sábado, 24 de maio de 2014

Da série: mãe de meninos


Em meio a um final de semana delicioso com um casal de amigos e suas meninas conclui que a maternidade do gênero masculino assola a feminilidade de uma mulher.
As crianças, variando de idade - 8 a 18 anos, mas não de necessidades, demonstram carinho e importância de modo muito peculiar. As meninas, delicadas no contato, abraçam a mãe como uma amiga de colégio. Braços dados, cuidado com os cabelos, troca de roupas e enfeites para o jantar, caminhada em ritmo marcado para não parecer um andar desengonçado. Os meninos, mastodontes pré-históricos constantemente famintos, se apoiam sobre minhas costas esmagando da cervical a lombar, arrancando metade do cabelos cultivados as custas de muita queratina sintetizada, pisam com seus tênis enlameados na minha única sapatilha, enchem meus bolsos de restos e coçam seus narizes nos meus ombros deixando rastros de melecas.  
Comemorando a boa safra, decidimos por um hotel que oferece chalés rústicos e espaçosos para famílias de quatro pessoas. São dois quartos suítes, ambos com televisão a cabo, separados por uma agradável sala de estar com lareira, varanda e piscina privativa. Tipo: imenso! As meninas, ciumentas do seu espaço, organizaram o container de shampos, cremes, perfumes e maquiagens no próprio banheiro, dividindo a pia em tamanhos iguais. As roupas foram dispostas no guarda-roupa, os casacos pendurados no mancebo e os sapatos devidamente organizados em duas prateleiras. No quarto ao lado - o meu - as criancinhas se amontoaram na cama do casal, largaram os tênis e as meias como pegadas de dinossauros no dia final, as roupas sujas e molhadas foram esquecidas dentro da mala de roupas limpas e, o único pertence de higiene pessoal, a escova de dentes comunitária, se manteve esquecida dentro da pia do meu banheiro. Local aliás, que foi usado para toda sorte de atividades durante o final de semana. Descobriram que havia um segundo banheiro apenas no domingo. E o banho? Os meninos entendem que a passagem pela água, seja ela corrente do chuveiro ou altamente clorada da jacuzzi aquecida, serve como higienização corporal. Para eles não faz o menor sentido sair da piscina e tomar banho, ainda que o cabelo liso já tenha se transformado em dreadlock seboso. As meninas, ao contrário, são capazes de lavar e hidratar e escovar as madeixas até três vezes por dia. 
Agora um pouco emblemático são as refeições. Mesmo que apresentem restrições de crianças mimadas, as meninas seguem o ritual: entrada, prato principal e sobremesa. Escolhem o lugar para sentar, aguardam a chegada do garçom, pedem a bebida sempre com algum detalhe - mais gelo, menos gelo, um saquinho de adoçante, sem nada, coado e etc - esperam a bebida e só então dirigem-se ao buffet. Já os meninos ... raposas selvagens a caça de predadores chegam no restaurante, ignoram a sessão de saladas e invocam um prato fundo para aumentar a porção. Criam verdadeiras construções modernas, empilhando arroz com macarrão com batata com carnes e por fim uma fatia de tomate. Para não perder tempo, apóiam aquela montanha bem ao lado do quindim e , em outro prato fundo, separam uma fatia de pudim com torta de limão com brigadeiro e duas bolas de sorvete de creme. Quando a mesa, gritam em bom som se a coca, que eles não pediram, já chegou. As meninas voltam a mesa com a folha de alface e um ovo de codorna no prato, no mesmo instante que eles perguntam se já podem sair, afinal já almoçaram. Caso a resposta seja negativa, compreenda que sua refeição foi para o saco. O menor pede colo, não vê nada de errado em juntar as cadeiras como cama, tão pouco entende como incomodo você se alimentar com uma cabeça entre sua boca e o caldo de aspargos pelando. O maior, carente, gostaria de um carinho nas costas com a sua mão esquerda, afinal você não é canhota, pra que mesmo usar as duas mãos?! Na cadeira em frente, seu marido degusta o pernil de cordeiro e pergunta, amor, se você experimentou o molho. Uma delícia! Obviamente seu humor esfriou junto com a sopa que seria sua entrada.  As meninas conversam com os demais e oferecem um gole do suco de frutas vermelhas para a irmã experimentar. Na tentativa de salvar seu jantar, você grita para que saiam do seu corpo, te chamam de louca e partem para a ponta da mesa. Começam a bater figurinhas enquanto as taças tombam, a sopa vaza, o singelo vaso de flores se estabaca no chão. 
Mas um hotel fazenda é um lugar amplo, oferece muitas atividades ao ar livre, esportes e contato com a natureza. Ordenhar a vaquinha por exemplo. As meninas, de luva e pró-pé, fazem um selfie com zoom e flagram os meninos ao fundo montados na malhada com esterco até o joelho. Elas adoram andar de pedalinho admirando a paisagem, enquanto eles competem ferozmente para ver qual cisne vai afundar primeiro. Na relva verde eles rolam morro abaixo e retornam felizes como porcos espinhos cobertos de picão. Na piscina se divertem com a bola tendo como única finalidade acertar a cara do irmão. Também soltam pums, as gargalhadas, para verem as bolhas fétidas saírem. As meninas tomam sol. 
Os(meus) meninos são doces bárbaros, expressam afeto utilizando todos os ossos do corpo. Me apertam nos lugares mais indesejáveis, atribuem apelidos vexatórios, beijam molhado com bafo de noite bem sonhada. As meninas demonstram doçura de forma mais cuidadosa. Gastam tempo com a conversa, ajeitam a gola da blusa da mãe, dividem o brilho dos lábios para não sofrerem com o sereno das montanhas. Minha comadre, mãe das meninas, também é doce, delicada, de uma vaidade rosa. Fui me dando conta que sou uma mastodonte fêmea; preste a dormir observo que visto as meias velhas do primogênito, o moletom surrado do marido e aqueço as pernas com o cobertor encardido do caçula. Típico de mãe de meninos. 

