quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Dieta

Determinação é o meu nome, dieta meu sobrenome e gulosa meu apelido; e antes que alguém gargalhe: sim, estou tentando meu 79º regime. Com um cálculo simples chegamos a uma média de duas dietas por ano, descontado o período de amamentação exclusiva. Lampejos de memória indicam chia na minha primeira papinha e farelo de aveia no meu Danoninho desnatado. Mas tenhamos fé! Não preciso dizer dos desafios cotidianos para enfrentar as tentações mundanas, o maior deles é lidar com a galera do funil que só faz comemorar. É cerveja porque é final de semana, segunda, véspera de feriado, pré natal, dia de Shiva, e eu sou apegada nessa maldita. Sábado fui parar no hospital por hiperhidratação; durante um encontro com amigos ingeri dois litros de coca zero, dois de água e três cafezinhos; ganhei cãibra e experiência. Outro desafio é encarar o fogão, enquanto a molecada está na vibe arroz/feijão/batata-frita, devo me contentar com uma proteína magra. O problema é que proteína magra tem cheiro/gosto ruim, explico: ovo tem gosto de ovo, frango de frango e atum de atum. Argh! Só por Deus e um farto maço de salsinha para encará-los! Tem também a questão do mercado: bendita função que no palitinho saiu para mim, desconfio que estavam marcados. Hoje, por pura necessidade (lê-se papel higiênico, ricota e salsinha), dei uma passadinha no inferno. Estava faminta, afinal quatro horas me separavam da omelete de clara com bife grelhado. Antes de mais nada (tipo cruzar um saco de bolinha de amendoim andando pelos corredores) corri para geladeira e escolhi, demoradamente, um yogurte zero gordura sabor ameixa. Já em punho dos meus pertences e aguardando a fila do caixa dez itens andar, percebo um rapaz forte, bem apessoado, com roupas sumárias de academia,  suado na medida me dirigir olhares enigmáticos. Por um instante pensei que fosse  um flerte, afinal além de todos meus atributos (40 anos e cabelo desgrenhado) eu havia perdido 800 gramas. Mas ai me dei conta que estava degustando a mini garrafinha com a língua de um tamanduá, não sobrou uma gota. Ruborizei e sorri discretamente. Foi então que ele me abordou e disse: "Oi, tudo bem? Você não gostaria de levar esses cinco pãezinhos? Peguei dois sacos, mas acho que é demais, vai sobrar, tá até quentinho, olha?". Sem reação agarrei no saco do moço, agradeci e lembrei das sábias palavras da Irmã Zuleide: " Filha, aquilo só pode ser o satanás desafiando sua perseverança. Força , fé e farelo de aveia. Creia no Dukan e repreenda esse encosto da gula! "

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Nesse momento, já em casa, escrevo trancada no quarto, enquanto ordenei que comessem todos os pães sem deixar migalhas.


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Força, fé, farelo de aveia, salsinha e proteína magra. Amém.

Força, fé, farelo de aveia, salsinha e proteína magra. Amém.
Força, fé, farelo de aveia, salsinha e proteína magra. Amém.

Carta 1. Para você.

Carta 1. Para você. 

Parece óbvio, mas não é. 

De forma bastante simplificada a temporada na Terra segue um fluxo frugal: nascemos, vivemos e morremos. Para alguns a temporada pode ser breve, para outros um pouco mais prolongada; no entanto, seja qual for a duração do ticket, a estada dos humanóides exige certa adaptação no modo de funcionamento psíquico, há quem chame isso de processo de subjetivação. Em outras palavras, se você foi um dos espermatozóides que ganhou a corrida desenfreada, furou a barreira da resistência ovular e se manteve em franca multiplicação durante nove meses... Não pare! A batalha não está ganha e seu trabalho está apenas começando! Se a princípio o objetivo era aniquilar os inimigos, nos próximos anos a meta se torna estabelecer uma harmoniosa convivência com os pares.

