quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Café e primatas


Uma das formas de medir o desenvolvimento da espécie humana é verificar o tipo de líquido que tomamos no café da manhã. Os bebês refastelam-se no leite materno, as crianças encaram por obrigação um chocolate morno, os adolescentes por preguiça mantém a bebida em outra temperatura, chocolate frio; os jovens, por questões ilícitas alternam entre suco de laranja, Gatorade e coca zero. Fim de faculdade, primeiro emprego, encaramos um bom café com leite e com o passar do tempo, não raro, o desjejum resume-se a uma xícara grande de café preto até que, algum geriatra, indique apenas chá de capim cidreira.
Café também serve de desculpas pra tudo: pausa para o trabalho, discussão de caso, fofocas, DR; adiamos o fim quando pedimos mais um. 
Um dia desses, entre um cafezinho e outro, acompanhei uma discussão sobre senso de justiça e a capacidade de sermos incorruptíveis. Como não tratava-se de um júri, pude refutar a argüição da defesa que afirmava categoricamente há existência de pessoas imunes as tentações mundanas. 
Eu mesma não conheço, mas a figura em questão jurou que há. Pensei: como pode, se até para nos constituirmos psiquicamente somos arrancados da integridade fetal para nos corrompermos em outro? Enfim ...
E como um bate papo feminino nunca acaba lembrei de uma outra conversa entre cafés a respeito das relações entre pais e filhos e a noção de atavismo. 
Um bando de cientistas reuniu um bando de macacos e propôs - aos outros cientistas - a seguinte experiência: 5 símios dentro de uma jaula, com uma escada ao centro que dava acesso há um cacho suculento de bananas; 4 deles permaneceriam no chão enquanto 1 subiria a escada em busca do alimento (famintos só se f*!). Quando o escalado chegava ao topo o pesquisador jogava água fria nos debaixo e ao descer esse pobre era espancado pelos demais. E assim foi, um a um subia, comia e ao descer, porrada. Depois de um tempo ninguém mais se atrevia a olhar para a escada, aliás, ótimo método  de dieta ... Decidiram então, substituir um a um os 5 veteranos por novatos. Quando o primeiro colocou uma patinha no degrau, mesmo sem conquistar a banana e nem mesmo a água cair, foi alvo do MMA de primatas.  O mesmo aconteceu com os seguintes: pezinho no degrau = fúria titânica da galera. Até que, mesmo quem nunca vivera a primeira experiência de repressão socava os demais por imitação. Pensaram os pesquisadores: se perguntássemos a eles por quê da violência diriam : não sabemos, mas sempre foi assim, portanto deve ser assim!
Assim é: esquecemos boa parte dos porquês das coisas! Alguns nunca soubemos e tão pouco é nos dado a possibilidade de questionar. Não falo exatamente de questões coletivas, penso naquelas mais singulares, que contam da nossa história, do projeto de vida que ganhamos na fila da maternidade. 
Não sei ao certo a razão, talvez um tanto de comodismo, conformismo, até desesperança. As crianças nem tanto, não cansam de perguntar, perguntam até que nem a mãe, nem o pai, nem o Google saibam responder. São especialistas em duvidar das regras domésticas: banho, lição de casa, lugares pré determinados, horários! Mas nem sempre os temas são tão primatas, ops, primários. Hoje, por exemplo, travamos um longa discussão sobre inadequação e proibição. Fantástica! Se por um lado isso esgota nossas forças, por outro temos que garantir a persistência desse poderio de questionamento. 
Penso que não somos incorruptíveis, ao contrário, com o tempo temos a chance de enxergar com um pouco mais de clareza o controle que as tentações mundanas, relacionais e por que não as bananas e os cafés exercem sobre nós! 
Bom, é isso! 
Vamos tomar um cafezinho? 