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Fases

Aos seis anos viajei com meus pais e meus tios pela América do Sul. O meio locomotivo era uma Belina duas portas, recém pintada de azul royal. Em território nacional seu porta-malas media a dimensão de um universo gigante, atravessando BRs era um cortiço apertado. Meus avós ficaram responsáveis pelos cuidados da minha irmã, então com pouco mais de um ano. A programação da viagem duraria trinta dias e talvez uns dez mil quilômetros. Para uma criança devia ser algo como a volta ao mundo ou um número com muitos zeros que não cabia na calculadora. Guardo reminiscências da aventura. Era verão; os respingos das cataratas; um quarto abafado de hotel; a visita a um casal de chilenos cuja filha chamava Chimena; a sandália de couro que usava; o cheiro de carne assada e a água com gás.
Odiava água com gás. Por alguma razão desconhecida, em pontos da viagem não encontrávamos água sem gás. As estradas, certamente não ofereciam lojas de conveniência recheadas de gostosuras e líquidos saborosos. Os postos, cuja função era abastecer os carros aventureiros que cruzavam fronteiras, ofereciam combustíveis e borracharia e água de torneira e banheiro sujo. Fui obrigada a aprender fazer xixi agachada atrás da porta do carro e... tomar água com gás.
Um ano depois, meus outros avós decidiram patrocinar uma viagem para os seis primeiros netos e uma única bisavó. Éramos três meninas e três meninos quase todos da mesma idade. Esses avós optaram pela multiplicação em massa e tiveram onze filhos; dez vivos e um morto. Filhos em série, em geral, produzem filhos em série. Da meia dúzia, quatro tinham sete anos, um oito e uma nove. A bisavó contava na época com oitenta. O destino foi Caldas Novas, lugar turístico de Goiás. Fomos de ônibus. Foram 12 dias de viagem, sendo um para a ida e um para a volta. Dessa aventura guardo lembranças – diferente das reminiscências, elas se movimentam. As piscinas eram aquecidas; havia um bar com chafariz dentro de uma delas; o buffet de comida era farto; tínhamos direito a um sorvete por dia; dormíamos as nove; a moeda local eram conchas coloridas que formavam colares ou pulseiras e equivaliam ao dinheiro de papel – uma espécie de percursor do cartão magnético e meu avó, que estabelecia um relação de apego com o dinheiro, oferecia a cada refeição água tônica; para todos.
Odiava água tônica. Uma classe de água com gás que revela seu potencial de refrigerante, apenas para os que toleram sua amargura inicial. Sem muito êxito implorávamos por uma coca-cola. Vindo do mesmo avô que não autorizava mais de um Yakult por dia, reciclava os caroços da azeitona no óleo de soja para pegar o gosto e comprava bengalas de pães por serem mais econômicas, não obtivemos muito sucesso. A coca era cara e fazia mal, enquanto a tônica além de mais barata, ajudava na digestão. No terceiro dia diminuímos o consumo de latas para três.
Não conheço nenhuma criança que tome água com gás ou tônica. Entendo que exige um paladar refinado, marcado pelo tempo e pelas experiências. É um traço da filogênese que se repete na ontogênese da raça humana. Mas para o meu avô isso não fazia a menor diferença, talvez tenha nascido amargo; tampouco para os argentinos.
Atravessei a primeira, a segunda e a terceira infância evitando esses dois líquidos. Continuavam amargos como remédios e para mim, estavam associados a estados de maus humores. Eram a tentativa de varrer para dentro os excessos que moravam nas bocas. Restos de palavras, desafetos e agonias.
No final da adolescência conheci o antiácido, provavelmente após algum exagero e, conclui a série gasosa na mesma época em que conheci outro amargor que me fez fazer as pazes com o gás da água e da tônica e do antiácido.
Passei a tomar cerveja e café. Passei a entender melhor meu avô.    


