segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Enjôo

Segundo o professor Mario Sergio Cortella somos "um entre 6,4 bilhões de indivíduos, pertencente a uma única espécie, entre outras três milhões de espécies classificadas, que vive num planetinha, que gira em torno de uma estrelinha, que é uma entre 100 bilhões de estrelas que compõem uma galáxia, que é uma entre outras 200 bilhões de galáxias num dos universos possíveis e que vai desaparecer". Simples, não?! Seria não fosse umas figurinhas que acreditam ser a ponto sine qua non para a existência do cosmo. Vamos a mais uma delas: 

Como bem sabem segunda-feira não é um dia de deus. Além da lonjura em léguas do próximo final de semana, está perto demais do último. E se não é coisa do divino, bem deve ser do seu maior rival: aquela fofura caliente que só faz lembrar dos excessos que cometemos. A figura é a definição da onipresença, se instala no fígado, na cabeça, nas articulações, no hipocampo. Além do mais é bem relacionado, basta um órgão acender a luz de alerta para os outros apitarem. Hoje não foi diferente: trabalho extra, pendências, reuniões intermináveis, natação e dentista dos filhos somado a um enjôo moralizador atravessando o dia. Em casa, instantes antes do início do terceiro tempo e sustentada pelo lampejo final do pâncreas, sou recebida com um modesto "como foi seu dia"; respondo em ato singelo: "bem, um pouco enjoada". Bastou para despertar a fúria satânica oprimida, incapaz de cessar fogo antes do suspiro final.  

Na íntegra.

Enjoada!? Nossa! Você não imagina o que me aconteceu no sábado?! Fui almoçar na casa da Juju, não na casa porque a Juju não cozinha. Fomos num restaurante lá perto, honesto, comida caseira, nada muito caro, tudo fresquinho. O almoço foi uma delícia, coisa leve, bem temperadinha, não comi nada demais. Foi um pedaço assim óh! de lasanha de frango com molho rose, um pouco de arroz e feijão, um pedacinho de carne assada, salada de alface, tomate, pepino, cebola e uma colher de berinjela de forno com nozes e pimentão, sabe?! E peguei umas batatinhas da filha Juju, mas tava sequinha, frita na hora. Tomamos uma cervejinha, mas isso não pode fazer mal, né?! Eu sei que depois do almoço fomos assistir a fita de casamento do irmão da Juju, tomei um cafezinho com bolo de fubá, sequinho. Depois não comi mais nada, só na hora de ir que me deu uma fominha e roubei uma banana maçã. Menina ... esse tipo de banana não me cai bem. Foi comer e quase morrer, bastou a Juju me deixar em casa começou uma gastura aqui na boca do estômago que nem deu tempo de chegar no banheiro. Pedi socorro pra vizinha que me levou pro hospital; tava branca assim igual sua blusa, faltou pouco pra desmaiar. A médica ficou assustada comigo, deu remédio na veia, pediu exame de sangue e você acredita que não deu nada. Eu falei que era alergia da banana, mas ela achou que não, que pode ter sido a lasanha de frango. Duvido. Tava fresquinha, fresquinha. Sei que fiquei no soro tanto tempo que deu até fome, mas não abusei, né!? Cheguei em casa e preparei uma sopinha rala, quase um caldo, de feijão com uma batatinha e cenoura e um paio que tinha na geladeira. Quer que eu faça uma pra você? Melhora o enjôo que é uma belezura! Mas e você, comeu alguma coisa estragada? 

Sim. Uma estrelinha perdida em órbita cósmica em uma das milhares de galáxias que existem nos universos paralelos ao seu umbigo. Mas fica tranqüila, já já passa. 

