguns dizem que mantendo a casa em ordem, com as gavetas catalogadas por números, cores, gêneros e formas de se relacionar, fica mais fácil dividir os bens necessários; como se alguém soubesse de antemão aquilo que lhe convém. Não estão de todo errado, no começo é fundamental que alguém se ocupe dos seus cuidados e lhe ofereça uma espécie de kit de sobrevivência; já existem até lojas especializadas no tema: vendem fraldas, mamadeiras, lugares para dormir, tomar banho, brincar, mas o mais estranho são as orientações. Você acredita que existem pessoas que vendem orientações de como cuidar de outro humano! Confesso que nos últimos anos tenho lido a respeito, me pareceu  tão interessante que alguém saiba exatamente o que fazer para criar espécies adequadas ao mundo! Talvez por ser um tema universal tem gente a beça criando manuais auto-explicativos recheados de dicas e sugestões; parece um pouco com a história da medicação, só que de ler e fazer. Mas vou te revelar um segredo: ninguém conseguiu inventar um método tão preciso que garanta os resultados esperados.

Bom, preciso ir. Tenho que me relacionar um pouco. Eu queria mesmo te falar sobre a história da subjetivação, mas me alonguei demais. Se quiser prometo  escrever dia desses para falar sobre isso. 

Fique bem.

Abraço.
  

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Per capita


Segundo algum site consultado através do meu iPhone 6 plus size, a renda per capita na Suíça - a soma dos salários de toda população dividido pelo número de habitantes - em 2013 bateu a casa dos cinco gordos dígitos, algo em torno de 44 mil dólares/ano. Situação de fome se comparado aos dados do por mim desconhecido campeão Liechtenstein: 141 mil dólares/ano.  Devemos considerar que algo em torno de cem mil doletas por ano muda a vida de qualquer vivente do solo terreno, seja ele um helvético nativo, seja um sortudo pelo destino que nasceu no  entroncamento do Império Sacro Romano Germânico. Obviamente, se a tela do seu eletrônico não for tão grande como a minha, você não conseguirá visualizar a tabela longínqua que separa as nações da primeira a última posição, ou seja o 226º. Lá, nos confins da lista - e do mundo - reside a galera do Congo/Libéria; dividem um naco de terra do mesmo continente e mesmo separados por 3 mil kms, a diferença entre a mísera cota de dinheiro por cabeça bate as cem unidades de dólares: enquanto a Libéria ganha 500 por ano o Congo se vira com apenas 400, qualquer coisa comparada a peanuts no velho continente. 
Bom, mas e daí? Daí que hoje, entre o trajeto de Osasco ao metro quadrado mais caro de São Paulo, deparei-me com um serviçal devidamente uniformizado  e ilustrado  com o logo e as cores do prédio em que trabalhava regando com esmero dois palmos de grama que circundavam a construção inspirada no mesmo Império Sacro Romano da linha de cima. E caso a frase tenha ficado complicada demais, refiro-me aos prédios cafonas que enfeitam o cruzamento Faria Lima/JK. 
Por instantes me senti na Suíça ... lembrei de um situação numa viagem a terra das vaquinhas chocolateiras: atravessando o largo país  de um cantão a outro, nos deparamos com um viaduto nascido em plena pista expressa de alguma rodovia. Não levava a lugar nenhum, apenas servia como uma grande lombada. Perguntado ao morador da região qual a função do elevado, nos explicou que havia uma obra na pista e para não atrapalhar a população local com um desvio, a prefeitura construiu um viaduto temporário enquanto os funcionários executavam a manutenção no andar de baixo. Pasmem! Então ele listou uma infinidade de exemplos que fariam inveja a qualquer país abaixo da 50° colocação ou algo em torno de 23 mil dólares/ano: o isolamento acústico na auto estrada, o elevador construído ao pé do morro para um único morador, a proibição da abertura das grandes redes de supermercado aos finais de semana para não comprometerem o trabalho dos pequenos comerciantes, as vagas garantidas nas creches,  a preferência por um segundo idioma oficial no ensino fundamental, as barracas de frutas espalhadas pela estrada com sistema auto atendimento, entre outros. E do 50° ao 101° lugar existe uma distância intergaláctica; passamos pelo Omã, pela colonizadora Portugal, pela turística CVC Aruba, pela caótica Argentina, pelo freeshop Panamá, pelos ciganos búlgaros e a atual referência pós moderna dona Venezuela, para enfim pousarmos no Brasil. Por aqui, país de obras, prestações e secura intermináveis, nos contentamos com a renda por cabeça em torno dos 11 mil/ano:  longe dez vezes do topo, mas distante trinta do fundo do poço. E dai pensei:   existem intervalos tão maiores do que a Libéria e o Congo, ou até mesmo do que a Suíça e esse tal Liechtenstein! Existe um intervalo gigantesco entre o moço-regador da faixa de grama e o dono do mastodonte de concreto. Eu e meu estúpido eletrônico moramos ai: 10 vezes mais perto do fim da fila do que a centena de vezes que nos separam do castelo do marajá. 
Fato é que tem muita, mas muita coisa para mudar por aqui, porque se fizermos essa conta direito  temos mais de nós batendo nós recordes do Zimbábue do que sonha nossa vã alienação.
E pra começar poderiam mudar esse discurso hipócrita de que evoluímos do pais que roubamasfaz para o pais que roubamasdacastigo. Isso não convence nem criança em idade pré-escolar; naquela fase do fui eu que fiz a arte, mas foi sem querer; idade que estamos nos havendo com a lei e seu real poder: negociamos, barganhamos com gracejos, pedimos desculpas com o bico doce de travessuras e no final ganhamos um afago na cabeça e um beijo na testa. 

Já deu,né?!

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Das cenas patéticas que podem acontecer com qualquer um de nós: num bairro chique da zona sul da capital, em plena segunda-feira após eleição presidencial, uma moça elegante derruba seu capuccino enquanto grita em alto tom: um rato. A padaria cheia perde o rebolado; homens engravatados fazem semblante de coragem, mulheres aflitas encolhem os pés, os clientes mudam de lugar na ilusão que ao se afastar do local da aparição o mal estará isolado. Tolos! O cozinheiro surge com uma vassoura na mão, olha sem muita convicção embaixo das mesas e vocifera: fugiu. Quem chega não sabe de nada , acredita que está no lugar mais asséptico do planeta. Seguem tomando seus cafés na santa paz. Tolos!
Personagens urbanos

Toda segunda cedinho quando peço uma média desnatada e um pão mil grãos com pouca manteiga retorno a posição de uma pessoa regular. Já vesti minha calça de linho com salto alto, besuntei maquiagem na cara e combinei alguns acessórios que me tornam uma profissional típica produto capitalista. 

Sentado a minha frente, naquela padaria do rato, um homem de 50 e poucos, cara surrada por um leve estado depressivo, corpo esbelto vestido a caráter para servir tanto a gerência quanto a superintendência de alguma empresa de serviços, aliança na mão esquerda, roupa de marca, sem celular e olhar vazio, perfeitamente alocado no lugar comum, surpreende a todos ao pedir uma jarra de suco de laranja e uma omelete completa com fritas.
Quando digo de uma cena com um garoto de 19 anos que é autista e estuda na escola que trabalho há três anos como psicóloga, asseguro( a mim) um lugar de existência e identidade, onde repousa objetos que me dão contorno e interioridade. Eu sou a psicóloga do local, reconhecida pela posição que ocupo, pelas pessoas que lá trabalham, pelas famílias que confiam a nós uma possibilidade de mudança e eventualmente pelas crianças e jovens que lá freqüentam.
Ele não; ocupa um lugar oco, abismal, que ecoa a minha voz, ressoa quem sou, sem ao menos conseguir segurar minha mão e esboçar uma tentativa de desdobramento que o torne um diferente, capaz de determinações que possam ser suas.
É da minha interioridade a obrigação de reconhecê-lo.

PS: inspirado nos escritos de Juliano Pessanha. Recomendo a leitura.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Aeromoças