Entenda que não se trata de obrigatoriedade, você poderá se organizar como ermitão, monge tibetano ou simplesmente como o esquisito da escola, mas saiba: pagará um preço. Até que seus primários responsáveis aceitem seu modo de vida, é provável que passe por uma batelada de consertadores físicos, psicológicos e sociais que tentarão achar uma causa provável para o seu estilo-problemático. Em geral encontram, e se não encontram inventam (as vezes comprovam, as vezes não). Fato é que nos dias de hoje pouca coisa fica sem explicação; talvez falem que seu código de DNA veio com defeito ou sofreu alguma alteração por radioatividade, podem sugerir que sua morada não era adequada para virar humano, que as condições do seu entorno não favoreciam um funcionamento razoável, que você sofreu algum trauma nos primórdios da vida ou que o excesso de bugigangas consumidas durante o percurso contaminou seu corpo e sua cabeça. Explicações  não faltam e junto com delas vêem as soluções. A mais comum é a medicação. Hoje em dia temos remédios para quase tudo: para nascer, crescer, aprender, para dormir e respirar, para comermos, parar de comer,  para parar de chorar, de gritar, de brincar, temos remédios até para transar e para morrer; são medidas eficazes, mas como eu disse tem um preço. Alguns tratam só do problema, mas outros comprometem tantas coisas. Outro dia conheci um rapaz que queria parar de pensar, mas não queria parar de namorar. Conseguiu as duas coisas e aí começou a chorar, teve que tomar remédio para parar de chorar, só que ai parou de dormir e com isso de trabalhar; ficava a noite toda comendo e de manhã dormindo. Coitado! Era melhor continuar pensando, ao menos dormia, trabalhava, chorava ( de vez em quando) e namorava. Alguns vão propor que você mude hábitos: acorde mais cedo, tome água de berinjela, mexa o corpo, faça uns exercícios para memória e esqueça todos entorpecentes (álcool, drogas e chocolates). Antecipo que não é fácil; na mesma loja que mandam você mudar oferecem mercadorias tentadoras que só fazem piorar. Luta inglória dos tempos de espermatozóide! Outros mais preocupados chegam a cogitar tirá-lo de casa, às vezes pode ser interessante. Organizam lugares preparados para recebê-lo: arrumam o chão, as paredes, os utensílios necessários para viver; contratam umas pessoas mais gentis, empenhadas pela causa. Em geral elas aceitam seu modo de vida com um pouco mais de tolerância, mas não deixam de querer adequá-lo ao mundo da maioria. E falando em maioria, é assim que se organizam por aqui. O objetivo não é tão claro, mas alguns dizem que mantendo a casa em ordem, com as gavetas catalogadas por números, cores, gêneros e formas de se relacionar, fica mais fácil dividir os bens necessários; como se alguém soubesse de antemão aquilo que lhe convém. Não estão de todo errado, no começo é fundamental que alguém se ocupe dos seus cuidados e lhe ofereça uma espécie de kit de sobrevivência; já existem até lojas especializadas no tema: vendem fraldas, mamadeiras, lugares para dormir, tomar banho, brincar, mas o mais estranho são as orientações. Você acredita que existem pessoas que vendem orientações de como cuidar de outro humano! Confesso que nos últimos anos tenho lido a respeito, me pareceu  tão interessante que alguém saiba exatamente o que fazer para criar espécies adequadas ao mundo! Talvez por ser um tema universal tem gente a beça criando manuais auto-explicativos recheados de dicas e sugestões; parece um pouco com a história da medicação, só que de ler e fazer. Mas vou te revelar um segredo: ninguém conseguiu inventar um método tão preciso que garanta os resultados esperados.

Bom, preciso ir. Tenho que me relacionar um pouco. Eu queria mesmo te falar sobre a história da subjetivação, mas me alonguei demais. Se quiser prometo  escrever dia desses para falar sobre isso. 

Fique bem.

Abraço.
  