Sexo, gênero e pictogramas

 Sexo, gênero e pictogramas

Em poucas horas já avancei algumas páginas ( quase cem ) do tão comentado livro, atravessei com louvor o primeiro encontro amoroso - afinal uma mãe de família deve manter a linha, fazer o jantar, colocar as crianças para dormir e cama! 
Como passei o dia ocupando os intervalos com uns pedaços de leitura, posso me considerar -só por hoje - uma portadora de transtorno hipersexual, pensei, li, falei e presenciei cenas que me fizeram pensar em sexo por mais de 5h - neste dia! Como consolo para meu quadro transitório patológico encontrei na descrição do manual de psiquiatria um item de rodapé que indica que os sintomas não devem estar associados aos efeitos diretos de uma substância psicoativa; sem especificações e com o direito que meu dever me confere cataloguei o livro como tal. Bom, mas deixemos as justificativas para lá! 
Retornando do trabalho, costumo atravessar a democrática avenida do Jockey. Ela condensa a pacificadora convivência das casas e escritórios classe AAA com a diversidade de profissionais do sexo. Acho que respeitam o horário comercial, ou ao menos o turno de 8 horas. As 6 da manhã não estão, tão pouco as 8 da noite. No começo a oferta conta com senhoras mal acabadas, mulheres plus size e transeuntes indecisas. Ao atravessar o túnel que desemboca próximo ao fim de uma auto-estrada, encontram-se as variações de trans que meus olhos conseguem identificar e as roupas mínimas conseguem esconder. Por ironia, a avenida nos leva a melhor universidade do país e lá, na entrada, estão as mulheres motorizadas, catálogos tridimensionais de borracharias. 
E estando na universidade, ainda que de passagem, lembro de um teco de estória - todas são fantasiosas! -  que escutei dia desses. Um garoto, com pouco mais de 18 anos, que namora uma almofada. Ele é bonito, tem um resto de infância eterna. Vivem juntos por todos os lados, incluindo os cantos inapropriados. Ela é grande, de contornos arredondados e formato retangular. Não possui medidas de modelo, ao invés dos 90/60/90 esperados, conta com 1.20/40 e 30 de profundidade. Mantêm relação estável e fiel. O tempo não interferiu nem mesmo na forma de dormir, estão sempre abraçadinhos. Ele se comporta como um cavalheiro das cavernas, as vezes é super amoroso, carrega no colo, outras, arrasta pelas beiradas sem se importar com os arranhões. Tem um quê de Sr. Grey! Tudo seria muito estranho, não fosse o fato dele ser autista. E como muitos, apresenta uma baita dificuldade em compreender o sentido oculto das coisas. Pictogramas, nem pensar! Do que se trata? Fiquei imaginando esse garoto lendo o livro ou passeando pela tal avenida; conseguiria entender como alguém goza com uma pitada de autoridade e suas consequências? E em relação aos mistos de gêneros expostos no meio da rua, o que diria? E caso fosse exposto a essa placa de banheiro aí encima, como resolveria seu problema fisiológico? 
Pena! Não pode usufruir da possibilidade de virar personagem hollywoodiano por instantes! Nem tão pouco transitar pelas infinitas modalidades de satisfação!  Ele, diferente da maioria, tem certeza, sabe quem encarna seu objeto de prazer. Outro dia perguntei a ele porque namorava a almofada e recebi: " por que ela é menina doutora, ela termina com A! ".


quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Doçura de meninos


Tenho amigos, homens, de todas as idades. O mais novo está na casa dos seis e o mais velho dos oitenta. Alguns são apenas amigos, outros acumulam a função de parente, mas o que têm em comum é certo encantamento pela docilidade feminina.
Embora eu esteja um naco acima do peso, os doces não compõem meu pecado capital maior. Troco facilmente um bom-bocado por um caldinho de feijão ou um refresco de jasmim por uma cervejinha. 
Não gosto muito dos romances adocicados, nem de novela das seis. Prefiro cores vibrantes aos tons pastéis. Não falo tão baixo, por vezes apelo para um palavrão e, admite mos, doce não é um adjetivo que caiba no meu currículo.