Um vôo entre Braslia e São Paulo dura cerca de 90 minutos. Os arranjos iniciais e finais de decolagem e pouso consomem 30 minutos. Se o modelo for um 737-700 e meus cálculos estiverem corretos são 144 assentos/pessoas ocupando espaço dentro do espigão. Por pura boa vontade dos donos das companhias aéreas, o custo/acessibilidade ao meio de transporte flutuante possibilitou que milhares de pessoas tirassem fotos/selfies nas nuvens. No entanto, toda revolução provoca perdas e adaptações: a distância entre as poltronas diminuiu, o apoiador de cabeça foi pro saco e a comidinha de isopor passou a ser cobrada (superfaturada). Mas até aqui nenhuma novidade: viajar para visitar os amigos a 156 reais + 40 pilas de taxa de embarque em 6 vezes tá valendo! O que pretendo dividir com vocês é a agonia no olhar vidrado e sorridente das aeromoças: " deseja uma água de cortesia ou algo do cardápio senhora?". Coitadas! Repetem a exaustão (144 vezes), não podem deixar cair uma gota de água nem de suor durante os 60 minutos de serviço; precisam administrar o pedido, pagamento e entrega dos produtos numa corrida contra o tempo, além de se manterem atentas ao bom funcionamento do vôo, evitando que as criancinhas não derrubem a aeronave com seus brinquedos eletrônicos, não vomitem no colo do vizinho e utilizem os sanitários localizados no fundo da cabine apenas para fins fisiológicos.
E se você pensou que bastou preencher uma ficha de trabalhe conosco para conseguir esse emprego; ledo engano. Aquela moça loura, magra, elegante e finalizada no gusmeque passou horas lutando na selva contra seres selvagens e peçonhentos, contra a fome , o frio, o excesso de umidade aniquilador de qualquer chapinha e uma tropa de outras louras aspirantes a mesma posição, detalhe: in english. Afinal comissária que se preze salva a tripulação de queda em alto mar com classe: ladies and gentlemen keep your seatbelts fastened because we are going to hell.
E já que estava lá, praticando a arte da associação livre, resolvi calcular o tempo médio gasto com cada passageiro: entre os totalmente convictos ( "não obrigado, apenas um café ou o combo 1 por favor"), os indecisos ( "posso trocar o snak do combo 1 pelo do 2, tem pão de queijo ou dá para esquentar o lanche?") e os nulos ("ronc ronc"), gastaram cerca de 38 segundos por cabeça. Coitadas! Apesar do aumento da freguesia, o investimento nas condições mínimas de trabalho continuam precárias; enquanto a elite da cabine pode operar a máquina apenas com instrumentos, as operárias precisam segurar a garrafa de 2lts de refrigerante com uma só mão! Bom, fato é que cálculos aritméticos simples indicaram que a turma da poltrona 18f a 29d rodaram!
Mas trabalho em equipe é tudo; ciente da situação das companheiras o piloto lançou um aviso sonoro de "área de turbulência" justificando o encerramento das atividades. Entre a vida e o amendoim os menos favorecidos se resignaram a condição de famigerados e suportaram o resto da viagem acreditando na promessa da Baked Potato do aeroporto de Congonhas.
Hora e meia depois estávamos sãos e salvos em terra firme, felizes com a viagem , a prestação do cartão e solidários a dor alheia: contra meus 50 minutos de sessão, elas só têm 38 segundos para atender seus clientes.
#tareclamandoque #boratrabalharminhagente

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

A vantagem de conversar com os mortos é que o eu possui a verdade.

Meu avó materno é uma figura carregada de afetos; desses que condensam como traço de memória, toda linhagem de palavras que falam de aconchego: calor, acolhimento, pertinência, alteridade, paciência, serenidade, subserviência. Ele é uma representação dinâmica; tem cheiro, expressividade, tom e entonação. Escuto, de forma prosódica, a forma carinhosa que me chamava. Mesmo morto, assegura (a mim) um ponto de determinação, filiação, amparo e anteparo de identidade. O eu existe ali, no intervalo entre a palavra e o gesto; sou a Pazoca que surge como extensão da sua fala e encontra parada no toque de sua mão. 

Passava tempos do dia na casa dos meus avós (maternos). O percurso da escola até eles durava cerca de vinte minutos. No começo me buscava a pé, demarcando cada fragmento com uma história, um ponto de referência. Um dia, seguro das minhas reais e ilusórias competências, anuncia que em breve faria o trajeto sozinha. Sábio, antecipou que estaria ali como fiador do meu aprendizado. No primeiro dia pediu para guiá-lo, no segundo que criasse alternativas para os possíveis obstáculos, no terceiro que me esperaria na metade do caminho, até que então, garantiu sua presença na entrada de casa. Estava ali (e sempre esteve) encarnado de Outro assegurador.  

Meu avó paterno é uma figura desprovida de afetos, um eremita das emoções; construiu império num loteamento na Sibéria. Teve muitos filhos, muitos imóveis, muitas riquezas e uma família desabitada de relações. Sua imagem é inerte; mal lembro do colorido dos seus olhos, azuis e sem brilho. Se sustenta no resto sucateado pelos seus descendentes. Não manteve nem mesmo o nome; cada qual, para existir, ludibriou sua herança. 

Visitava, eventualmente, a casa dos meus avós (paternos). Como éramos muitos havia movimento: rápido e fugaz. Em geral, os netos eram nomeados pela filiação; nada era individualizado, do tratamento a alimentação. Um dia, incrédulo da própria posição, proporciona uma viagem aos primeiros. Dentre todas maravilhas que o dinheiro podia comprar, tínhamos a disposição piscinas de extensão e profundidades suficientes para uma criança acreditar que o oceano era ali. Para que o mar se transforme de morte a vida, existe um intervalo de tempo que se chama sujeito. Sujeito que se constitui na relação com o outro, que apreende desse outro as possibilidades de advir. Desejávamos o mar, mas temíamos sua imensidão. Meu avô ordenou que nadássemos e diante o primeiro vacilo, vociferou em ato: nade! Na urgência desnecessária não há tempo para o encontro. Eu nadei, desassossegada.

Ambos morreram em decorrência da decrepitude orgânica. É assim que normalmente morrem os velhos. O primeiro morreu em casa: sereno, feliz, acompanhado dos seus. O segundo morreu preso a uma máquina de hospital: triste, sovina, solitário. 

As vezes, o real se impõe de tal maneira, que oscilo entre o sopro do afogamento e o alojamento no apelido carinhoso que me define. 

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Gênero

Um funcionário (homem) de uma empresa (multi-gêneros) encontra casualmente com o chefe no café. Entre cumprimentos burocratas e apertos de mão, o chefe comenta as falhas presentes na barba rala do subalterno e ordena que "tire essa merda da cara". Terminam o café amigavelmente, o funcionário passa pelo banheiro, urina e enquanto lava as mãos repara nas falhas. No fim do expediente, a caminho de casa, para na farmácia e compra um novo barbeador. Na manhã seguinte raspa a barba e vai para o trabalho. A esposa, espantada, pergunta ao marido o motivo da mudança: cansei, depois cresce.    

Na mesma empresa (multi-gêneros) uma funcionária (mulher) encontra casualmente com o chefe no café. Entre cumprimentos burocratas e beijinhos na bochecha, o chefe comenta a roupa casual demais para o ambiente de trabalho e sugere que "venha mais social para a reunião de amanhã". Terminam o café silenciosamente, a funcionária passa no banheiro, demora muitos minutos na frente do espelho reparando em cada detalhe do seu figurino. Tira e coloca o colar, amarra um rabo de cavalo, solta, retoca a maquiagem, muda a cor do batom, fecha o primeiro botão da blusa. Embora cedo para o almoço liga para uma amiga e combina o primeiro horário, pois tem uma emergência. Constrangida sai do banheiro esquecendo de urinar; lembra já no elevador e decide parar no primeiro andar para ir ao banheiro. Mais um tempo no espelho encontra uma colega do departamento. Fica em dúvida se conta o ocorrido e decide contar. Pede discrição, pois não sabe muito bem o que aquilo quis dizer. Fala da sua preocupação em relação as mensagens ocultas na fala do chefe, questiona se há muito tem sido reparada, pergunta se a colega já escutou algo ou presenciou a mesma atitude com outras pessoas. Lembraram vários episódios que poderiam esclarecer as dúvidas; inconclusivas. O tempo passa sem que perceba; já atrasada encontra a amiga para o almoço. Conta mais uma vez o episódio e decidem ir ao shopping. Esquecem de almoçar perdidas nas vitrines. Compram dois terninhos cada uma (estava em promoção), para combinar decidem pelos scarpims (clássicos) e o novo lançamento (pink). Finalizam a gastança na loja de bijoux em busca de pérolas. A tarde, como era de se esperar, não foi tão fácil. No fim do expediente, a caminho de casa, para no salão e faz uma escova, muda o esmalte, tira a sobrancelha e o buço (mesmo a depiladora dizendo não ser necessário). Durante o jantar detalha o dia ao marido que, sem muita paciência, aguarda o início do jogo. Já deitada compartilha uma frase nas redes sociais: "o essencial é invisível aos olhos". Sonha que está de pijamas na sala de reunião, assustada acorda mais cedo e se arruma como se fosse a uma noite de premiações. Como se nada houvesse chega ao trabalho e propositadamente encontra com o chefe no café. Entre cumprimentos burocratas e beijinhos na bochecha ele fala: "nossa, teremos festa hoje?!" . Ela sorri, segura. 

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Simples assim

J. tem 6 anos. Está na escola há 4. Esse ano mudou para uma escola maior. Os pais entendem e acordam que a nova instituição tem um ensino "mais forte", necessário para o desenvolvimento e para o vestibular. O irmão de J. nasceu há 5 meses. Por conta do novo membro a família mudou de casa. O bebê, que nasceu prematuro e apresenta refluxo, dorme com os pais seguindo recomendação médica. A família conta com a ajuda de uma funcionária que se ocupava, exclusivamente, dos cuidados de J: levava ao clube, acompanhava nas tarefas extra-escolares, auxiliava na troca de roupa, servia os alimentos. Os pais trabalham em período integral, moram longe do trabalho, o que lhes rende horas de trânsito. Com a chegada do bebê a funcionária assumiu outros cuidados além de J. Segundo os pais,  J. sempre foi uma criança "inquieta, sem parada", mas apresentou intensificação dos sintomas nos últimos meses. Agitado (corre demais), impulsivo (come demais), apresenta atividade psicomotora exacerbada ( deixa os objetos caírem) , demostra dificuldade especialmente em tarefas repetitivas ( resiste aos comandos diários). Ambas famílias (avós, tios e primos) moram no interior. J. gosta muito de visitá-los; a família percebe que lá os sintomas diminuem. 

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A escola avisou a família que observou uma dificuldade de concentração de J. durante a explicação da professora. Agora que ele está crescido, precisa permanecer sentado por mais tempo, do contrário pode ter prejuízos no processo de alfabetização.

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A família levou a situação ao pediatra que orientou avaliação do neuropediatra. Demonstrou preocupação em relação aos impactos negativos na vida social, familiar e escolar. 