domingo, 24 de agosto de 2014

Brincar

Brincar é a melhor forma de levar a vida a sério. Talvez a única. Todo o resto é uma tremenda violência: psíquica, física, social. Brincar é um ato de fé. É apostar no desenvolvimento da fantasia, mola propulsora dos processos criativos. É trocar de lugar, testar possibilidades, ser no outro. É gozar por todos os poros, descobrir fontes de prazer, treino cerebral. Brincar é entender as regras sem imposição, autorizar a presença do outro, questionar a necessidade de sacrifício das relações. Participar dos combinados sociais, assumir uma posição ativa frente a sua vida. É duvidar de si; das coisas muito valiosas, das certezas infundadas. Brincar é um verbo indefinido, eternamente em construção. Se vem pronto não é brincar; é subverter a lógica do sujeito. Sujeito é dono de si, transitoriamente de objetos. Se os objetos apresentam seu sujeito, não há processo. Uma criança está brincando se atribui uma função imprevisível para as coisas. Se responde ao óbvio esta em adoecimento, deixou de descobrir. Também é jogar, pintar, bordar, cantar, dançar, ler, conversar, estudar, rezar, trabalhar, cozinhar, banhar, dormir, sonhar. É ação, condição infinitiva dos verbos; sem qualquer conjunção, sem necessidade de determinar um tempo, um modo, um pronome específico. Brincar é ser, estar; é remédio, cura.
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Gostava de brincar de escalada nos montes de areia e pedra que ficavam no fundo do quintal. O de areia era aconchegante, convidativo, seco e molhado. O de pedra era áspero, pontiagudo, firme. Gostava do cheiro de madeira, da serra elétrica, do caminhão basculante; de brincar de esconde-esconde entre o estoque de louças e caixas d’água, de contar quantas portas e janelas havia no barracão. De pular elástico entre duas cadeiras, de fazer cama para os pintinhos nos canos, de contar parafusos e separar as tintas pela cor.
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O caçula, para quem todo dia é dia do seu aniversário, brinca sem parar. Tá sempre na companhia de um ou dois bonecos que se aventuram pelos cantos da casa. Entre viagens intergalácticas, lutas épicas e a descobertas de novos poderes passa tempo sorrindo e tagalerando barulhos pela boca. Dia desses suspirou: ohmãe, gosto tanto de brincar!
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O primogênito lê: aventuras intergalácticas, lutas épicas, mistérios indecifráveis. Já revelou, segundo sua “perspectiva infantil”, que não gosta de livros que falam da vida real, “desses que podem acontecer com qualquer um”. Se refugia na fantasia, seu jeito de brincar.  

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Tempo

E se pudéssemos organizar o tempo de outro jeito? De um jeito menos previsível, sem a presença tirânica do relógio e dos compromissos. Manteríamos certa lógica, com um punhado de hora para cada pedaço da rotina. Um tanto para dormir, outro para se exercitar, mais um pouco para trabalhar; será que viveríamos na desordem? Penso que somos tantos e com tão poucos interesses que seria bem provável nos agruparmos por tempos parecidos. Montes de gente dormindo até tarde, almoçando mais devagar, pedalando de madrugada, entregando relatório logo nas primeiras horas da manhã. Talvez o mundo se tornasse menos indigesto. Imagine o prazer da leitura sem medo de perder hora para o trabalho, o vinho sem temor pela enxaqueca, o exercício com alongamento. E o cinema no começo da tarde?! Atenderia  domingo de manhã! Não muito cedo, nem tarde, no horário da cabeça leve e do corpo  cansado do colchão. Haveria quem preferisse.
Mas não é assim. O tempo é vilão, bicho papão. Sucateia a vida como os cupins em madeira mole, corroem por dentro tão depressa que só percebemos quando o pó aparece. E negamos; culpamos as formigas, a poluição, a empregada. Passamos vassoura, pano úmido, veneno e nada. Sempre sobra um resto que denuncia o estrago: vasto, profundo. E a única forma de erradicar o mal é olhar até cansar. A madeira oca, perfurada pela praga fica ali, a olho nu, enquanto o veneno mata a colônia lentamente. Só então é tempo de recomeçar. Reconstruir a estrutura da casa sem a ilusão do controle, temendo por nova invasão.
...
Decidi organizar o semestre com dois pedaços de tempo vagos. Deixei um para o começo e outro para o fim da semana. Queria-os longe, protegidos pela distância de dias atarefados. Temia que próximos virassem um compromisso.
Bastou riscar as horas da agenda para o saci aprontar das suas traquinagens. Abriu o pergaminho das pequenas pendências e gargalhou: trocar a lâmpada de freio, comprar a camiseta do futebol, buscar a roupa na costureira, pagar no banco a conta atrasada, fazer o exame médico da academia, a vistoria do carro, a segunda via do RG e o maldito lattes.
De novo furtaram meu tempo.  



terça-feira, 5 de agosto de 2014

Versões do mesmo

Versões do mesmo.

Você soube que fomos assaltados? Conseguimos ver o que aconteceu pela câmera de segurança. Um homem de bicicleta usou de apoio o muro lateral e pegou minha bolsa que estava na sala. Fugiu pelo portão e levou cinquenta reais. 