Fato é que tenho escutado com certa freqüência um lamento saudosista, dos humanos do gênero masculino, a respeito da doçura.
Se você apertar um pouco, alguns são capazes de desenvolver o tema. Traduzem como delicadeza, meiguice, um tom de suavidade, certa brandura. Uma volta a mais na morsa confessam que o que falta é dependência. Nos tempos de hoje dificilmente você encontrará um moço barbado alardeando isso com todas as letras, não pega bem nem na novela. Mas falam; de outro jeito. Falam da bravura, da brutalidade, da praticidade, da rapidez com que resolvem tudo sozinhas. Já escutei queixas sobre o ritmo, sobre os hábitos, sobre as escolhas. Há quem elogie as performáticas, mas em geral não acreditam muito, portanto reclamam também dos modos de satisfação. Ah! Esses meninos! São bons admiradores, se encantam, mas falta, sempre falta!

Até aí, tudo bem, o bom velhinho gastou, há mais de cem anos, duas dezenas de livros falando sobre isso. Nascemos, e se tudo der certo o que nos resta é aprender a lidar com a falta. Penso que a regra fundamental para o caldo não desandar é encontrar pontos de apoio, subjetivos, para encarar uma relação.

Explico: parece que alguns se sentem fragilizados diante de tanta certeza. Como se dissessem: “Ela sabe com tanta clareza e segurança o que quer, que eu sou apenas mais um!”. Aponta para uma fragilidade em relação as suas qualidades enquanto objeto de amor.

Não pretendo generalizar, mas se o povo sente saudades só pode ser de algo já vivido. Eu, por exemplo, até admiro as roupas da Grécia antiga, mais fresquinhas e confortáveis que as de hoje, mas não posso sentir saudades de algo que eu não vivi! Talvez, esses bacuris foram amados além da conta, ou melhor, além do tempo. Tiveram figuras maternas (ou quem quer que tenha exercido a função) que se ocuparam demais dos seus bebês, antecipando a resposta ao pedido. Quando tenho oportunidade de conversar com casais grávidos digo que respeitem o tempo de apelo do bebê. Desde cedo ele tem que se fazer ouvir para que possa experimentar a recompensa da conquista. Peço, em nome dos bebês, que esperem um sinal, um choro, um desconforto, antes de qualquer mamadeira ou troca de fraldas.

Certamente, não estive presente nas primeiras vivências dos meus amigos homens, até porque alguns são muito mais velhos do que eu, mas escuto no discurso, nas entrelinhas, o desejo de reviver um tempo passado, em que alguém esteve lá com exclusividade.     
Queridos: confiança não é crime. Nem a sua nem a dos outros. Tenho um amigo que diz que a regra do bom casamento é: tamô junto, mas num tâmo misturado. Acho o máximo e sei que nem sempre é tão simples de aplicar. Ser o amor do outro é ser uma das coisas importantes, não a única. Se a moça, autoconfiante e independente está com você, certamente tem haver com você. Brinco com meu marido que a única razão de eu estar com ele é ele, porque de resto eu me viro bem.

Quer declaração mais doce do que essa?

 

      

 

  

 

 

 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Superego


Já que estamos fadados as relações existentes entre as instâncias psíquicas, que seja divertido!

Uma das formas de driblar a ação impetuosa do meu amigo Superego é travesti-lo. Trata-se de um carinha insistente, chega sem ser convidado, vive dando palpite no trabalho dos outros, reclama das pessoas, do mundo, do movimento cósmico; vê defeito em tudo. Você pode ter feito a melhor faxina da sua vida, limpado cada canto da casa, tirado com palito de dente aquela sujeirinha do liquidificador, pois vem o moço e encontra um mosquito morto no lustre que só ele vê. Dependendo de como está o humor do sujeito, ele  lança um olhar de canto ... acompanhado de um resto de suspiro ..., mas se o bicho tá atacado ... segura! Pega a escada na lavanderia, desmonta o lustre, te puxa pelos cabelos para mostrar a mosca incinerada e aproveita, faz umas criticas sobre a instalação, olha encima dos armários e desmonta a geladeira. Um horror!

Em geral, percebo que há certa implicância com outro habitante das mesmas terras: o Id. Bem da verdade é um sujeitinho maroto como ele só. Não tem parada, de tanto correr vive com o joelho esfolado. Quando Eu tô chegando com a farinha, ele já tá servindo o canapé. Tem mania de suspiro, mas desconfio que seja de cansaço. Só pensa bobagem e parece que quanto mais estuda pior fica. É o maior contador de estórias do mundo. Inventa tanta lorota que quando  vê, você está sentado na platéia aplaudindo. Se resolve brindar com os amigos ... fica há um passo da inconveniência. Por conta disso, foi banido de algumas rodas e, brejeiro que é, descolou um coitado para representá-lo nas situações sociais: o Ego.