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Encaminhado ao neuropediatra, foi avaliado com transtorno do déficit de atenção na infância e medicado com metilfenidato duas vezes ao dia. 
Questionado das causas (não totalmente conhecidas, mas com clara base biológica)  explicou aos pais que: 1. pode haver um fator de herdabilidade, 2. estudos indicam que os genes analisados codificam os transportadores dopaminérgicos, 3. imagens de ressonância mostram hipoatividade frontal, 4. teorias antigas sugeriam a associação de corantes, conservantes e chocolates, 5. os remédios psicoestimulantes bloqueiam os receptores de catecolaminas, garantindo que a dopamina fique mais tempo da fenda sináptica elevando os níveis de atenção. 

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J. ainda tem 6 anos,  um irmão de 5 meses que exige cuidados, uma casa nova e assombrada, a escola povoada e populosa por pessoas que não lhe conhecem. J. deixou de ter exclusividade na relação com os pais e com a babá e além do mais, é exigido a se trocar, amarrar o tênis, comer sozinho com a TV desligada para não acordar o irmão e arrumar todos os brinquedos. Por via das dúvidas, também restringiram o consumo de  balas, gelatinas, salgadinhos e brigadeiro (sua paixão). E agora tem que tomar aquele remédio que lhe causa ânsia duas vezes por dia.

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De resto as coisas vão bem.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

A clínica do depende

A clínica do depende

Vez ou outra recebo pedidos de revistas para dar um pitaco sobre temas cotidianos. Como habito uma maternidade há anos, em geral as pautas discorrem sobre gestação, formas de vir ao mundo, desenvolvimento infantil, relação pais e filhos. As perguntas iniciais são genéricas com um final fatídico e trágico : dicas práticas do bom funcionamento psíquico. Ai me pelo! Arrepio só de pensar no quadrinho no canto da reportagem: dez passos para salvar seu filho do terrível bicho papão . Pois bem, ontem conversei com uma jornalista sobre como conduzir a chegada do bebê na relação com o primogênito; ou qualquer coisa assim. Por sorte, além de ser primogênita, tenho um primogênito. Começamos a conversa: como os filhos se sentem com a chegada de um irmão? Bom, depende. Da idade, do contexto familiar, da relação dos pais com a gravidez, do tamanho do quarto, do alinhamento dos astros. Mas se a criança for muito pequena devemos reconhecer que, como todo humano, possui sentimentos contraditórios em relação ao novo; como estão em plena aquisição do repertório verbal, não possuem Facebook, Twitter ou qualquer rede social, tampouco podem tomar um chopp com a galera para desabafar, devem expressar o tal conflito psíquico pela via régia do comportamento: agressivo, rebelde, regredido. Ah! E se o filho tiver quinze anos? Será que tem uma idade melhor para ter irmãos? Pois bem, depende. Nos dias atuais encontramos famílias com novas configurações; segundos casamentos, filhos vindos de lá e de cá, casais homossexuais, pais e mães solteiros, e não raro irmãos com diferenças significativas de idade. A chegada de mais um ecoará com a adaptação da criança a esse novo contexto que está intimamente ligado a forma dos adultos conduzirem a situação. Aos quinze, minimamente situado na vida, qualquer um tem mais recursos para lidar com as mudanças do que uma criança de dois anos. Ah! E sobre as mudanças ocorridas nessa etapa: escola, fralda, chupeta, berço, os pais devem fazê-las ou adiá-las? Essa é mais fácil, mas ainda assim, depende. Da mesma forma que a gravidez leva tempo para acontecer, seja para a formação do feto em bebê, seja para os pais se acostumarem com a idéia, para uma criança petit é sempre mais complexo ganhar um irmão + ser apresentado ao universo social out home +  largar seus penduricalhos de estimação por ter alçado o universo dos mais crescidos. A sugestão é: segure a onda. Deixe o pequeno na sua zona de conforto para ter a mão recursos já familiares. Bem sabemos que casar, mudar de emprego, mobiliar o apartamento novo e entregar a tese - tudo ao mesmo tempo - gera um curto circuito digno de filme hollywodiano. No entanto tem criança que vai muito bem obrigado. Outro ah! E sobre o bebê entregar um presente para o irmãzinho quando chegar em casa? Ajuda a lidar com o ciúmes? Respondi: vou contar-lhe uma breve história. Meu sobrinho de 3 anos ganhou um irmão. Tudo ia bem. A barriga foi acariciada aos montes, o quarto montado a gosto do freguês, mamadeiras destinadas ao bebê, até o dia D. A mãe, minha irmã, organizou um esquema tático para manter a rotina: trouxe a mãe, a sogra, a babá e a torcida do Corinthians para entretê-lo. Horas após o parto trouxeram-no a maternidade para o tão esperado encontro; adultos munidos de máquinas e celulares apostos para registrar o momento sublime. Ele agiu como um gentleman, decorou o roteiro, ficou super feliz, deu beijo na testa e já carimbou o primeiro apelido: Gulilo (versão extreme makecover de Murilo). Lágrimas de emoção não faltaram até abrir o presente vindo diretamente do reino encantado do centro obstétrico: um lindo e robusto dinossauro. Quanta alegria! O clima de demência contagiante atacou toda a família que, a certa altura, dava mais atenção ao dino e seu dono do que ao recém chegado; durou pouco, o tempo de chiar, hora da mamada. Ato continuo nos voltamos para o bebê que quase foi atingindo pela primeira versão piterodactos alado. O mais velho arremessou o bichano e disse: "Pega Gulilo!". Ah! Ah! Ah! Exclamou a jornalista. Portanto depende, principalmente da falta de noção da família. E crente que a breve entrevista já tinha acabado ela insiste em mais uma: e o nome, é aconselhável que o irmão palpite sobre a escolha? Minha cara, acho um pouco arriscado. Prefiro que o irmãozinho sugira o time de futebol, a cor da parede, o lado da poltrona de amamentação, mas o nome ... o nome é mais complicado. Se a regra fosse essa teríamos uma leva de Neymares e Neueres nos corredores das maternidades. Vale manter certa lógica: João e José, Maria e Ana, Patrícia e Erika, agora imagina uma dupla de Gabriel e Adamastor?!  Ah! Suspiro. Sei que a conversa de dez minutos durou quase cinquenta e desconfio que a minha participação foi indeferida perpetuamente. Ao terminar ela perguntou sobre meu currículo para os créditos ( ato de delicadeza); montada no humor arrisquei um especialista na clínica do depende. Agora é esperar para ver. 

terça-feira, 30 de setembro de 2014

O meu querido admirante Antônio Prata publicou no texto do último domingo a dúvida atroz dos cronistas: falar dos dramas umbiguianos ou se arriscar na seara política/economia/futebol. Com destreza conseguiu articular os horrores cotidianos com os primeiros passos da filha. Longe de ser uma cronista; male e male uma neurótica típica em fim de análise; as vezes me pego no mesmo dilema. Durante o café da manhã, deu vontade de escrever sobre a diarréia verbal do candidato a síndico da invasão, Sr Levy ejaculação precoce (o homem do trem bala urbano); a preguiça foi maior. 
Não bastasse, a atendente da padaria, figura conhecida de toda semana, representou a melhor cena de desacato de todos os tempos. Na mesa ao lado uma dupla de dois discutia quem gastaria mais no desjejum matinal em comparação a circunferência abdominal. (Eu, encolhia a barriga com medo de ser atingida por um comentário belicoso). Pois bem, a dona atendente, cheia de coragem e disposição para a guerra, solta a pérola em direção ao mais roliço , enquanto preenche a filipeta: "é claro que é você! Além de mais gordo sempre como demais!". Homens!Conseguiram gargalhar da cena. 
Antônio, no domingo, disse que a função da crônica é usarmos nossas referências de forma ficcional, tomar um ponto pessoal que possa atingir a todos. Achei a cena tão comum, relevante, realista ...

Bom dia a todos!

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Enjôo

Segundo o professor Mario Sergio Cortella somos "um entre 6,4 bilhões de indivíduos, pertencente a uma única espécie, entre outras três milhões de espécies classificadas, que vive num planetinha, que gira em torno de uma estrelinha, que é uma entre 100 bilhões de estrelas que compõem uma galáxia, que é uma entre outras 200 bilhões de galáxias num dos universos possíveis e que vai desaparecer". Simples, não?! Seria não fosse umas figurinhas que acreditam ser a ponto sine qua non para a existência do cosmo. Vamos a mais uma delas: 

Como bem sabem segunda-feira não é um dia de deus. Além da lonjura em léguas do próximo final de semana, está perto demais do último. E se não é coisa do divino, bem deve ser do seu maior rival: aquela fofura caliente que só faz lembrar dos excessos que cometemos. A figura é a definição da onipresença, se instala no fígado, na cabeça, nas articulações, no hipocampo. Além do mais é bem relacionado, basta um órgão acender a luz de alerta para os outros apitarem. Hoje não foi diferente: trabalho extra, pendências, reuniões intermináveis, natação e dentista dos filhos somado a um enjôo moralizador atravessando o dia. Em casa, instantes antes do início do terceiro tempo e sustentada pelo lampejo final do pâncreas, sou recebida com um modesto "como foi seu dia"; respondo em ato singelo: "bem, um pouco enjoada". Bastou para despertar a fúria satânica oprimida, incapaz de cessar fogo antes do suspiro final.  

Na íntegra.

