quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Da neurose

Enredados na tradição nos sentimos ancorados e reféns.
Seguir as crenças familiares orienta o caminho e limita a fronteira.
Naquela família os homens sempre guiaram, em geral, os carros.
As mulheres permaneciam no banco do passageiro.
Assumir a direção carregava a ameaça do abandono.
Esqueciam que o casamento não acontecia entre iguais.
Na outra família guiava quem tivesse carro ou vontade ou necessidade.
Suas crenças eram outras.
Os homens casavam com mulheres mais novas, capazes de cuidar, inclusive guiar, se preciso fosse.
Morriam mais cedo; criam por medo do abandono.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Pobre Valmir

Valmir é um cara pacato, de poucas palavras e duas expressões.
Uma serve para receber, a outra para despedir.
Quase invisível, garante sua importância na falta. Tudo resolve: urgências hidráulicas, problemas com o computador, recebimento de mercadorias; Valmir sabe fazer e quando não sabe, conhece quem faça. Às vezes, no socorro de um estômago faminto, cobre o horário de almoço dos colegas.
Foi o que aconteceu hoje.
O trabalho rotineiro consiste em cadastrar o visitante e encaminha-lo para o lugar devido.
O diálogo (breve) segue o texto: comprimento (bom dia, tarde ou noite), RG, qual conjunto.
Em geral, 30 segundos são suficientes para cumprir o roteiro.
Menos hoje.
A senhora não constava na lista dos pacientes do conjunto 112.
Incauto, perguntou se o dia era aquele mesmo.
Pra quê!?

Claro moço, disse a senhora, o doutor marcou de tirar os pontos hoje. Nem sei se precisava, já tá tão sequinho que era só puxar. Foi uma cirurgia rápida. Ele começou a passar mal depois do aniversário da bisneta. Da segunda, a primeira fez em outubro, dia 18, mesmo dia que minha falecida mãe. Eu disse pra não comer tanto, mas meu neto, pai da primeira, preparou aquele prato espanhol, sabe?! Que vai camarões deste tamanho. Comeu de repetir. À noite se queixou de estufamento, fiz um chá de boldo, bem forte, mas não adiantou. Vomitou até ficar verde. Não ele, o vomito. Fiquei preocupada e liguei pro meu filho, o avô da segunda. Velho pode desidratar, né?! Fomos pro hospital e o médico do pronto-socorro, muito atencioso, fez um exame e logo viu a pedra. Eu sabia, minha irmã já tirou a vesícula. No começo ficou enjoada, mas depois melhorou. Não pode muita fritura, mas é só fazer tudo no forninho. Logo veio o outro doutor e disse que era caso de cirurgia. Quase não deu tempo de buscar uma troca de pijama. Pedi pra minha neta passar em casa e pegar na primeira gaveta da cômoda. No dia seguinte cedinho  operou e, graças a Deus, deu tudo certo. Preciso lembrar de rezar uma novena pra Santo Expedito. Se você quiser o nome do médico eu passo, muito atencioso. Se  tiver convênio ele da recibo. Meu filho que cuida disso, mas eu sei que não precisa nem pagar. Ah! Você conhece o doutor?! Ah ... É mesmo! Aqui do prédio, já tinha até me esquecido. Mas eu tenho certeza que é hoje . Que dia é hoje mesmo mocinho? 26? Não é 27? Mesmo? Perai, deixa eu ver aqui , aqui, cadê o papel que eu anotei ... achei, dia 27 de janeiro as 13 e 15. Desculpa, acho que  confundi. Como é mesmo seu nome? Ah! Obrigada pela atenção Valmir, então nós vemos amanhã.

A fila chegava no 722 da Santo Amaro, todas as agendas do dia atrasaram, a multidão clamava por pressa, transeuntes especulavam sobre a promoção do mercado,  incêndio no prédio, talvez passeata.
Valmir, inábil no gesto de calar, pediu folga e emendou férias antecipadas.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Impasses 

Missoshiro é uma sopinha fácil de tomar, se a disponibilidade do cozinheiro for tofu em pedaços e não macarrão de arroz. Os fios finos, aumentam o barulho da sulgada (o moço da mesa ao lado me olhou estranho) e a chance de babar na blusa (ops!) branca. 