Mal sabia ele que o Ego, metido a prudente e um baita indeciso, encontrou dia desses o Superego na missa. Ficou mais tempo do que deveria escutando aquelas parolices e saiu da sacristia com a cabeça fervendo. Era tudo o que o super queria, plantar a discórdia e atazanar a vidinha ordinária do Sr Prudente.

Até manter relação com esses dois, era um cara pacato, cheio de funções, elaborava uma estratégias de defesa,  controlava o tempo, os estímulos do mundo, arquivava umas memórias por ordem de chegada, o perfeito funcionário padrão da repartição. Agora vive angustiado, fez essa bendita compra casada – vendeu a alma pro diabo no mesmo dia que começou a acreditar em deus. Passa o dia negociando: se eu for a festa perco a hora, se não for a festa perco a chance; se eu comer o brigadeiro fico gordo, se eu não comer fico triste; se eu ligar ele vai pensar que eu quero alguma coisa, se eu não ligar vai pensar que eu não quero nada. Um chato de galocha! Pensa tanto que as vezes fica doente de tanto pensar.

Como Eu já tenho um naco de intimidade com essa gente falei pro Ego: deixa disso, já que seu esporte predileto é pensar, pensa que esse tal de Superego é uma super gorda, frustrada, com bigode, dores no joelho, metida a sabichona, flatulenta, que na falta do que fazer espiona a vida dos outros. Manda ela ir trabalhar, fazer serviço voluntário, tomar conta de arquivo morto empoeirado! E digo mais, essa Idizinha é malandra, tenho certeza que é a irmã espevitada da supergorda. Fala pra descer do salto quinze que ninguém corre maratona de bico fino.

São duas Mariaslôcas descendentes da mesma linhagem. Outro dia Eu tava assistindo o Fantástico e passaram uma reportagem sobre gêmeas siamesas que foram separadas no nascimento. Uma foi adotada por uma família inglesa, anglo-saxã, parecia gorda na foto e a outra, menorzinha, bronzeada, acho que morava em Miami, foi vista rodando de patins vestindo um biquíni diminuto! Dá uma olhada no Youtube pra ver se você reconhece e enquanto isso ... vamos tomar um chopinho?

    

 

 

 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Regime democrático doméstico



Regime democrático doméstico

Artigo 1º - Fica acordado entre os moradores do lar supracitado que o papai e a mamãe levarão os filhotes para a escola, alternadamente, em dias previamente combinados, contemplando a agenda de trabalho e rodízio de carros de cada um.
Artigo 2º - As partes ( as quatro partes) concordam que compete ao adulto responsável pelo dia gerenciar e executar as tarefas previstas para o horário, tais como: auxiliar na escolha da roupa (para evitar constrangimentos entre os coleguinhas), verificar a escovação da dentadura e a arrumação das madeixas, preparar o lanche e disponibilizar, ao menos, um copo de leite para cada menor.

Artigo 3º - Lembrando que a definição dos artigos acima só ocorreu porque a mamãe trabalha pra car#@$%amba e às seis da manhã ela está a caminho do consultório e não do massagista.

Sem mais, lavro o acordo afirmado.

Assinado: Ohmãããeee
...

A realidade: segunda-feira, dia do papai.

Ohmãããeee, cadê meu tênis?
Ohmãããeee, me dá outra meia?
Ohmãããeee, e o meu Nescau?
Ohmãããeee, faz meu lanche?
Ohmãããeee, aonde você guardou o livro do Saci?
Ohmãããee, penteia meu cabelo?
Ohmãããee, hoje não é o papai que leva a gente pra escola? ... Mas cadê ele? Iche, acho que esqueceu!

Ohmãããee, leva a gente pra escola?
...

Estou cada vez mais decepcionada com esse eleitorado, vota, não participa e tão pouco sabe cobrar.

#ohmãããeee partiu e volta sabe Deus quando!