Enjoada!? Nossa! Você não imagina o que me aconteceu no sábado?! Fui almoçar na casa da Juju, não na casa porque a Juju não cozinha. Fomos num restaurante lá perto, honesto, comida caseira, nada muito caro, tudo fresquinho. O almoço foi uma delícia, coisa leve, bem temperadinha, não comi nada demais. Foi um pedaço assim óh! de lasanha de frango com molho rose, um pouco de arroz e feijão, um pedacinho de carne assada, salada de alface, tomate, pepino, cebola e uma colher de berinjela de forno com nozes e pimentão, sabe?! E peguei umas batatinhas da filha Juju, mas tava sequinha, frita na hora. Tomamos uma cervejinha, mas isso não pode fazer mal, né?! Eu sei que depois do almoço fomos assistir a fita de casamento do irmão da Juju, tomei um cafezinho com bolo de fubá, sequinho. Depois não comi mais nada, só na hora de ir que me deu uma fominha e roubei uma banana maçã. Menina ... esse tipo de banana não me cai bem. Foi comer e quase morrer, bastou a Juju me deixar em casa começou uma gastura aqui na boca do estômago que nem deu tempo de chegar no banheiro. Pedi socorro pra vizinha que me levou pro hospital; tava branca assim igual sua blusa, faltou pouco pra desmaiar. A médica ficou assustada comigo, deu remédio na veia, pediu exame de sangue e você acredita que não deu nada. Eu falei que era alergia da banana, mas ela achou que não, que pode ter sido a lasanha de frango. Duvido. Tava fresquinha, fresquinha. Sei que fiquei no soro tanto tempo que deu até fome, mas não abusei, né!? Cheguei em casa e preparei uma sopinha rala, quase um caldo, de feijão com uma batatinha e cenoura e um paio que tinha na geladeira. Quer que eu faça uma pra você? Melhora o enjôo que é uma belezura! Mas e você, comeu alguma coisa estragada? 

Sim. Uma estrelinha perdida em órbita cósmica em uma das milhares de galáxias que existem nos universos paralelos ao seu umbigo. Mas fica tranqüila, já já passa. 

domingo, 24 de agosto de 2014

Brincar

Brincar é a melhor forma de levar a vida a sério. Talvez a única. Todo o resto é uma tremenda violência: psíquica, física, social. Brincar é um ato de fé. É apostar no desenvolvimento da fantasia, mola propulsora dos processos criativos. É trocar de lugar, testar possibilidades, ser no outro. É gozar por todos os poros, descobrir fontes de prazer, treino cerebral. Brincar é entender as regras sem imposição, autorizar a presença do outro, questionar a necessidade de sacrifício das relações. Participar dos combinados sociais, assumir uma posição ativa frente a sua vida. É duvidar de si; das coisas muito valiosas, das certezas infundadas. Brincar é um verbo indefinido, eternamente em construção. Se vem pronto não é brincar; é subverter a lógica do sujeito. Sujeito é dono de si, transitoriamente de objetos. Se os objetos apresentam seu sujeito, não há processo. Uma criança está brincando se atribui uma função imprevisível para as coisas. Se responde ao óbvio esta em adoecimento, deixou de descobrir. Também é jogar, pintar, bordar, cantar, dançar, ler, conversar, estudar, rezar, trabalhar, cozinhar, banhar, dormir, sonhar. É ação, condição infinitiva dos verbos; sem qualquer conjunção, sem necessidade de determinar um tempo, um modo, um pronome específico. Brincar é ser, estar; é remédio, cura.
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Gostava de brincar de escalada nos montes de areia e pedra que ficavam no fundo do quintal. O de areia era aconchegante, convidativo, seco e molhado. O de pedra era áspero, pontiagudo, firme. Gostava do cheiro de madeira, da serra elétrica, do caminhão basculante; de brincar de esconde-esconde entre o estoque de louças e caixas d’água, de contar quantas portas e janelas havia no barracão. De pular elástico entre duas cadeiras, de fazer cama para os pintinhos nos canos, de contar parafusos e separar as tintas pela cor.
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O caçula, para quem todo dia é dia do seu aniversário, brinca sem parar. Tá sempre na companhia de um ou dois bonecos que se aventuram pelos cantos da casa. Entre viagens intergalácticas, lutas épicas e a descobertas de novos poderes passa tempo sorrindo e tagalerando barulhos pela boca. Dia desses suspirou: ohmãe, gosto tanto de brincar!
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O primogênito lê: aventuras intergalácticas, lutas épicas, mistérios indecifráveis. Já revelou, segundo sua “perspectiva infantil”, que não gosta de livros que falam da vida real, “desses que podem acontecer com qualquer um”. Se refugia na fantasia, seu jeito de brincar.  

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Tempo

E se pudéssemos organizar o tempo de outro jeito? De um jeito menos previsível, sem a presença tirânica do relógio e dos compromissos. Manteríamos certa lógica, com um punhado de hora para cada pedaço da rotina. Um tanto para dormir, outro para se exercitar, mais um pouco para trabalhar; será que viveríamos na desordem? Penso que somos tantos e com tão poucos interesses que seria bem provável nos agruparmos por tempos parecidos. Montes de gente dormindo até tarde, almoçando mais devagar, pedalando de madrugada, entregando relatório logo nas primeiras horas da manhã. Talvez o mundo se tornasse menos indigesto. Imagine o prazer da leitura sem medo de perder hora para o trabalho, o vinho sem temor pela enxaqueca, o exercício com alongamento. E o cinema no começo da tarde?! Atenderia  domingo de manhã! Não muito cedo, nem tarde, no horário da cabeça leve e do corpo  cansado do colchão. Haveria quem preferisse.
Mas não é assim. O tempo é vilão, bicho papão. Sucateia a vida como os cupins em madeira mole, corroem por dentro tão depressa que só percebemos quando o pó aparece. E negamos; culpamos as formigas, a poluição, a empregada. Passamos vassoura, pano úmido, veneno e nada. Sempre sobra um resto que denuncia o estrago: vasto, profundo. E a única forma de erradicar o mal é olhar até cansar. A madeira oca, perfurada pela praga fica ali, a olho nu, enquanto o veneno mata a colônia lentamente. Só então é tempo de recomeçar. Reconstruir a estrutura da casa sem a ilusão do controle, temendo por nova invasão.
...
Decidi organizar o semestre com dois pedaços de tempo vagos. Deixei um para o começo e outro para o fim da semana. Queria-os longe, protegidos pela distância de dias atarefados. Temia que próximos virassem um compromisso.
Bastou riscar as horas da agenda para o saci aprontar das suas traquinagens. Abriu o pergaminho das pequenas pendências e gargalhou: trocar a lâmpada de freio, comprar a camiseta do futebol, buscar a roupa na costureira, pagar no banco a conta atrasada, fazer o exame médico da academia, a vistoria do carro, a segunda via do RG e o maldito lattes.
De novo furtaram meu tempo.  



terça-feira, 5 de agosto de 2014

Versões do mesmo

Versões do mesmo.

Você soube que fomos assaltados? Conseguimos ver o que aconteceu pela câmera de segurança. Um homem de bicicleta usou de apoio o muro lateral e pegou minha bolsa que estava na sala. Fugiu pelo portão e levou cinquenta reais. 

Você soube que fomos assaltados? Vou contar rapidinho. Na sexta passada o meu vizinho, o Genesio, tocou a campanhia daqui de casa, acho que era umas duas, duas e pouco, eu lembro porque tinha acabado de chegar da reunião do conselho que começou as nove e só terminou mais de uma. Era só para apresentar as chapas para as eleições de outubro, mas acabou virando um debate político. O pessoal da universidade propondo novas diretrizes sem considerar a realidade da saúde do pais, e os outros se queixando da falta de recursos e aí, o Genesio, cê lembra que ele é pai da Claudinha. Você acredita que ela casou com um australiano e tá indo embora. Trancou a faculdade, tava quase acabando, mas o rapaz trabalha numa empresa de exploração marinha e precisa voltar o quanto antes para assumir uma pesquisa sobre cangurus que viviam no mar. Uma loucura, né?! Eu nunca tinha ouvido falar em cangurus marinhos? Parece que é da espécie dos ornitorrincos. Esse bicho que é meio ovíparo e meio mamífero, não é?! Eu lembro que o Carlinhos, sabe o neto de Genésio meu vizinho, então veio aqui em casa um dia desses, acho que quarta ou quinta, para pesquisar sobre ornitorrincos. A internet deles caiu e demorou dois dias para voltar e o menino tinha que entregar o trabalho. Acabei ajudando. Sei tudo sobre ornitorrinco. Ah! Aí o Genésio tocou a campanhia e disse que achou minha bolsa jogada lá no  pinheirinho, aquele que seu tio plantou quando você era pequena, lembra?! Menina, tá enorme. O pessoal da prefeitura esteve aqui para aparar de tão alto. Se caísse no telhado faria o maior estrago. A vó tava almoçando, não entendeu nada. Aliás, estou preocupada com ela; tem comido pouco, vive dormindo, as vezes faz uma confusão danada. Ela sonhou com o vô e acordou dizendo que tinha visto ele aqui no jardim. Você sabe como eu sou impressionada com essas coisas de espíritos, né?! Disse para ela que era um sonho, mas ela falou que era tão real que deu quase para sentir o cheiro dele. Mandei rezar uma missa. E aí vem o Genesio com essa história de bolsa ... fui assistir a fita da câmera de segurança. Ainda bem que tem. Se bem que ajuda e não ajuda. Agora eu sei tudo que aconteceu, mas fico com medo que aconteça de novo. Tô pensando em orçar uma cerca elétrica pro muro lateral, lá onde o cara apoio a bicicleta. Parecia um cara, mas não da para ver direito se era novo ou velho, seu tio achou um pouco familiar. Agora a gente pensa em todo mundo que entrou aqui nos últimos tempos: trocaram o telhado, instalaram o portão, pintaram a parte de fora da casa. Teve o pessoal do sofá e da calha também. Parece até preconceito, né?! Mas foi tanta gente. No começo achei que era brincadeira do Genesio. Ele é brincalhão, veio buscar jornal velho para embrulhar os potes de pimenta que o gringo vai levar para Austrália e eu achei que ele tinha de sacanagem levado a bolsa. Imagina! Quando fui ver era o ladrão. Chegou de bicicleta, entrou pelo calipal e encostou a bicicleta no cantInho do muro, bem ali onde seu tio colocou a bandeira do São Paulo. Gigante! Comprou uma maior que a do Brasil, acho que de desaforo. Ele pulou o muro e entrou na sala e pegou a bolsa que devia estar na cadeira da mesa de jantar. Bem que você fala que eu tô ficando surda, não ouvi nada. Acho que tava com a vó na sala de TV assistindo o novo Vídeo Show; até que é legal, viu?! Tem uns games com artistas de segunda categoria que são divertidos. Eu sei que não ouvi nada mesmo. Na câmera da pra ver ele correndo e fugindo de bicicleta. Fazer o que, né?! Deve ser ladrão pé de chinelo, parecia meio drogado, deu um tropicão quando fugia. Ou bêbado, sei lá. Mas também coitado, não teve muita sorte, se muito eu tinha cinquenta reais na carteira. Cê sabe que eu não ando com muito dinheiro. Nem sei se tinha tudo isso, outro dia furou o pneu do carro e eu tive que pagar o borracheiro com cartão de débito. Eu não tinha dez reais, ainda bem que ele tinha maquininha. Hoje em dia qualquer um pode pedir maquininha no banco. Você tem no consultório? ... E os meninos, tão bem? Que bom! Não quero tomar seu tempo, era só para contar do assalto. Manda um beijo para todos e depois a gente conversa com calma. Beijo 

