quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Obrigação

Obrigação

Por hábito, agradeço a possibilidade do trabalho. Cada atendimento, cada novo sujeito em sofrimento, cada família desamparada inaugura uma possibilidade. Recebê-los de escuta aberta e atenta é o primeiro passo. Compreender a questão do sujeito, muitas vezes mal ajambrada pelos excessos do trauma, mal colocada, sem nexo. Depois é preciso avaliar o contexto, as relações subjacentes, a estrutura, os recursos disponíveis. É preciso avaliar se o entorno, colabora para responder ou se dificulta. Avaliar não é tomar a frente (salvo necessário), mas é fazer questão, convidar os parceiros de trabalho a reflexão; é verificar as exceções, a função da regra, o efeito para aquele sujeito. Avaliar é recolher a vaidade da interpretação e reconhecê-la como trabalho. Uma interpretação bem colocada é um ato narcísico, inaugura um outro e um eu em relação ao outro; de passagem, temporário.
Seja na clínica (o mais um na vida do sujeito), mas principalmente nas instituições, pertencer ao grupo é fundamental. Vai para além de ter cargo, crachá e lugar no protocolo. Pertencer é estar inserido, é um processo psíquico, é sustentar um lugar, é aprender (constantemente) a manejar as demandas. É estar ao lado, não à disposição. Nossa disposição é ao sofrimento do sujeito, seja ele do paciente, da família ou da equipe. Porque sofrimento revela verdade inconsciente e se manifesta via sintoma,  ausente de nome diagnóstico. Quando encontram, não carrega nem a causa, nem o tratamento, apenas abre caminho para o trabalho.
As situações mais complexas (e são tantas!) exigem vários. Começamos como um, viramos múltiplos, às vezes nos inter-relacionamos e mais raramente, nos transformamos a partir do outro. Isso nos define como multi, inter ou transdisciplinar. Só sabemos o que somos na prática e quem nos diz são os pacientes.
Há 20 anos trabalhando em hospital coleciono histórias que revelam o que somos e como nos tornamos o que nos reconhecem.
A UTI Neonatal, morada temporária de pequenos que desde do marco zero apresentam algum descompasso, abriga famílias em formação. Já carregam histórias seculares , mas ali, no encontro com o novo, tudo se reordena. Bebês nascidos prematuros, nascidos diferentes do sabido, nascidos múltiplos, nascidos mortos. Famílias nascidas completas, faltantes, aflitas e desesperadas; nascidas também preparadas, esperançosas.
Nos cabe arrumar a casa e bem servir.
E como diria minha mãe, pequenos arranjos dão o tom.
Uma das ações criadas a base de emoção e improviso foi o Corredor da Despedida.
Bebês que permanecem um bom tempo conosco (não determinamos quanto, não exige protocolo, não precisa de comunicado, simplesmente acontece) são aplaudidos em pé na sua saída, como exige a boa ópera.
Saudamos a vida, com palmas, música, lágrimas ( e quantas!) e muita alegria.
Dia desses acompanhei o corredor de uma família, cujo garotinho permaneceu internado por meses e seguirá contando com ajuda.
Trabalhamos muito: conversas longas, por vezes difíceis, insistentes e irredutíveis, resistentes a transformação. Outras mais leves, algumas conclusivas e de reconhecimento. O menino (representante de muitos) foi conhecer sua casa. Foi inaugurar o ano ao lado dos seus.
A história segue sendo escrita, marcada pela passagem demorada na UTI.
Torço por eles, como torço pela humanidade. Talvez os re-encontre, talvez não.
Nosso abraço de despedida teve legenda: obrigada por insistir em me manter no eixo.
Obrigada vocês, pela oportunidade de trabalho, esse é o nosso desejo.
Obrigada a minha equipe, ao parceiros de trabalho, a instituição, ao alunos que confiaram em nós como ajudantes da formação.
Que venha 2016 cheio de coragem! E trabalho!
Abraço
Patricia Bader