 

 

 

 

 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Meu avô morreu

Meu avô morreu. Ele tinha 75 anos. Seu coração parou subitamente e com ele todos os outros sistemas também pararam, incluindo seu cérebro. Ele morreu num sábado comum. Como de costume acordou as sete da manhã, ensaiou um alongamento, fez a barba, guardou o pijama na primeira gaveta da cômoda e foi para cozinha tomar seu café e os três comprimidos matinais para a diabetes, colesterol e hipertensão. Por recomendação médica e gosto pelas rápidas conversas deu início a sua caminhada matinal. Passada uma hora retornou para casa com o jornal. Na mesa da cozinha iniciou a leitura do caderno de esportes seguido do editorial e das notícias da cidade enquanto tomava um refresco de limão. Minha avó adiantava o almoço pensando nos itens que compraria na feira. As dez e quinze, munidos do carrinho, da sacola e da pequena carteira com o dinheiro, a chave de casa e um lenço de pano, partiram. O percurso da rua, repleta de barracas, durava cerca de uma hora, a tempo de chegarem na de pastel para dividirem um especial - onde o ovo cozido sempre ficava com o meu avô.
De volta a casa auxiliaram-se mutuamente na organização da fruteira e da gaveta de legumes. Repuseram o baleiro e o pote de biscoito que ficava guardado no esconderijo secreto das netas de trinta anos.
A espera do almoço assistiu ao programa de esportes até o chamado da esposa: " Vem Naldo, tá na mesa! "
Morávamos no mesmo prédio. Meu filho tinha seis meses e eu, uma preguiça típica de mãe de bebê. O segundo andar era parada obrigatória, naquela sábado subimos por volta da hora do almoço para falar um olá e quem sabe buscar umas casquinhas de pastel. Entre uma beliscada e outra liquidamos a refeição por ali, chupando uma laranja descascada com destreza pela minha avó. Cada um se encarregou de tirar seu prato e fomos para a sala esperar a soneca da tarde chegar. O cochilo aconteceu no tapete felpudo esperando pela manta que seria posta - "só nas pernas" - antes do primeiro ressonar. Sesta tirada subi para o meu apartamento e meu avô desceu para o banho de sol do bisneto. Todo orgulhoso deu a segunda caminhada do dia empurrando o carrinho pelas ruas do bairro. Na volta passou pelo armazém para comprar quatro pãezinhos; dois para o lanche da noite e outros dois para o café da manhã. Quando voltou, acompanhou o banho como um perfeito auxiliar e me beijou carinhosamente na testa – “Tchau Pazoca” - enquanto eu amamentava. Naquela noite iríamos - eu, meu marido e o bebê – a uma festa junina. Por volta das dezoito horas, prontos, decidimos por outra breve passada na casa dos avôs, queríamos apresentar o pequeno caipira. Entre graças e gracejos nos despedimos.
Meu avô tinha medo da morte. Ele dizia que não queria morrer num hospital longe da família. Na verdade meu avô tinha medo da solidão.
A festa era lonnnnge, há mais de uma hora da nossa casa. Um pouco antes de chegarmos ao destino, recebo uma ligação agoniada da minha irmã pedindo que voltássemos, achava que o meu avô estava morto.
O trânsito da cidade foi generoso conosco, chegamos ao prédio junto com a equipe de socorro, a tempo de avisar o doutor que meu avô tinha medo da solidão. Ele não disse nada, mas quando entramos no apartamento encontramos um senhor deitado no sofá com as mãos cruzadas sobre o peito. Sem exageros, o médico nomeou o que já sabíamos, o meu avô estava morto.
Contida as lágrimas impulsivas, sentamos a mesa aguardando a chegada do carro funerário. Alguém providenciou um café, os vizinhos mais chegados e os mais curiosos foram entrando em meio aos sinais da cruz.
Minha avó, suspirando, contou o que houve. Depois que voltou do meu apartamento, decidiu tomar seu banho. Escolheu um pijama novo. Avisou que estava sem fome, talvez um pouco indisposto e ficaria no sofá, deitado. Ele nunca havia deitado no sofá. Minutos depois da nossa partida chamou minha avó e pediu que fizesse um chá de capim-cidreira. Do meio do caminho voltou a cozinha e com um leve beijo em seus lábios disse que a amava. Arrumou a almofada, deitou confortavelmente no sofá, cruzou as mãos sobre o peito e morreu.
Penso que morreu rezando, como seu pai. Meu bisavô, devoto da fé, morreu aos noventa e quatro anos, durante uma missa, em genuflexão após receber a hóstia.
Dizem os psicanalistas que cada filho esta mais filiado a um lado da linhagem familiar. Dizem os que acreditam que nosso destino está traçado. Não sei se podemos escolher.
Dizem tanta coisa ...

