domingo, 13 de dezembro de 2015

De tudo

Diz minha avó que a angústia é o afeto que não engana. Não, minha avó não leu Lacan. Estudou até o fim do normal e foi ajudar no armazém da família; um comércio de secos e molhados que vendia ovos coloridos. Bastava fervê-los com anilina verde, azul ou vermelha e esperar pela freguesia. Era ovo com rabo de galo.
Depois o pai adoentou, ela casou, engravidou e continuou atrás do balcão, do fogão e do tanque. Não se queixava (muito) da vida. Seguiu até seis meses, exatamente na dobra do tapete do corredor; depois caiu, quebrou a perna e teve que trocar de osso aos 90!
A pouca anestesia para não sentir dor, pôs pra dormir um dos dois neurônios que ainda funcionavam. Acordou com um só tentando se ligar as memórias. Bala sem alvo, ricocheteava e atormentava o próprio cérebro.
Por falta do que fazer e um punhado de desespero, medicamos seu comportamento. O efeito é a presença silenciosa: sobra 40 kilos de pele alva e dois olhos esverdeados gotejantes. Então tira o remédio! Pelo menos reage! Voltou a mastigar e a proferir a frase: a angústia não engana.
Não há o que se ofereça para fazer sentido. Fica ali, um punhado de libido buscando alento na presença de algum objeto.
Pode ser medo de gente, de trovão, assombração. De barulho, do frio ou do calor. Do cachorro, da barata, do vizinho. Pode até ser medo da morte. Mas não é.
Acho que é medo de existir sem poder.

Me ajuda! Me ajuda! Tô com medo, com medo!
Medo do que, vô?
Não sei.
Não precisa ficar com medo, a gente tá aqui!
Me ajuda! Me ajuda! Tô com medo!
Do que vô?
Não sei.
Fica calma. A gente tá aqui, a senhora tá protegida.
Me ajuda! Tô com medo?
Do que? Vai passar. Vamos rezar um pouco. Depois ficar quietinha que o medo passa.
Me ajuda! Medo!
Do que vó?
De tudo.

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