quinta-feira, 15 de maio de 2014

Recomendações aos médicos que praticam a boa medicina

Quando de um doente queixar-se daquilo que não encontra morada nos sistemas previstos pela ciência, considere a sugestão de um tratamento por meio de palavra. 

O método simplificado propõe doses semanais com hora e duração pré-estabelecidas, sujeito a interpretações efetuadas após o estabelecimento da transferência. 

De uso rápido (e clínico) segue orientação para diagnóstico diferencial. Apresentando um(a) ou mais manifestações, encaminhe: 

  • Espécie de obnubilação 
  • Labilidade psíquica de síntese
  • Sensação de desassossego
  • Desconcerto abissal e hipnótico
  • Precipício existencial
  • Inquietante estranheza
  • Sensação de desequilíbrio
  • Impressão continua de perder o solo
  • Corpo como um veículo em decomposição
  • Inevitável decadência
  • Angústia de fragmentação corporal


Grata

Subjetividade  

domingo, 11 de maio de 2014

Dia das mães

Fui sorteada para cumprir a escala de plantão desse final de semana. Findados os dias comerciais, ficamos a disposição do hospital para atendermos os chamados de urgência. Em geral, alguém da equipe de saúde reconhece certo desassossego na alma dos pacientes e protocola o que chamamos de avaliação psicológica. Então, a moça da localização liga para o profissional disponível e informa o nome (do paciente) e o quarto em que se encontra. Por razões institucionais, definimos o grau de urgência pra tamanho desassossego; pode ser de prioridade máxima (devemos responder nas próximas horas) ou de rotina (conseguimos nos organizar para as próximas 24 horas). Como o grau de inquietação depende de quem cuida do paciente, achamos por bem organizar uma lista de situações hipotéticas que funciona como um guia orientador para os nossos colegas. (Más) notícias inesperadas, conjunturas irreversíveis ou rompimento abrupto da vesícula protetora do psiquismo são exemplos presentes na lista. Pois bem, hoje recebi quatro telefonemas que exigiram minha presença antes do anoitecer. Coincidentemente, todas as almas inquietas pertenciam a mulheres. Jovens e velhas que comungavam da mesma condição, materna. Os pedaços doloridos da carne eram diferentes. Sofriam do fígado, do intestino, da cabeça e do útero. Falaram, e como falaram. Angustiadas contaram dos excessos, do real do corpo fragmentado pela navalha da medicina, do processo de adoecimento, dos efeitos colaterais das drogas, da fragilidade constante e do lampejo de esperança pela recuperação. Umas mais apressadas do que outras, um tanto impacientes, queixosas (do sistema) e reivindicadoras da condição de saudável. A vida – aquele asteroide sem rumo que por vezes nos atropela – estava em suspenso, enquanto seus corpos padeciam ali, na cama fria do hospital. Quantas tarefas esperando pelo retorno de suas donas. O trabalho na empresa, a organização do lar, o livro em plena tradução e as plantas deixadas no quintal, a ermo, na seca. Queriam ir embora. Desejo legítimo e de direito. Ninguém, segundo elas, poderia realizar seus ofícios com o mesmo rigor e dedicação. Nem o colega de trabalho, nem o marido, tampouco a empregada e muito menos os filhos, esses pequenos indefesos que precisam se manter vivos para garantir a cátedra das mães: cuidar. Dos mais novos - talvez um garotinho de seis anos - ao mais velho - um senhor de setenta, pleno de funções, nenhum deles poderia viver o sacrifício de passar o domingo às voltas com aquela refeição insossa, naquele lugar desagradável, que em nada lembrava sua cozinha e seu macarrão. Motivo urgente para o atendimento, padeciam de alto grau de apoquentação. Não havia remédio (desses que alguém pode comprar) que curasse a dor daquelas mulheres. Temiam privar os filhos de suas presenças. Mães! Uma a uma pude ver o sorriso se instalar no rosto abatido, enquanto as crianças chegavam.
Meus filhos ( a quem devo a maternidade), minha mãe, minha tia, minha irmã e minha avó (todas as mães da minha vida) me esperavam para o almoço de dia das mães. Feliz! 