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Carnaval

Ainda aquém da meia idade, mas com humor de anciã. Carnaval é bom para descansar, foliar com os amigos em casa, risadas, uma cervejinha, kids on the sofá and that is it.
Histórias frescas recém contadas. O dia em que desfilei na avenida: by amiga.
"Era carnaval, a fantasia pesava na cabeça mais do que problema no trabalho e conta estourada. Uma amiga mico, empolgada, descolou um exemplar de índio para representar o bloco da FUNAI na Vai-Vai para a pqp*. O esquenta começou as seis da tarde, embora a escola saísse as seis da manhã. Cerca de duas horas depois e a centésima vez que o samba enredo irradiava aflição no cérebro, decidi fazer xixi. KKKKK. A latrina mais próxima ficava há uma avenida, cinco escolas de sambas e todos os carros alegóricos.
A bota - índio usa bota?!? - atendia perfeitamente as necessidades fisiológicas e talvez aliviaria os dois números a menos que ganhei do eunuco que cedeu os sapatos. Dedinhos em estado de gangrena, fui arrastada pelos 530 metros do Anhembi, com os indicadores em riste, mascando chiclete para fingir que mexia a boca e chorando. Se alguém notou - há essa hora até minha mãe estava dormindo - minha cara era de desespero. De olhos fechados e um resto de dignidade atravessei a sucursal do inferno - e se o inferno for assim prefiro reserva em outro lugar - e lembrei que meu carro estava a dezoito quilômetros do sambódromo, lá pros lados do Tucuruvi. Morte. Jurei, em nome das próximas vinte gerações que carnaval nem pela televisão. "
Abrimos outra cerveja, desligamos a tela plana e, em tom conciliatório, contamos boas outras histórias de carnaval.
Meu olá para o povo do ziriguidum e bom feriado!