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Her

Falta de tempo para ir ao cinema e filmes disponíveis para alugar no controle da tevê combinam perfeitamente. E não pensem que é simples! Embora o sofá esteja a metros de distância da cozinha ou da tarefa de casa dos filhos, as vezes o percurso pode durar horas. Se em casa é difícil, na frente da telona é quase impossível. Primeiro é preciso arrumar um adulto responsável e vígil para as criancinhas não colocarem o gato no microondas, depois achar uma película classe a ou b que esteja passando num raio de dez kms do seu lugar de origem (casa ou trabalho) e por fim descolar três horas que terminem antes da meia noite para o processo trânsito, pipoca e filme. Pois bem, essa semana tive a sorte de me livrar da serial sequência dos Transformers em troca de uma sessão doméstica – com a promessa de não dormir feito um guaxinim abatido por um sedativo antes do fim do trailer. Confesso que implantei um processo altamente sofisticado para tudo dar certo: comi pouco no almoço, tirei um cochilo no meio da tarde, tomei uma chuveirada gelada e escolhi um cobertor mediano para os dias de inverno. Obviamente escolhi o filme: Ela. Lindo, bucólico, delicado, melancólico, realista, contrastante. Daqueles que serve a toda sorte de representações rasteiras e ordinárias (pra mim as melhores). Saudades resolvidas, lembranças fisiológicas que despertam odores, sabores e de quebra preenchem duas ou três rugas com aquele sorriso disfarçado, além dos motivos críticos descritos pelos guias de cinema. A voz rouca e erótica da moça  (can you fell me with you right now?), a dele um pouco esganiçada saindo da boca triste com moldura de bigode mal crescido, a trilha sonora instrumental para você duvidar da idade que tem, o detalhe do alfinete de fralda de bebê posto no lado esquerdo do peito para sustentar um amor em forma de computador, o cacoete sedutor de arrumar os óculos com a ponta do dedo indicador e todos aqueles nomes alucinadamente melódicos ( Samantha, Theodore, Joaquim, Scarlett) – se você disser cinco vezes escutando The Moon Song é apaixonamento imediato. E o que dizer sobre a profissão do moço: escritor de cartas de amor. Suspiro com morango e chantily. Sobre o filme: assistam. E o filme me lembrou a música, da moça, de Hollywood, da costa, oeste, do curso, de inglês, da faculdade, da Califórnia, do namorado, do dia, da carta. Época sem computador, email ou qualquer forma de comunicação virtual que custasse menos do que muitos dólares. Vivíamos a sorte da espera dos correios, dos cartões do Garfield daqui e das maravilhas do Handmade de lá, das encomendas inesperadas, das ligações internacionais; sempre na tentativa vã de matar a saudade física dos vinte anos e assim, seguíamos guardando lugar - frouxo - para que nenhum desavisado sentasse. Mas sentou. E pela contabilidade da caixa de sapatos, já tinha recebido algumas dezenas de declarações escritas e enviado tantas outras e improve my english da melhor forma possível: escrevendo cartas de amor. Talvez sejam as palavras mais conhecidas do outro idioma, hoje insuficientes para tradução de textos técnicos, mas é dai, quem precisa de termos técnicos para rabiscar afetos baratos?! Fato é que memoriar caraminholas sempre me interessou e por interesse afetivo fazemos das coisas as mais bestas. Saltamos de bungee jump, atravessamos o deserto de Mojave com carro velho ouvindo música brega, entramos escondidos no porta-malas do carro, entregamos pizza de madrugada, jogamos The Sims até a cidade explodir, fliperama até o dinheiro acabar, passamos noites desconfortáveis em colchão de ar e frio no topo da Twin Peaks comendo morango gigante e bebendo champanhe doce e também escrevemos cartas. A pedido lembro de escrever uma carta padrão, daquelas falsas que dizem tudo e nada ao mesmo tempo, mais ou menos assim: "Querido(a).Como vão as coisas por aí? Sinto tanta falta de tudo e de todos. Tenho me divertido bastante por aqui. O programa é muito bacana, conhecei pessoas do mundo inteiro, com histórias tão mais diferentes do que podemos imaginar. As pessoas são interessadas pelo Brasil, perguntam sobre o futebol, o carnaval e a Amazônia. Alguns pensam que o Rio de Janeiro é a capital e que vivemos na selva ou a beira mar. Nessas horas lembro muito de você, nossos papos sempre foram mais interessantes, sinto saudades. Logo logo o projeto acaba e estarei de volta. Me espere. Seu(sua)". Atendia da avó a namorada de infância; bastava um coração carente. Um pouco como o filme: moço solitário procura como não se livrar de uma dor. Vicio humano primário, saudosistas das primeiras relações. Fico por aqui, achando melhor assistir Planeta dos Macacos. 

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Há quarenta e oito horas as férias acabaram. De lá pra cá foram treze horas de sono, uma de caminhada, quatro entre necessidades primárias, cafés e leituras e o resto trabalhando. Antes do fim do primeiro período, senti pelo turgor da pele uma tristeza súbita; parecia a rotina invadindo minha circulação. Tremor no olho, fisgada na coluna, dormência no braço, hipersensibilidade nos poros; sintomas relevantes e ordinários do mais epidêmico dos males: estresse. Desapareceram antes do embarque: física e psiquicamente. Dias de sol, boa (e farta) alimentação, doses alquimicas de vinho, imersão em mar aberto, caminhadas de peregrino e sono, muito sono. Parecia imune por mais uma temporada. Humor estável, irritabilidade em parâmetros de normalidade, produções  oníricas que envolviam trabalho de forma cômica. Muita literatura intercalada com períodos de sonolência e despertar, caipirinha e água de coco, sonolência e despertar, ... embalado pelas notas do vento, das ondas e do rastejar dos calangos nordestinos. Crível de se estar e de se viver; por apenas quinze dias. Decisões tomadas: menos investimento no que é do homem, mais tempo para o ócio. Não-crível. Tropecei no primeiro degrau; nas pendências dos prazos das exigências dos parâmetros dos ideais. Peguei rabeira no para choque e equilibrei o corpo anestesiado pelo ritmo das férias. Senti um cansaço nas articulações, tão maleáveis a tão pouco tempo. Daquele cansaço que aprisiona os pés no chão; descarrega litros de sangue na rotunda do joelho, deixa a cabeça besta de idéias, quase dúvida do que vê, mas é fraco ou indignado para reagir. Daquele que provoca espanto e resistência a contaminação do mal, da intolerância, do estreitamento do tempo. Barafusta como a presa que sucumbi ao predador. É o fim. Das férias. 

sábado, 5 de julho de 2014

Quantas pessoas que você conheceu já morreram?

Quantas pessoas que você conheceu já morreram? 

