sexta-feira, 5 de junho de 2015

Indicação

Perguntei ao professor - a esses e tantos outros - como se define uma crônica.
Nunca vi perguntinha difícil de ser respondida, enrolam mais que filósofo em mudança de época; citam os consagrados, lêem dezenas de exemplos em busca de categorias e sempre encerram com a máxima "busque seu estilo". 
Como psicanalista, fui treinada para não responder as inquietações dos pacientes; já as minhas desejo objetividade, na falta sigo a busca. 
Antônio e Gregorio, companhias atuais nos cafés matinais aos domingos e segundas, trataram indiretamente do tema. O menino Prata contribuiu dizendo que toda crônica é uma ficção, ainda que inspirada em fatos reais e o garoto com nome impronunciável definiu, de forma mais precisa, que a crônica é uma ilha de amor cercada de ódio por todos os lados. Gostei. 
Dia desses tropecei com uma figura em busca de um encaminhamento para terapia. O pedido de indicação para uma análise é um troço mais delicado de conduzir do que dica de neurocirurgião. Felizmente nunca me pediram o telefone de um neurocirurgião, mas já pensei sobre o tema. Avaliaria o número de sobreviventes, depois dos sequelados, o nível de tremor nas mãos do médico, sua capacidade de concentração, aplicaria testes psicométricos e de personalidade, daria uma olhada no currículo, na simpatia e até no facebook. 
A diferença crucial (entre o psi e o neuro) é que no neuro basta dizer o nome do problema (tipo cisto sebáceo em giro pré-central) para você lembrar se o colega é especialista em cistos sebáceos em giros prés-centrais ou não ; caso fosse, ficaria comovida e solidária com a situação e faria o encaminhamento.  
Já no psicanalista é preciso ouvir o problema, entender as nuances, arriscar um breve interpretação e rezar: pela empatia, transferência, valores, números de sessões e proximidade da casa ou do trabalho.
Raramente pedem ajuda em tópicos: problemas conjugais, álcool e drogas, enurese e ecoprese, distúrbios do sono, filhos adolescentes, mudança de trabalho, crise de identidade. 
O problema vem em narrativa épica: "deixa eu te contar rapidinho o que tá acontecendo". Sento, peço um café, abro o coração e a mente, crente que a dor e o sofrimento sejam legítimos. 
O começo da fala anunciava o grau de importância do pepino (e da minha pessoa) : 

 "Já faz tempo que penso em falar com você. Disseram que você pode me ajudar. Há 20 anos sofro com isso."

Pedi um café, triplo. Um problema de 20 anos duraria uma eternidade. 

"Minha vida vai bem. Tenho saúde, filhos lindos, pais vivos, casa própria, trabalho e amigos." 

Comecei a tremer, cenário assustador para introduzir a questão. Típico de filme de terror: família feliz em casa de campo bucólica a espera da visita do serial killer. 

"Falando assim parece que tudo vai bem. Vejo pessoas em condições piores que não se queixam de nada e eu aqui, reclamando."

Início de autopiedade somado a autoflagelo. 

" O problema, veja, nem sei se é um problema, é a solidão."

Lucidez poética. 

" Não sei se o que quero é muito, acho que não. Todo mundo tem uma companhia para dividir as coisas da vida. Eu nem preciso de alguém para dividir conta, sou independente. Quero alguém que me faça feliz e só! " 

Sei

"Mas o problema é que não rola. Não sei porque? Encontro pessoas que parecem bacanas, a conversa dura uma ou duas saídas e depois desaparecem. Não acho que quero algo demais. Quero um companheiro, romântico, cuidadoso, trabalhador; não precisa ser muito novo, nem muito velho, sei lá. "

Sei, sei

" E modéstia a parte, eu sei meu valor."

Esperança. Ego fortalecido.

"Sou bonita, inteligente, charmosa e, parece futilidade, mas preciso dizer, uso calça 38, 38! Agora diga, quem com calça 38 fica sozinha?" 

Fala sério! A figura tava indo bem, reconhecendo um lampejo de desejo, negociando as opções de objeto, repensando as modalidades de satisfação e de repente mete uma dessa. 
Aí não dá, Creonice! Que Freud me perdoe, mas fiz cara de gravidade, atuei na  pura inveja (da calça 38 e só) e considerei que um problema de tantos anos não  seria fácil de resolver; valeria uma análise de artilharia pesada para avaliar que elementos psíquicos impediriam um pedido tão simples de realizar para a maioria dos mortais. 
Definição comprovada: uma ilha de amor cercada de ódio por todos os lados! 
Fiz semblante de saber e indiquei uma colega 44, super realizada! 

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