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Il culo

Compreendi o conceito de tempo lógico no final do primeiro ano da faculdade. O ano era noventa e dois. A faculdade vivera uma de suas maiores greves, lutando pela autonomia alcançada em relação as intervenções da fundação mantenedora. Os serviços acadêmicos demoraram a se encerrar, mas assim que o sino bateu combinamos eu e uma amiga (das melhores até hoje) uma viagem para Bahia. O destino específico seria Porto Seguro/Arraial D'Ajuda, bandas recém re-descobertas pelos jovens. Na época já tinha idade e hábitos que conseguia manter sozinha, ou quase; contava mensalmente com a ajuda financeira dos meus genitores.
A negociação não foi difícil. Eu era uma segundo anista, recém proprietária de uma carteira de habilitação, trabalhava na loja da família e contava com uma recente separação dos meus pais.
Já conhecia outros lugares, próximos e distantes. O incentivo as viagens sempre foi prática familiar. Fui desacompanhada para a Disney, a todos acampamentos de férias do estado, ao Sul beber cerveja, até as terras do Fidel já tinha me aventurado, mas todas, sem exceção, algum adulto responsável assinava um contrato com outro suposto responsável durante minha ausência. Dessa vez era diferente! Eu iria só!
"Como chegarão lá? Mas ficarão onde? Quanto tempo?" - eram as inquietações dos meus pais. Não sabíamos ao certo. Uma semana, talvez dez dias. Calculamos uma quantia necessária para esse tempo - precisaríamos de hospedagem, comida, uma ou duas cervejas por dia e sol, muito sol - e combinamos de nos encontrar na rodoviária da cidade. Peguei o metrô e no horário previsto estava lá, sentada na mochila a espera da amiga. Intencionalmente abri mão do relógio de pulso que há anos me acompanhava. Ela fez o mesmo e rimos um riso cúmplice quando nos demos conta da má intenção. Que delícia!
As passagens já compradas, prometiam nos deixar ao destino vinte e quatro horas após a partida. Músicas gravadas, o maço de Marlboro no bolso da jaqueta jeans, as infinitas conversas e expectativas, nos fariam companhia durante o percurso. E assim foi. Viajamos apoiadas uma a outra, enquanto voltávamos a fita com o auxílio da tampa da caneta Bic.
I want to feel, sunlight on my face!
Embora fôssemos aspirantes a psicanalistas - sem ter completado nem a leitura das Cinco lições - mantínhamos rituais preponderantemente visuais, ou seja: nosso interesse era por gente bonita, muito bonita, tonificada e gratinadas pelo astro rei. Numa das paradas conhecemos uma moça um tanto mais velha para nossos dezoito - na casa dos trinta - que estava a caminho do mesmo destino. Arrendaria uma barraca na praia durante a temporada e ficaria numa pequena pousada recém inaugurada por módicos três reais, um terço do orçamento inicial. Bingo! Se aquilo não fosse um golpe, nossa estadia tinha triplicado de tamanho. E não era!
A pousada era pequena, com banheiro privativo, oferecia café da manhã e estava a distância exata que nossas pernas suportavam do centro da muvuca.
Como chegamos cedo - no mesmo horário da partida apenas um dia depois - fomos explorar as terras descobertas pelos patrícios. Entre um baiano e outro encontramos uma locadora local de veículos. O modelo mais sofisticado era um bugue com capota e o menos ... bom, alugamos. Era verde abacate, sem teto (o gerente garantiu que não chovia em janeiro), as portas não abriam, o banco do motorista estava travado por um bloco de cimento, a buzina funcionava conforme a temperatura subia, mas era nosso e tinha um som! Nos não tínhamos tanto dinheiro, mas eu possuía uma lábia treinada por anos atrás do balcão. Fechamos o contrato por um mês, tempo que negociamos a pousada. Sem a existência de celular, a ligação a cobrar comunicou que o projeto fora estendido por trinta dias. Pânico na região sudeste!
Fizemos um pacto: houvesse o que for ficaríamos sempre juntas! Selamos nosso trato com uma cerveja e duas tatuagens (temporárias).
Ah! A Bahia! Terra onde a música brota do chão. O dia começava normalmente no último instante do serviço de café da manhã, ou acabava no primeiro. Com o nosso turbo jipe de guerra desbravamos cada pedaço de Santa Cruz de Cabrália a Trancoso, conhecemos locais, internacionais e temporários. Fomos a todas as festas, de todas as bandas e estilos. Tostamos as custas de muito óleo de urucum, curamos ressacas as custas de muito caldinho de sururu. Nos apaixonamos, acho que umas duas ou dez vezes.
On a dark desert highway, cool wind in my hair!
Em uma delas conhecemos uns ragazzi italianos molto bello! Como éramos modernas e motorizadas combinamos de buscá-los no hotel para irmos a festa daquela noite. Vestido descolado, rasteirinha, bochechas rosadas, cabelos tingidos de sol, trilha sonora emoldurando nossos sonhos. O nosso carro era do tamanho da nossa disposição. Além de nós e dos rapazes, levamos duas recém melhores amigas. Aquela altura a noite tinha entrado para o top five da minha vida.
O caminho era longo, talvez pela quantidade de buracos existentes, o GPS era composto pela lua e a música que nos guiava. Sem função. Nos perdemos a beça até encontrarmos o local secreto da noite.
A certa altura os meninos começaram a gritar, num riso nervoso, algo parecido com "Culo!Culo!", que para o nosso italiano falsificado era um jeito errado de falar muro.
Não demos muita atenção para os apelos. Embora o auto não tivesse retrovisor a co-pilota, com a visão impedida pelo contigente de pessoas na garupa, garantira que não havia muro nenhum. "Esses italianos estão bêbados!", acho que foi a última frase que ouvimos antes do relinchar estridente de um pequeno burrico esmagado entre o bugue e uma árvore.
O animal sobreviveu, já nós... sorrimos faceiras, como poucos.

