sábado, 4 de julho de 2015

Tatoo

Nasci devendo 2 meses de vida. Um resto que fez muita falta aos meus pais. Olhavam aquele corpo emagrecido pela prematuridade e não encontravam pontos de apoio que revelassem minha origem. Eu era feio, com orelhas grandes, nariz pontudo e cabeça achatada. Nasci quase hígido, portador de anomalias funcionais. Meus sistemas precários precisariam de tempo e furos e drogas para começar a trabalhar. Por obrigação continuaram a cuidar: deram nome e sobrenome, um canto para dormir e uma desesperança constante. Minha mãe deu um pouco do seu peito, mas logo desistiu. Minha fraqueza comprometia a força necessária para arrancar dali o meu sustento. Por sorte haviam substitutos: tubos, sondas, fios capazes de conectar meu corpo as maquinas. Assim foi: trataram e cresci, com a pele marcada pelos efeitos da prematuridade. Essa foi minha identidade: pequeno, miúdo, doente; atrasado no tempo dos normais. O tempo passou e a dúvida da origem pediu respostas que não foram dadas por ninguém: nem por meus pais, nem pelos médicos, nem pela porra do analista. Foi quando decidi transformar, marca por marca. Do pulmão fiz minha mãe, pelo instante de respirar. Do coração, fiz o braço forte do meu pai. Do estômago, o arco de flores da casa dos meus avós. Da garganta, a corrente sufocante do cordão umbilical. Da veia do braço, a cobra venenosa do doutor. Do resto, fui pintando o que aparecia, das relações construídas pela nova identidade.

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