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Per capita


Segundo algum site consultado através do meu iPhone 6 plus size, a renda per capita na Suíça - a soma dos salários de toda população dividido pelo número de habitantes - em 2013 bateu a casa dos cinco gordos dígitos, algo em torno de 44 mil dólares/ano. Situação de fome se comparado aos dados do por mim desconhecido campeão Liechtenstein: 141 mil dólares/ano.  Devemos considerar que algo em torno de cem mil doletas por ano muda a vida de qualquer vivente do solo terreno, seja ele um helvético nativo, seja um sortudo pelo destino que nasceu no  entroncamento do Império Sacro Romano Germânico. Obviamente, se a tela do seu eletrônico não for tão grande como a minha, você não conseguirá visualizar a tabela longínqua que separa as nações da primeira a última posição, ou seja o 226º. Lá, nos confins da lista - e do mundo - reside a galera do Congo/Libéria; dividem um naco de terra do mesmo continente e mesmo separados por 3 mil kms, a diferença entre a mísera cota de dinheiro por cabeça bate as cem unidades de dólares: enquanto a Libéria ganha 500 por ano o Congo se vira com apenas 400, qualquer coisa comparada a peanuts no velho continente. 
Bom, mas e daí? Daí que hoje, entre o trajeto de Osasco ao metro quadrado mais caro de São Paulo, deparei-me com um serviçal devidamente uniformizado  e ilustrado  com o logo e as cores do prédio em que trabalhava regando com esmero dois palmos de grama que circundavam a construção inspirada no mesmo Império Sacro Romano da linha de cima. E caso a frase tenha ficado complicada demais, refiro-me aos prédios cafonas que enfeitam o cruzamento Faria Lima/JK. 
Por instantes me senti na Suíça ... lembrei de um situação numa viagem a terra das vaquinhas chocolateiras: atravessando o largo país  de um cantão a outro, nos deparamos com um viaduto nascido em plena pista expressa de alguma rodovia. Não levava a lugar nenhum, apenas servia como uma grande lombada. Perguntado ao morador da região qual a função do elevado, nos explicou que havia uma obra na pista e para não atrapalhar a população local com um desvio, a prefeitura construiu um viaduto temporário enquanto os funcionários executavam a manutenção no andar de baixo. Pasmem! Então ele listou uma infinidade de exemplos que fariam inveja a qualquer país abaixo da 50° colocação ou algo em torno de 23 mil dólares/ano: o isolamento acústico na auto estrada, o elevador construído ao pé do morro para um único morador, a proibição da abertura das grandes redes de supermercado aos finais de semana para não comprometerem o trabalho dos pequenos comerciantes, as vagas garantidas nas creches,  a preferência por um segundo idioma oficial no ensino fundamental, as barracas de frutas espalhadas pela estrada com sistema auto atendimento, entre outros. E do 50° ao 101° lugar existe uma distância intergaláctica; passamos pelo Omã, pela colonizadora Portugal, pela turística CVC Aruba, pela caótica Argentina, pelo freeshop Panamá, pelos ciganos búlgaros e a atual referência pós moderna dona Venezuela, para enfim pousarmos no Brasil. Por aqui, país de obras, prestações e secura intermináveis, nos contentamos com a renda por cabeça em torno dos 11 mil/ano:  longe dez vezes do topo, mas distante trinta do fundo do poço. E dai pensei:   existem intervalos tão maiores do que a Libéria e o Congo, ou até mesmo do que a Suíça e esse tal Liechtenstein! Existe um intervalo gigantesco entre o moço-regador da faixa de grama e o dono do mastodonte de concreto. Eu e meu estúpido eletrônico moramos ai: 10 vezes mais perto do fim da fila do que a centena de vezes que nos separam do castelo do marajá. 
Fato é que tem muita, mas muita coisa para mudar por aqui, porque se fizermos essa conta direito  temos mais de nós batendo nós recordes do Zimbábue do que sonha nossa vã alienação.
E pra começar poderiam mudar esse discurso hipócrita de que evoluímos do pais que roubamasfaz para o pais que roubamasdacastigo. Isso não convence nem criança em idade pré-escolar; naquela fase do fui eu que fiz a arte, mas foi sem querer; idade que estamos nos havendo com a lei e seu real poder: negociamos, barganhamos com gracejos, pedimos desculpas com o bico doce de travessuras e no final ganhamos um afago na cabeça e um beijo na testa. 

Já deu,né?!

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Das cenas patéticas que podem acontecer com qualquer um de nós: num bairro chique da zona sul da capital, em plena segunda-feira após eleição presidencial, uma moça elegante derruba seu capuccino enquanto grita em alto tom: um rato. A padaria cheia perde o rebolado; homens engravatados fazem semblante de coragem, mulheres aflitas encolhem os pés, os clientes mudam de lugar na ilusão que ao se afastar do local da aparição o mal estará isolado. Tolos! O cozinheiro surge com uma vassoura na mão, olha sem muita convicção embaixo das mesas e vocifera: fugiu. Quem chega não sabe de nada , acredita que está no lugar mais asséptico do planeta. Seguem tomando seus cafés na santa paz. Tolos!
Personagens urbanos

Toda segunda cedinho quando peço uma média desnatada e um pão mil grãos com pouca manteiga retorno a posição de uma pessoa regular. Já vesti minha calça de linho com salto alto, besuntei maquiagem na cara e combinei alguns acessórios que me tornam uma profissional típica produto capitalista. 

Sentado a minha frente, naquela padaria do rato, um homem de 50 e poucos, cara surrada por um leve estado depressivo, corpo esbelto vestido a caráter para servir tanto a gerência quanto a superintendência de alguma empresa de serviços, aliança na mão esquerda, roupa de marca, sem celular e olhar vazio, perfeitamente alocado no lugar comum, surpreende a todos ao pedir uma jarra de suco de laranja e uma omelete completa com fritas.
Quando digo de uma cena com um garoto de 19 anos que é autista e estuda na escola que trabalho há três anos como psicóloga, asseguro( a mim) um lugar de existência e identidade, onde repousa objetos que me dão contorno e interioridade. Eu sou a psicóloga do local, reconhecida pela posição que ocupo, pelas pessoas que lá trabalham, pelas famílias que confiam a nós uma possibilidade de mudança e eventualmente pelas crianças e jovens que lá freqüentam.
Ele não; ocupa um lugar oco, abismal, que ecoa a minha voz, ressoa quem sou, sem ao menos conseguir segurar minha mão e esboçar uma tentativa de desdobramento que o torne um diferente, capaz de determinações que possam ser suas.
É da minha interioridade a obrigação de reconhecê-lo.

PS: inspirado nos escritos de Juliano Pessanha. Recomendo a leitura.