A primeira pessoa que conheci e já morreu foi minha bisavó. Lembro dela deitada numa cama de quarto escuro, sem um dos dedos do pé esquerdo. Seu corpo vivia coberto por um retalho de matelassê  cor de rosa, apenas do joelho ao peito, deixando amostra o pé sem dedo e o rosto envelhecido. No criado mudo direito havia uma prótese dentária mergulhada numa solução turva. Numa mão segurava o terço de contas com a cruz pendurada entre os dedos, na outra um lenço engomado de escarro. Lembro como uma imagem fixa de foto, sem cheiro. Ela era oitenta e cinco anos mais velha do que eu.  
* Passado uns anos, morreu a tataravó da minha prima. Tinha cem anos e morava numa cama de solteiro. Não se mexia, a boca estava sempre aberta emitindo odores e gemidos. Eu tinha medo daquela cena, em movimento. * Da mesma prima morreu o pai, meu tio. Diziam que morreu com a mesma idade de cristo. Dele lembro pouco, éramos muito novos, mas lembro do canto que fazia esfregando o dedo nas taças de cristais para provar se eram verdadeiras; lembro também do beiral que subíamos escondidos na janela do hospital em que estava internado, pois não podíamos entrar. Lembro de vê-lo emagrecido na cama. * Depois foi a vez de uma colega da escola. Ela era dois meses mais velha. Sentava na primeira carteira da terceira fileira da sala seis. Na quinta série ficaríamos no segundo andar não fosse seu coração fraco. Ela era branca como a neve com lábios roxos, falava baixo e sorria sem dentes. Não tinha força para passar o recreio no pátio, então nos dividíamos para buscar o lanche na cantina e acompanhá-la até o sinal anunciar o fim da diversão. Não voltou da férias. * Talvez, na seqüência tenha morrido meu tio avô; era um touro capaz de carregar toras de madeira nas costas. Tinha uma Brasília laranja muito bem cuidada, como ele. Era decidido, seguro e extremamente afetivo. Brigava se girássemos nas cadeiras da cozinha. Descobriu uma doença chata que havia passeado pelo seu corpo. Foi assustador ver seus músculos definhando; não durou muito. * Meu bisavô foi logo depois; das mortes mais poéticas que já vi. Morreu as vésperas de completar noventa e quatro anos. Era um operário padrão das missas de segundas, quartas e domingos. Sabia de cor o aniversário de todos os filhos, genros, noras, netos e bisnetos. Bom contador de histórias; nos fez acompanhar a vinda no porão do navio cargueiro, o primeiro emprego como mortorneiro, o lamento cínico diante da partida dos mais velhos. Com ele aprendi um naco de salve rainha, mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve! Para evitar uma grande queda, ajoelhou-se após a hóstia e desfaleceu no banco da igreja. * Teve também uma amiga do bairro. Passávamos boa parte do final de semana sentados nos três degraus disponíveis na fachada da sua casa. Ajudava sua mãe na barraca de pastel. Seus irmãos mais novos não estavam autorizados a mexer no tacho de óleo fervente, poderiam causar um acidente perigoso. Na segunda, como havia trabalhado muito na feira de domingo, acompanhou sua mãe e sua tia em um dia na praia. Os menores não puderam perder aula, tinham prova.  Sua tia não sabia nadar, tampouco sua mãe e ela, aos quinze anos não conseguiu salvá-las. Se afogaram antes do meio-dia. * Então perdemos meu tio, esmagado entre as ferragens do carro e do caminhão. Era apenas vinte e cinco anos mais velho, embora muito moço. Sempre, sempre carregava um sorriso alegre, debochado e bravo no rosto. Passou a vida sendo gordo, da gordura mais apetitosa para um abraço. Sábado a tarde costumava aparecer em casa para uma cerveja, um petisco e meia hora de prosa. Sem que soubesse perdeu peso para morrer. * Das mortes significativas a última foi do meu avô, dele já falei em outro lugar, mereceu uma escrita especial. * E do passarinho, que hoje a tarde ficou com as patas presas nas flores da cerejeira até sufocar de tanto bater as asas, em vão. Morreu na única semana do ano em que floresce a mais bela e efêmera das flores.

domingo, 22 de junho de 2014

A revolução

Bastou abrir a porta para ouvir os lamentos vindos da cozinha. Mal havia dado o último suspiro de exaustão da minha caminhada cardiopata, já fui obrigada a interceder em briga de crianças. Estava tão feliz com os sussurros eróticos do locutor (*) do aplicativo running... Congratulations! You completed six kilometer in sixty minutes. Uau! Morta, vermelha feito uma muhammara e completamente apaixonada pelo Brian (*) tudo o que eu queria era me jogar no chão como um bulldog e resfriar meu corpicho no porcelanato da sala. Ilusão. Num mau humor típico segui para a cozinha e para meu espanto não havia criancinhas; com o cérebro oxigenado lembrei que despachei todos para o clube para a maratona tênis, vôlei, futebol e só uma cervejinha. Freedom. Voltariam as treze para filar o almoço na casa da avó, mas fato é que os lamentos seguiam crescentes. Me aproximei com cuidado munida de uma espada de plástico e encontrei o prato sujo adormecido de miojo reclamando com a panela queimada sobre a atual condição da pia. Dei uma espreguiçada, esfreguei os olhos e como as ações não surtiram efeitos abri uma cerveja e resolvi escutá-lo. 
Compreensível. Esboçava indignação pela falta de respeito que sofria dos donos da casa. Era sim, inanimado, mas tinha uma natureza: limpa, branca e de porcelana sextavada. Gostava de morar naquela prateleira; tinha boa colocação em relação ao copos, servia da alta gastronomia ao trivial diário. Lembrava com carinho o primeiro serviço a francesa. Um bife a cavalo carnudo e suculento com aquele ovo de gema mole escorrendo pelas laterais, e a farofa!? Sequinha e crocante com pequenos pedaços de bacon fazendo par com o arroz branco enformado na xícara. Espetáculo. Reconhecia seu caráter, sua força e sua humildade. Nunca reclamou de receber o empilhamento de louça suja sobre o seu corpo engordurado e esquecido no fundo da pia, sempre o fez de cabeça erguida. Regozijava com a água aquecida e as bolhas pululantes do detergente biodegradável e depois, todo orgulhoso, puxava a fila no escorredor servindo de apoio para aqueles utensílios leves. Histórias não faltavam: já serviu de apoio para virar omelete, gratinou macarrão, era o predileto para a pizza de sábado e confessou que sentia prazer pelo risco de escorregar da mão de algum amador. Mas uma coisa era certa, não tolerava o descaso de ser esquecido, por dias, ao lado do lixo de pia. Chegavam a confundi-lo, depositando casca de banana, papel de bala, até guimba de cigarro jogaram nele. Humilhante. Decidiu pelo motim, tinha espírito de liderança e sabia do seu poder. Era peça chave naquele território, nada nem ninguém prescindiam a sua presença. Bem, talvez o jarro do suco verde, mas que também tinha queixas contra os proprietários. Quando esquecido sem um breve enxague, era obrigado a permanecer de molho por horas, até amolecer os fiapos de couve grudados na sua parede. Aliou-se ao liqüidificador, a frigideira da carne, a assadeira do frango e a espátula do requeijão. A panela do molho de tomate nem precisou ser convocada, se voluntariou para encabeçar a greve e com ela vieram os copos de nescau, yogurte e a xícara de café. O plano era o seguinte: na próxima pernoite abandonados a sorte das baratas e do gato vira-lata, invasor soturno em busca de alimentos, todos, sem exceção, manteriam-se grudados no lugar do descarte. Em guarda, resistentes ao combate, ficariam ali até que o armário estivesse vazio, sem nenhum prato de plástico ou aquele talher reminescente de bebê e então, quando algum humano tomasse providência, seria tarde demais. A essa altura os perecíveis já terão se unido, são mais frágeis e minoria. A sobrevida do pão sovado esquecido fora do saco plástico é curtíssima; se calor embolora, se frio resseca. E o leite, azeda em poucos minutos. A carne escurece como se tivesse no verão baiano sem protetor solar. O requeijão vira armadilha de mosca correndo o risco de ir pro lixo na segunda usada. O verde-louro do brócolis se transforma no amarelo da febre amazônica. Em pouco tempo seremos muitos! Temos os recicláveis, as vezes abandonados por semanas servindo de moradia para dengue e roedores, as toalhas enrugadas entre o chão e o sopé da cama, as calcinhas no registro do chuveiro, as pastas de dentes abertas em pura crosta sem utilidade. O cesto de roupa suja transbordando e os lixos dos banheiros exalando o pior dos odores. Não esqueceremos da grelha da churrasqueira, pobre coitada lembrada uma vez por mês, somente quando chegam os convidados. Correria corrosiva capaz de acabar com o brilho do laminado reluzente. Tomaremos a máxima do filósofo como lema: o pior inimigo do humano é o próprio humano. Caos instalado não restará outra saída a não ser a reintegração da ordem, da disciplina, da organização. Se usar, lave. Se comer, guarde. Se enxurgar, estenda. 
Fui tocada pelo depoimento: lúcido e estarrecedor e sem pensar me desculpei em nome dos homos erectus que habitam a caverna. Tentei uma defesa: feriado prolongado, copa do mundo, férias da Maria, excesso de visitantes, em vão. Reconhecia meu esforço, a dedicação na educação das crianças, inclusive me parabenizou pelas delícias culinárias que produzo, mas me lembrou que uma andorinha só não faz verão. Com a gentileza de um cavalheiro permitiu que eu abrisse outra cerveja e se dispôs a dar mais uma chance. Em nome da família aceitei envergonhada, busquei o sabonete líquido no lavabo e prometi tratá-los com todo carinho. Em pouco mais de uma hora a casa estava funcionando a plenos pulmões. 
Os refugiados do clube tocaram a campanhia. Suados, com os tênis sujos e restos de grama saindo pelo ladrão invadiram a harmonia do lar sem nem desconfiar do que acabara de acontecer. Jogaram as raquetes e bolas no chão da sala, esqueceram os copos de água na mesa da cozinha e saíram do banho abandonando suas toalhas lá, no sopé da cama. 
Famintos, não viam a hora de partir para a casa da avó/sogra e não lembraram da desordem recém implantada. Talvez nem notaram a cama estendida, a pia limpa, o lixo vazio. Calmamente, já em posse da terceira latinha, comuniquei que havia desenvolvido um traço sensitivo, quase mediunico e era capaz de escutar seres inanimados. Contei sobre a longa conversa com o prato, a hora gasta com a barriga na pia e informei que naquele instante pressentia um tom de tristeza na porta do armário do quarto que estava escancarada. 
Sem questionar o pai pediu a colaboração das crianças, organizou as coisas em seus lugares e contou de rabo de olho o número de cervejas vazias. 