Você soube que fomos assaltados? Vou contar rapidinho. Na sexta passada o meu vizinho, o Genesio, tocou a campanhia daqui de casa, acho que era umas duas, duas e pouco, eu lembro porque tinha acabado de chegar da reunião do conselho que começou as nove e só terminou mais de uma. Era só para apresentar as chapas para as eleições de outubro, mas acabou virando um debate político. O pessoal da universidade propondo novas diretrizes sem considerar a realidade da saúde do pais, e os outros se queixando da falta de recursos e aí, o Genesio, cê lembra que ele é pai da Claudinha. Você acredita que ela casou com um australiano e tá indo embora. Trancou a faculdade, tava quase acabando, mas o rapaz trabalha numa empresa de exploração marinha e precisa voltar o quanto antes para assumir uma pesquisa sobre cangurus que viviam no mar. Uma loucura, né?! Eu nunca tinha ouvido falar em cangurus marinhos? Parece que é da espécie dos ornitorrincos. Esse bicho que é meio ovíparo e meio mamífero, não é?! Eu lembro que o Carlinhos, sabe o neto de Genésio meu vizinho, então veio aqui em casa um dia desses, acho que quarta ou quinta, para pesquisar sobre ornitorrincos. A internet deles caiu e demorou dois dias para voltar e o menino tinha que entregar o trabalho. Acabei ajudando. Sei tudo sobre ornitorrinco. Ah! Aí o Genésio tocou a campanhia e disse que achou minha bolsa jogada lá no  pinheirinho, aquele que seu tio plantou quando você era pequena, lembra?! Menina, tá enorme. O pessoal da prefeitura esteve aqui para aparar de tão alto. Se caísse no telhado faria o maior estrago. A vó tava almoçando, não entendeu nada. Aliás, estou preocupada com ela; tem comido pouco, vive dormindo, as vezes faz uma confusão danada. Ela sonhou com o vô e acordou dizendo que tinha visto ele aqui no jardim. Você sabe como eu sou impressionada com essas coisas de espíritos, né?! Disse para ela que era um sonho, mas ela falou que era tão real que deu quase para sentir o cheiro dele. Mandei rezar uma missa. E aí vem o Genesio com essa história de bolsa ... fui assistir a fita da câmera de segurança. Ainda bem que tem. Se bem que ajuda e não ajuda. Agora eu sei tudo que aconteceu, mas fico com medo que aconteça de novo. Tô pensando em orçar uma cerca elétrica pro muro lateral, lá onde o cara apoio a bicicleta. Parecia um cara, mas não da para ver direito se era novo ou velho, seu tio achou um pouco familiar. Agora a gente pensa em todo mundo que entrou aqui nos últimos tempos: trocaram o telhado, instalaram o portão, pintaram a parte de fora da casa. Teve o pessoal do sofá e da calha também. Parece até preconceito, né?! Mas foi tanta gente. No começo achei que era brincadeira do Genesio. Ele é brincalhão, veio buscar jornal velho para embrulhar os potes de pimenta que o gringo vai levar para Austrália e eu achei que ele tinha de sacanagem levado a bolsa. Imagina! Quando fui ver era o ladrão. Chegou de bicicleta, entrou pelo calipal e encostou a bicicleta no cantInho do muro, bem ali onde seu tio colocou a bandeira do São Paulo. Gigante! Comprou uma maior que a do Brasil, acho que de desaforo. Ele pulou o muro e entrou na sala e pegou a bolsa que devia estar na cadeira da mesa de jantar. Bem que você fala que eu tô ficando surda, não ouvi nada. Acho que tava com a vó na sala de TV assistindo o novo Vídeo Show; até que é legal, viu?! Tem uns games com artistas de segunda categoria que são divertidos. Eu sei que não ouvi nada mesmo. Na câmera da pra ver ele correndo e fugindo de bicicleta. Fazer o que, né?! Deve ser ladrão pé de chinelo, parecia meio drogado, deu um tropicão quando fugia. Ou bêbado, sei lá. Mas também coitado, não teve muita sorte, se muito eu tinha cinquenta reais na carteira. Cê sabe que eu não ando com muito dinheiro. Nem sei se tinha tudo isso, outro dia furou o pneu do carro e eu tive que pagar o borracheiro com cartão de débito. Eu não tinha dez reais, ainda bem que ele tinha maquininha. Hoje em dia qualquer um pode pedir maquininha no banco. Você tem no consultório? ... E os meninos, tão bem? Que bom! Não quero tomar seu tempo, era só para contar do assalto. Manda um beijo para todos e depois a gente conversa com calma. Beijo