Em semana de trabalho puxado, sem filhos e marido, rodízio japonês é a melhor opção. A empregada, fofa, avisou que deixou a alface lavada e os legumes cozidos na geladeira, o frango era só passar na hora. Vomitei e decidi pelo merecimento: 8 horas dando aula e outras 3 atendendo merecem japonês. 

O segredo do rodízio é simples: negue uma a cada duas ofertas. Com sorte, rola até um rap com o garçon: rodízio, sim, completo, não, shimeji, sim, guiosa, não, temaki, sim, rolinho, não, sushi, sim, tempurá, não, sashimi, sim, yakisoba, não. Reze para o camarada intercalar fritura com comida crua, acerte o ritmo e torça para um descompasso: de repente ele troca um huramaki por um hot roll e aí, a culpa não foi sua. 

As crianças, exaustas das férias, foram despachadas pra casa da avó - santa! - para um ou dez dias. No campo das vantagens mora o silêncio, a casa arrumada e a não obrigatoriedade do jantar. No seu oposto, moram os fantasmas - esqueço como uma casa vazia faz tanto barulho, e:

O cachorro. 

A relutância (aquela senhora prudente que reside no meu lobo frontal) considerou tudo antes de arrumar um cachorro, menos acordar as 6 da manha aos latidos, pedindo um afago. Depois o sono não volta, o meu, porque o dele encarna antes do carinho chegar a barriga gorda. 

Também tem as cadeiras. Estavam meio surradas, cansadas das bandas pousadas em jantares intermináveis. Cederam seus fundilhos, mas não rasgaram. O cão fez o serviço do tapeceiro: roeu uma a uma e engasgou com a espuma. Peste! 

Mas sua preferência são as meias. Cavoca o tênis até desenterrar o embolado escondido pra próxima caminhada. E depois vem faceiro com o troféu na boca. Duke! Devolve a meia! Bronca frouxa que provoca a brincadeira. Foge com a meia pra longe e logo volta com a outra. 

Agora a curiosidade são os lugares de preferência para demarcar seu reinado. O xixi sapeca fica no canto da Nespresso e o cocô peralta no tapete da biblioteca. Parece intencional. 

Como parece intencional a escolha dos livros. Roeu minha capa dura da Vida dos Elfos e ignorou O filho de mil homens. Além de literatura de primeira linha, era do marido. Peste! 

A vida é assim: adotei, ofereci as melhores rações, dei banho morno com shampoo importado, faço carinho na pança e sou punida pelos dentinhos afiados. 

Punida e humilhada. A dona menina doutora veterinária, cheia de saber e ameaças implícitas, teve a ousadia de perguntar se eu queria pesá-lo. Apontou uma balança de carga e disse "pode subir, depois desconto o peso do cachorro". Fingi demência e apliquei a educação: "fique à vontade, você tem mais jeito". 

As crianças não querem voltar. O cachorro morre de saudade. Aliás, saudade acumulada resulta em urina. Basta permanecer por duas horas a sós para a nossa chegada ser comemorada com festa. O rabo sacoleja mais que sambista na Sapucaí. A última pessoa que ficou tão feliz por me ver foi minha mãe; no dia do meu nascimento. Que me lembre só. Doze horas em trabalho de parto provocaram euforia ao extremo e ... xixi. 

Pedi a conta. O moço, espantado pela exígua quantidade, perguntou se havia algum problema. Sim! O problema é a dieta! Acho que de sacanagem trouxe um chá, sem eu pedir. Paguei e parti. O dono da praça me chamou de dona e pediu um trocado. Neguei. Dona é sinônimo de tia e eu não sou tia(zinha).

Em casa, na busca por um grão de açúcar perdido na cozinha, encontro um bilhete: " Dona Patricia, já fui as seis. Dei comida e água pro Duke e pros peixe. O moço da privada já desentupiu. Falto cândida e sabão em pó. O frango tá temperado e a gelatina é magra. Até amanhã e fique cum Deus."   

Achei fofo e, embora janeiro não seja exatamente um bom mês para iniciar um regime (ainda que quem define seja o seu jeans), aceitei a gelatina com uma colher (de sopa) de leite condensado; apenas pra adoçar o noite.