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Proporcionei ao meu primogênito uma tarde ostentação com um amigo da escola. O principal atrativo foram as cadeiras reclináveis com botão para servir pipocas. Demos uma volta no shopping, xeretamos as prateleiras da livraria européia, comemos carne moída com queijo americano e cebola frita. Durante a exibição do mais novo homem aranha, preferi uma das agradáveis praças de cafés distribuídas nos arredores da grande construção. Ele cresceu; pensei que um programa com o amigo seria mais divertido sem a presença constante da mãe; além do mais, temo desenvolver labirintite entre um salto e outro nos arranhas-céus de nova york versão 3d. Munida de um eletrônico, o livro novo e um café plus size, encontrei um lugar ao sol com vista para a arborizada marginal pinheiros. Ao meu lado estava um homem de meia idade esparramado no sofá do lounge que, entre uma apnéia e outra, acordava da sesta. Na outra mesa um casal, também de meia idade, entre gorjeios e gracejos em inglês - como são óbvios os apaixonados! Mais adiante, um grupo de jovens, mascarados de executivos, acertavam os ajustes finais da apresentação. Um funcionário descansava de olhos abertos. Duas meninas bem vestidas combinavam a saída da noite, enquanto dividiam um sorvete light. Uma mãe elegante e seus três filhos adolescentes conversavam sobre o último feriado em angra. A atendente, uma senhora loira e rosada de olhos azuis, me lembrou uma romena em algum restaurante suíço. Tinham outros e otra língua. E tinham três, iguais e chatos, tentando emplacar um papo que não decolava. Começaram pelo sorvete, arriscaram os modelos de carro, tentaram o final de semana, perguntaram da fulaninha e nada, até que um garotinho da mesa ao lado ofereceu de bandeja o assunto da vez: o álbum da copa. Falta de criatividade. Em poucos minutos falavam da estrutura precária do país, das diferenças entre dilma e barack,  do sonho em morar na big apple, do alto custo cobrado por aqui pelo seu aparelho telefônico, da ditadura imposta pelo governo ao proibi-lo de comprar um gerador de energia para sua casa, do preço da blindagem, da qualidade dos produtos nacionais, da falta de qualidade da mão de obra escrava, do próprio umbigo, do gel importado que suporta seu topete. Foram incapazes de discutir uma única idéia. Concordaram em uníssono com as queixas distribuídas, aleatoriamente, sobre a tábua de mármore artificial. Combinaram de torcer contra, embora soubessem - parece que o tio de um deles, amigo do primo do cunhado do presidente da fifa, revelou  que seremos campeões, pois os jogos estão comprados. Verificaram seus relógios e, cobertos de verdades, partiram atrasados para o capitão américa esquecendo seus pratos sujos ao ar livre.