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Acredite se quiser

Quando seu pai comprou a casa inacabada, não imaginaria que ficariam por ali tanto tempo. Não eram pobres, eram assalariados. A prestação no orçamento da família deveria acabar antes do primeiro entrar na faculdade. E assim foi. Deu para mobiliar o quarto das crianças, trocar os eletrodomésticos da cozinha, comprar um aparelho de som com duplo toca-fitas e um vídeo cassete. Estiveram no nordeste de avião e financiaram um carrinho usado para dividir entre os dois mais velhos. Com tudo pago conseguiram um lote de terra a um palmo e dois passos da capital, construíram um rancho com rede para todos. Mudaram para lá antes de o caçula terminar a faculdade. Voltavam toda semana para pagar a empregada, congelar comida, buscar a correspondência e apagar as luzes esquecidas pelos meninos. Ainda vivem e a despeito das estatísticas conheceram todos os netos, cinco no total.

Passaram imune a violência urbana. É certo que tinham grades e fé, desconfio inclusive que rezavam de joelhos, parece que dá mais sorte do que deitado.

Por opção, um contrato, meia dúzia de trabalhos e um pouco de dinheiro a casa permaneceu com a família. Na família que fez outra família. Pagaram antes de o primeiro entrar no colegial. Deu para mobiliar o quarto das crianças, o escritório, a churrasqueira, trocar os móveis da cozinha, comprar duas tevês de tela plana, um aparelho de som com cdeplay e assinar os canais pagos. Estiveram no nordeste de navio e na Europa de avião e financiaram um carro zero de fábrica com ar condicionado e direção hidráulica. 

Frequentam o rancho que agora ganhou varanda, lareira, piscina e abriga os anciões.  

Infelizmente os tempos mudaram. A segunda família, sustentada na ilusão do recanto seguro, foi vítima da violência urbana. É certo que tinham grades e fé, desconfio que rezavam deitados, parece que dê joelhos dá mais sorte.

Era um dia qualquer, desses quaisquer de trabalhar, levar filho na escola, dormir tarde para acordar cedo. Se o horário do xixi estava certo devia ser perto de quatro da manhã. Ela ouviu um barulho estranho, mais do que o gato preto no telhado do vizinho. Mas de repente o gato estava mais gordo, ou o telhado mais frouxo. Acordou o marido de cutuco para não assustar nem o gato nem as crianças. Como o barulho demorou a passar levantaram de fino, não acenderam a luz, esperaram e voltaram a dormir.

Logo cedo encontraram o que o medo negou na madrugada. Escada na beira da laje, armários abertos e uma bicicleta a menos. Merda!

Chamaram a polícia, o vizinho, o guarda da rua - nessa ordem. Chegou o vizinho, o guarda da rua e a polícia – nessa ordem. Obviamente o prejuízo foi pífio perto das noticias veiculadas no jornal, quase anedota. Ladrão de galinha travestido de usuário de crack. O vigia da noite não viu nada, tampouco ninguém. As crianças tinham prova, os adultos reuniões; a polícia, o guarda da rua e o vizinho tinham o que fazer. Lamentamos o ocorrido e seguimos o dia.

Antes do orçamento da cerca elétrica e das câmeras de segurança chegar por email a empregada ligou avisando que entregaram a bicicleta furtada sem muitas explicações.

Entrega de milicianos que operam no mesmo território. Não mexa no lugar do meu ganho pão, disse a nesga de caráter que dividi um homem entre o bem e o mal.


Numa enxurrada de metáforas baratas finalizo a segunda-feira após a confecção de infinitos relatórios com frases pré-estabelecidas e ao som do eterno Cartola. Simplesmente as rosas não falam. Haja fígado! Mas e daí? A segunda até que foi boa, diria que razoavelmente boa. Foi recheada de encontros, lembranças aos baldes e dois cafés expressos. Teve gente chegando carregada de estórias e más intenções. Da mesma porta teve gente saindo pra vida no além mar. Uma pessoa morreu, mas já era esperado – o que quer isso possa significar. Nasceram aos montes, contei cinco nos poucos minutos que gastei por ali. O carro, como sempre, demorou mais tempo que o trajeto. Foi tanto que deu tempo de ligar pra melhor amiga, pra melhor irmã, pra moça da dedetização. Havia, como sempre, trânsito. Certamente havia alguma manifestação; não sei ao certo, mas reivindicavam e só.  Atrasei para a consulta com a ortodentista; que sorte do meu filho! Adiou o aperto por mais uma semana. Na natação chegamos a tempo, foi dia de avaliação. Pelo que vi evoluíram em média 10,8”, motivo de comemoração e justificativa para me manter longe do fogão. Comemos peixe assado e cru. Já dormindo escutei quinze vezes a mesma música e nada do sono. Acho que foram as lembranças da manhã. 

sábado, 24 de maio de 2014

Da série: mãe de meninos


Em meio a um final de semana delicioso com um casal de amigos e suas meninas conclui que a maternidade do gênero masculino assola a feminilidade de uma mulher.
As crianças, variando de idade - 8 a 18 anos, mas não de necessidades, demonstram carinho e importância de modo muito peculiar. As meninas, delicadas no contato, abraçam a mãe como uma amiga de colégio. Braços dados, cuidado com os cabelos, troca de roupas e enfeites para o jantar, caminhada em ritmo marcado para não parecer um andar desengonçado. Os meninos, mastodontes pré-históricos constantemente famintos, se apoiam sobre minhas costas esmagando da cervical a lombar, arrancando metade do cabelos cultivados as custas de muita queratina sintetizada, pisam com seus tênis enlameados na minha única sapatilha, enchem meus bolsos de restos e coçam seus narizes nos meus ombros deixando rastros de melecas.  
Comemorando a boa safra, decidimos por um hotel que oferece chalés rústicos e espaçosos para famílias de quatro pessoas. São dois quartos suítes, ambos com televisão a cabo, separados por uma agradável sala de estar com lareira, varanda e piscina privativa. Tipo: imenso! As meninas, ciumentas do seu espaço, organizaram o container de shampos, cremes, perfumes e maquiagens no próprio banheiro, dividindo a pia em tamanhos iguais. As roupas foram dispostas no guarda-roupa, os casacos pendurados no mancebo e os sapatos devidamente organizados em duas prateleiras. No quarto ao lado - o meu - as criancinhas se amontoaram na cama do casal, largaram os tênis e as meias como pegadas de dinossauros no dia final, as roupas sujas e molhadas foram esquecidas dentro da mala de roupas limpas e, o único pertence de higiene pessoal, a escova de dentes comunitária, se manteve esquecida dentro da pia do meu banheiro. Local aliás, que foi usado para toda sorte de atividades durante o final de semana. Descobriram que havia um segundo banheiro apenas no domingo. E o banho? Os meninos entendem que a passagem pela água, seja ela corrente do chuveiro ou altamente clorada da jacuzzi aquecida, serve como higienização corporal. Para eles não faz o menor sentido sair da piscina e tomar banho, ainda que o cabelo liso já tenha se transformado em dreadlock seboso. As meninas, ao contrário, são capazes de lavar e hidratar e escovar as madeixas até três vezes por dia. 
Agora um pouco emblemático são as refeições. Mesmo que apresentem restrições de crianças mimadas, as meninas seguem o ritual: entrada, prato principal e sobremesa. Escolhem o lugar para sentar, aguardam a chegada do garçom, pedem a bebida sempre com algum detalhe - mais gelo, menos gelo, um saquinho de adoçante, sem nada, coado e etc - esperam a bebida e só então dirigem-se ao buffet. Já os meninos ... raposas selvagens a caça de predadores chegam no restaurante, ignoram a sessão de saladas e invocam um prato fundo para aumentar a porção. Criam verdadeiras construções modernas, empilhando arroz com macarrão com batata com carnes e por fim uma fatia de tomate. Para não perder tempo, apóiam aquela montanha bem ao lado do quindim e , em outro prato fundo, separam uma fatia de pudim com torta de limão com brigadeiro e duas bolas de sorvete de creme. Quando a mesa, gritam em bom som se a coca, que eles não pediram, já chegou. As meninas voltam a mesa com a folha de alface e um ovo de codorna no prato, no mesmo instante que eles perguntam se já podem sair, afinal já almoçaram. Caso a resposta seja negativa, compreenda que sua refeição foi para o saco. O menor pede colo, não vê nada de errado em juntar as cadeiras como cama, tão pouco entende como incomodo você se alimentar com uma cabeça entre sua boca e o caldo de aspargos pelando. O maior, carente, gostaria de um carinho nas costas com a sua mão esquerda, afinal você não é canhota, pra que mesmo usar as duas mãos?! Na cadeira em frente, seu marido degusta o pernil de cordeiro e pergunta, amor, se você experimentou o molho. Uma delícia! Obviamente seu humor esfriou junto com a sopa que seria sua entrada.  As meninas conversam com os demais e oferecem um gole do suco de frutas vermelhas para a irmã experimentar. Na tentativa de salvar seu jantar, você grita para que saiam do seu corpo, te chamam de louca e partem para a ponta da mesa. Começam a bater figurinhas enquanto as taças tombam, a sopa vaza, o singelo vaso de flores se estabaca no chão. 
Mas um hotel fazenda é um lugar amplo, oferece muitas atividades ao ar livre, esportes e contato com a natureza. Ordenhar a vaquinha por exemplo. As meninas, de luva e pró-pé, fazem um selfie com zoom e flagram os meninos ao fundo montados na malhada com esterco até o joelho. Elas adoram andar de pedalinho admirando a paisagem, enquanto eles competem ferozmente para ver qual cisne vai afundar primeiro. Na relva verde eles rolam morro abaixo e retornam felizes como porcos espinhos cobertos de picão. Na piscina se divertem com a bola tendo como única finalidade acertar a cara do irmão. Também soltam pums, as gargalhadas, para verem as bolhas fétidas saírem. As meninas tomam sol. 
Os(meus) meninos são doces bárbaros, expressam afeto utilizando todos os ossos do corpo. Me apertam nos lugares mais indesejáveis, atribuem apelidos vexatórios, beijam molhado com bafo de noite bem sonhada. As meninas demonstram doçura de forma mais cuidadosa. Gastam tempo com a conversa, ajeitam a gola da blusa da mãe, dividem o brilho dos lábios para não sofrerem com o sereno das montanhas. Minha comadre, mãe das meninas, também é doce, delicada, de uma vaidade rosa. Fui me dando conta que sou uma mastodonte fêmea; preste a dormir observo que visto as meias velhas do primogênito, o moletom surrado do marido e aqueço as pernas com o cobertor encardido do caçula. Típico de mãe de meninos. 

