sábado, 5 de dezembro de 2015

Uma reflexão sobre o trabalho

Dia desses tive uma discussão saborosa com as alunas do curso de aprimoramento. Sentimos, mutuamente, o desafio de compreender as nuances  dos aromas trazidos pela situação clínica. Consideramos nossos pontos de vista e, a partir daí, retomamos os textos e a construção do caso clínico. Trabalhamos.
A discussão tratava da perda do objeto: pensávamos se o impacto psíquico da ausência do objeto seria sentido de forma diferente, sendo permanente ou transitória. O abandono paterno teria semelhanças com a morte de um irmão? A demissão de um emprego seria vivida como a notícia de uma cirurgia mutiladora? O fim de um relacionamento ou a morte de um animal de estimação? A perda da confiança em um ente querido ou o roubo de um celular com todas as fotos e músicas escolhidas nos últimos anos? Enfim, falávamos sobre o valor de cada objeto no nosso ranking interno. Estudamos narcisismo, relações objetais e teoria do trauma. E seguimos assim.
No dia seguinte recebi uma pessoa para entrevista. Buscava a validação do psicólogo para realização de uma cirurgia bariátrica. Em geral, ofereço a palavra questionando a motivação para tal encontro. Então, estabeleço uma linha do tempo e anoto as variações de peso relacionadas aos acontecimentos. Contou, em pormenores, as alterações sofridas. Da adolescência a vida adulta ganhou peso paulatinamente. Ganhou mais quando começou a namorar, entrou na faculdade, arrumou o primeiro emprego, casou, morou fora do país, engravidou. Ganhou junto às conquistas. Perdeu apenas uma vez: quando recebeu a suspeita diagnóstica de uma doença grave.
Em casa, saída do banho, observou uma protuberância nas costas. Como vinha sentido dores , atribuiu a má postura, ao sobrepeso e ao sedentarismo. Passado uns dias, sem que o sintoma cessasse, procurou um médico no posto de saúde. Foi examinada e encaminhada para um especialista. Questionou o médico em relação ao diagnóstico: cauteloso, insistiu que esperasse a consulta com o colega. Mas demoraria, não teria agenda tão cedo, a ansiedade seria pior. Bom, diante da insistência e a ressalva de ser um clínico, dividiu as possibilidades com a paciente.  
Por razões, que talvez ela própria desconheça, optou pela pior. O acesso à informação desenhou o cenário mais tenebroso: doença grave, em lugar delicado, correndo o irisco de perder a mobilidade, talvez uma paraplegia ou a morte. E o futuro? O casamento? O trabalho? Os filhos ainda não tidos?
Todos objetos, reais ou imaginários, ameaçados por uma possibilidade. Perdeu  apetite, sono, disposição. Perdeu interesse pelos objetos valiosos: o trabalho, o namorado, os amigos, a família, o corpo. Gastou o resto de energia para cumprir as obrigações sem nenhuma afetação.
A morosidade do sistema de saúde manteve a incógnita por meses. Primeiro a consulta com o especialista, depois o exame demorado, mais um tempo para o retorno. Sua libido minava pela 5ª vértebra. Seus sintomas se acentuaram. Tinha dores, fisgadas, dormências. Tinha medo.  Na tentativa de estancar o vazamento, receitaram um anti-depressivo, um indutor do sono e recomendaram tratamento psicológico (com espera de 5 meses).
Quando enfim a notícia foi alentadora, estava magra, deprimida e medicada. A confirmação da benignidade e o descarte de uma intervenção cirúrgica operaram efeitos no seu humor. Aos poucos, retomou o interesse e o peso, tanto que se tornou candidata a cirurgia bariátrica e hoje, não encontra forças para emagrecer sem ajuda.
Pasmem, passado outros dias, uma moça, aflita com as questões do amor, desmarca a consulta: teria médico no mesmo dia. Conseguiu um encaixe de última hora e gostaria de resolver logo "esse" problema.
"Esse problema" foi tema da sessão seguinte: percebeu uma bolinha nas costas enquanto fazia massagem, agendou uma consulta para o dia seguinte, seguido de exames diagnóstico e retorno com o especialista. Era uma "gordurinha num lugar inadequado", nada preocupante.
Aparentemente o diagnóstico final era o mesmo. Os efeitos em cada sujeito, completamente diferentes.
A permanência da palavra duvidosa causou mais danos na primeira.
A ameaça, como um mar revolto, arrastou seus objetos para longe, mas os devolveu após o fim da tempestade.
" Ainda bem que não era nada mais sério, não sei se suportaria."
De fato não sabemos.
Mas sabemos pela clínica, sempre soberana, o quanto somos capazes de nos reinventar diante da dor, na mesma intensidade que somos capazes de sucumbir.
Esse é o nosso trabalho.
Abraço
Patricia Bader

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