Vivemos o tempo medido pelos laços que dávamos naturalmente nos longos cabelos. Cada volta marcava nossa coragem juvenil. Não precisávamos de relógio. O tempo era lógico.



sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Invencibilidade

Assisti a entrevista do Lance Armstrong para Oprah Winfrey. Superada as impressões óbvias, me deparei com a limitação neurótica de buscar a motivação para todos os atos dos seres humanos. Apesar da boa condução da apresentadora - minha opinião, é claro - o insistente questionamento sobre as razões (Why?! Why?!) das mentiras do entrevistado, denunciou a resistência em aceitar uma lógica que perverte um combinado coletivo.
Me chamou a atenção a ausência de superlativos, seja para falar da gravidade do ocorrido, seja para falar dos seus efeitos emocionais. Ele se mostrou emocionado quando o assunto foi o filho mais velho e sua mãe. Sobre a relação com a mãe conta que aprendeu a não falar do passado e a não demonstrar fraqueza, sobre o filho, disse que por um instante decidiu assumir que as notícias veiculadas na mídia eram verdadeiras e pediu ao menino que parasse de defendê-lo publicamente, respondendo que seu pai sentia muito sobre tudo. A entrevistadora, surpresa, perguntou se o menino questionava as notícias. Respondeu que não, ele acreditava no pai.
Retoma, algumas vezes, o diagnóstico de câncer e não seqüencialmente a ilusão (ou desejo) da invencibilidade. Ao falar da primeira esposa, marca o que os diferencia: diz que ela acredita em honestidade e integridade.
Após agradecê-lo pela confiança depositada, encerra em forma de apoio com a frase da ex-mulher: a verdade o salvará. Pura ilusão neurótica!
Ele passou quase duas horas dizendo que nem mesmo a suspensão vitalícia imposta pela lei, operou mudanças em seu desejo e crença de invencibilidade. Como se a sentença de morte, de outrora, tivesse sido revogada ao vencer a doença. O resto potencializou a proximidade com a plenitude. Ele venceu, por sete vezes, uma prova coletiva, mundial, de velocidade e resistência. Os títulos foram anulados, mas não existe método que apague uma experiência. De fato ele venceu.
A cada pergunta sobre a conduta agressiva e desmoralizante em relação aos outros, justificava que estava no ataque, provocando. Como se não houvesse dúvida entre os verbos. Como se fosse uma verdade inquestionável. Como se a única forma de ataque fosse o desmentido.
Aponta para um traço recorrente nas discussões. Em geral o exercício da acusação é insuportável, por isso as ofensas são tão variadas. Dizer, como ele fez, que uma mulher é vagabunda, não revela uma única verdade. O que significa ser vagabunda? É preciso explicar. E ao explicar você justifica, pondera, atenua, coloca-se em dúvida perante o outro. Parece que durante muito tempo não houve explicações, a defesa era " eu não usei drogas", ponto. Geralmente isso é intolerável. Sustentar o silêncio é uma arte.
Você precisa crer, verdadeiramente. Pode ser em Deus - acho que ele usou uma ou duas vezes a expressão " deus"- pode ser no medo de ser descoberto na incoerência, pode ser na honestidade, na integridade ou na invencibilidade. E é essa crença que defini o que fazemos.
Quem crê, legitimamente, não precisa se defender, nem se justificar. Parece que a dúvida é um privilégio da neurose.
Com ar de deboche,fala que poderia contar que estava em terapia, que mudou e tal , mas seria mais uma mentira. "Esse cara - apontando para uma imagem antiga no vídeo - ainda existe." Diz que está em terapia e acredita que a regularidade seja necessária. Será?
Será que a terapia serviria como um articulador temporal? Como um chip de memória? Será que a crença é modificável? Será?
Quando terminei de assistir a entrevista, mudei de canal e escutei de uma escritora a frase: " Quando eu tive tempo eu descobri que meu tempo tinha acabado".
Pensei que o tempo do inconsciente, senhor dos nossos desejos demoníacos, não reconhece seu fim.
Acreditar nisso é uma mentira.