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Fases

Aos seis anos viajei com meus pais e meus tios pela América do Sul. O meio locomotivo era uma Belina duas portas, recém pintada de azul royal. Em território nacional seu porta-malas media a dimensão de um universo gigante, atravessando BRs era um cortiço apertado. Meus avós ficaram responsáveis pelos cuidados da minha irmã, então com pouco mais de um ano. A programação da viagem duraria trinta dias e talvez uns dez mil quilômetros. Para uma criança devia ser algo como a volta ao mundo ou um número com muitos zeros que não cabia na calculadora. Guardo reminiscências da aventura. Era verão; os respingos das cataratas; um quarto abafado de hotel; a visita a um casal de chilenos cuja filha chamava Chimena; a sandália de couro que usava; o cheiro de carne assada e a água com gás.
Odiava água com gás. Por alguma razão desconhecida, em pontos da viagem não encontrávamos água sem gás. As estradas, certamente não ofereciam lojas de conveniência recheadas de gostosuras e líquidos saborosos. Os postos, cuja função era abastecer os carros aventureiros que cruzavam fronteiras, ofereciam combustíveis e borracharia e água de torneira e banheiro sujo. Fui obrigada a aprender fazer xixi agachada atrás da porta do carro e... tomar água com gás.
Um ano depois, meus outros avós decidiram patrocinar uma viagem para os seis primeiros netos e uma única bisavó. Éramos três meninas e três meninos quase todos da mesma idade. Esses avós optaram pela multiplicação em massa e tiveram onze filhos; dez vivos e um morto. Filhos em série, em geral, produzem filhos em série. Da meia dúzia, quatro tinham sete anos, um oito e uma nove. A bisavó contava na época com oitenta. O destino foi Caldas Novas, lugar turístico de Goiás. Fomos de ônibus. Foram 12 dias de viagem, sendo um para a ida e um para a volta. Dessa aventura guardo lembranças – diferente das reminiscências, elas se movimentam. As piscinas eram aquecidas; havia um bar com chafariz dentro de uma delas; o buffet de comida era farto; tínhamos direito a um sorvete por dia; dormíamos as nove; a moeda local eram conchas coloridas que formavam colares ou pulseiras e equivaliam ao dinheiro de papel – uma espécie de percursor do cartão magnético e meu avó, que estabelecia um relação de apego com o dinheiro, oferecia a cada refeição água tônica; para todos.
Odiava água tônica. Uma classe de água com gás que revela seu potencial de refrigerante, apenas para os que toleram sua amargura inicial. Sem muito êxito implorávamos por uma coca-cola. Vindo do mesmo avô que não autorizava mais de um Yakult por dia, reciclava os caroços da azeitona no óleo de soja para pegar o gosto e comprava bengalas de pães por serem mais econômicas, não obtivemos muito sucesso. A coca era cara e fazia mal, enquanto a tônica além de mais barata, ajudava na digestão. No terceiro dia diminuímos o consumo de latas para três.
Não conheço nenhuma criança que tome água com gás ou tônica. Entendo que exige um paladar refinado, marcado pelo tempo e pelas experiências. É um traço da filogênese que se repete na ontogênese da raça humana. Mas para o meu avô isso não fazia a menor diferença, talvez tenha nascido amargo; tampouco para os argentinos.
Atravessei a primeira, a segunda e a terceira infância evitando esses dois líquidos. Continuavam amargos como remédios e para mim, estavam associados a estados de maus humores. Eram a tentativa de varrer para dentro os excessos que moravam nas bocas. Restos de palavras, desafetos e agonias.
No final da adolescência conheci o antiácido, provavelmente após algum exagero e, conclui a série gasosa na mesma época em que conheci outro amargor que me fez fazer as pazes com o gás da água e da tônica e do antiácido.
Passei a tomar cerveja e café. Passei a entender melhor meu avô.    


quinta-feira, 15 de maio de 2014

Recomendações aos médicos que praticam a boa medicina

Quando de um doente queixar-se daquilo que não encontra morada nos sistemas previstos pela ciência, considere a sugestão de um tratamento por meio de palavra. 

O método simplificado propõe doses semanais com hora e duração pré-estabelecidas, sujeito a interpretações efetuadas após o estabelecimento da transferência. 

De uso rápido (e clínico) segue orientação para diagnóstico diferencial. Apresentando um(a) ou mais manifestações, encaminhe: 

  • Espécie de obnubilação 
  • Labilidade psíquica de síntese
  • Sensação de desassossego
  • Desconcerto abissal e hipnótico
  • Precipício existencial
  • Inquietante estranheza
  • Sensação de desequilíbrio
  • Impressão continua de perder o solo
  • Corpo como um veículo em decomposição
  • Inevitável decadência
  • Angústia de fragmentação corporal


Grata

Subjetividade  

domingo, 11 de maio de 2014

Dia das mães

Fui sorteada para cumprir a escala de plantão desse final de semana. Findados os dias comerciais, ficamos a disposição do hospital para atendermos os chamados de urgência. Em geral, alguém da equipe de saúde reconhece certo desassossego na alma dos pacientes e protocola o que chamamos de avaliação psicológica. Então, a moça da localização liga para o profissional disponível e informa o nome (do paciente) e o quarto em que se encontra. Por razões institucionais, definimos o grau de urgência pra tamanho desassossego; pode ser de prioridade máxima (devemos responder nas próximas horas) ou de rotina (conseguimos nos organizar para as próximas 24 horas). Como o grau de inquietação depende de quem cuida do paciente, achamos por bem organizar uma lista de situações hipotéticas que funciona como um guia orientador para os nossos colegas. (Más) notícias inesperadas, conjunturas irreversíveis ou rompimento abrupto da vesícula protetora do psiquismo são exemplos presentes na lista. Pois bem, hoje recebi quatro telefonemas que exigiram minha presença antes do anoitecer. Coincidentemente, todas as almas inquietas pertenciam a mulheres. Jovens e velhas que comungavam da mesma condição, materna. Os pedaços doloridos da carne eram diferentes. Sofriam do fígado, do intestino, da cabeça e do útero. Falaram, e como falaram. Angustiadas contaram dos excessos, do real do corpo fragmentado pela navalha da medicina, do processo de adoecimento, dos efeitos colaterais das drogas, da fragilidade constante e do lampejo de esperança pela recuperação. Umas mais apressadas do que outras, um tanto impacientes, queixosas (do sistema) e reivindicadoras da condição de saudável. A vida – aquele asteroide sem rumo que por vezes nos atropela – estava em suspenso, enquanto seus corpos padeciam ali, na cama fria do hospital. Quantas tarefas esperando pelo retorno de suas donas. O trabalho na empresa, a organização do lar, o livro em plena tradução e as plantas deixadas no quintal, a ermo, na seca. Queriam ir embora. Desejo legítimo e de direito. Ninguém, segundo elas, poderia realizar seus ofícios com o mesmo rigor e dedicação. Nem o colega de trabalho, nem o marido, tampouco a empregada e muito menos os filhos, esses pequenos indefesos que precisam se manter vivos para garantir a cátedra das mães: cuidar. Dos mais novos - talvez um garotinho de seis anos - ao mais velho - um senhor de setenta, pleno de funções, nenhum deles poderia viver o sacrifício de passar o domingo às voltas com aquela refeição insossa, naquele lugar desagradável, que em nada lembrava sua cozinha e seu macarrão. Motivo urgente para o atendimento, padeciam de alto grau de apoquentação. Não havia remédio (desses que alguém pode comprar) que curasse a dor daquelas mulheres. Temiam privar os filhos de suas presenças. Mães! Uma a uma pude ver o sorriso se instalar no rosto abatido, enquanto as crianças chegavam.
Meus filhos ( a quem devo a maternidade), minha mãe, minha tia, minha irmã e minha avó (todas as mães da minha vida) me esperavam para o almoço de dia das mães. Feliz!