domingo, 27 de dezembro de 2015

Cooperação



Primo pela coletividade: se todos estão razoavelmente bem, dificilmente alguém estará muito mal. Serve pra tudo e muito pro dia-a-dia.
Ir ao mercado, por exemplo; longe de ser uma tarefa prazerosa, porém obrigatória. Papel higiênico, pasta de dente, sabão em pó, cerveja gelada e a prateleira de guloseimas do armário não aprecem num toque de mágica. Não parece difícil, talvez um pouco trabalhoso, mas em bando tudo fica mais suave. Um empurra o carrinho, o outro organiza no cesto metálico, alguém carrega as sacolas e a marmitona aqui paga a conta na mais justa divisão de tarefas.
Só que antes do mercado, as pendências domésticas gritam por clemência: tirar a mesa do café, devolver a manteiga calorenta para a geladeira, garantir que o iogurte não vire ambrosia, dar uma lavadinha na louça, recolher o cocô do cachorro, varrer o chão da sala recoberto de micro pedaços de revista picotada pela mini fera, carregar o ipad coletivo, escovar os próprios dentes e pentear o próprio cabelo; tipo essas coisas.
Claro que a boa vontade de irem ao mercado, custou uma passada no shopping ( só pra ver quanto custa aquele brinquedo), outra na banca de jornal ( só pra ver se chegou a revistinha do X-man) e uma parada rápida naquela açougue gourmet ( só pra pegar uma paletinha de cordeiro, cê tempera pra mim? ).
Quase tudo pronto ( menos as toalhas molhadas penduradas nas fechaduras dos quartos e o lixo reciclável que tive que correr atras do caminhão), peço para terminarem de varrer o chão.
Claro mãe, pode deixar! Oh fulano pega a vassoura? Eu não, pega você folgado! Mas não fui eu que dei a revista pro cachorro! Nem eu! Ele que pegou! Então não sou eu que tenho que recolher. Você é muito folgado! Então pega a pazinha. Onde ta? Ta no lugar? E onde é o lugar? Você não sabe seu burro! Nossa, você pode pelo menos falar onde ta!  Vê se ta dentro da geladeira! Não ta! Já vi. Vai logo seu ridículo! Ridículo? Oh mãe! O fulano me chamou de ridículo! E você que me chamou de burro. É mesmo! Nem sabe onde fica a pazinha! Não vou mais recolher! Nem eu!
Tudo pelo bem coletivo.
Tenho certeza que seria mais fácil se tivesse pedido para desarmar uma ogiva nuclear. Fariam com rapidez e sem dificuldade, mas varrer o chão, ah! isso é muito complicado!


domingo, 13 de dezembro de 2015

De tudo

Diz minha avó que a angústia é o afeto que não engana. Não, minha avó não leu Lacan. Estudou até o fim do normal e foi ajudar no armazém da família; um comércio de secos e molhados que vendia ovos coloridos. Bastava fervê-los com anilina verde, azul ou vermelha e esperar pela freguesia. Era ovo com rabo de galo.
Depois o pai adoentou, ela casou, engravidou e continuou atrás do balcão, do fogão e do tanque. Não se queixava (muito) da vida. Seguiu até seis meses, exatamente na dobra do tapete do corredor; depois caiu, quebrou a perna e teve que trocar de osso aos 90!
A pouca anestesia para não sentir dor, pôs pra dormir um dos dois neurônios que ainda funcionavam. Acordou com um só tentando se ligar as memórias. Bala sem alvo, ricocheteava e atormentava o próprio cérebro.
Por falta do que fazer e um punhado de desespero, medicamos seu comportamento. O efeito é a presença silenciosa: sobra 40 kilos de pele alva e dois olhos esverdeados gotejantes. Então tira o remédio! Pelo menos reage! Voltou a mastigar e a proferir a frase: a angústia não engana.
Não há o que se ofereça para fazer sentido. Fica ali, um punhado de libido buscando alento na presença de algum objeto.
Pode ser medo de gente, de trovão, assombração. De barulho, do frio ou do calor. Do cachorro, da barata, do vizinho. Pode até ser medo da morte. Mas não é.
Acho que é medo de existir sem poder.

Me ajuda! Me ajuda! Tô com medo, com medo!
Medo do que, vô?
Não sei.
Não precisa ficar com medo, a gente tá aqui!
Me ajuda! Me ajuda! Tô com medo!
Do que vô?
Não sei.
Fica calma. A gente tá aqui, a senhora tá protegida.
Me ajuda! Tô com medo?
Do que? Vai passar. Vamos rezar um pouco. Depois ficar quietinha que o medo passa.
Me ajuda! Medo!
Do que vó?
De tudo.

sábado, 5 de dezembro de 2015

Uma reflexão sobre o trabalho

Dia desses tive uma discussão saborosa com as alunas do curso de aprimoramento. Sentimos, mutuamente, o desafio de compreender as nuances  dos aromas trazidos pela situação clínica. Consideramos nossos pontos de vista e, a partir daí, retomamos os textos e a construção do caso clínico. Trabalhamos.
A discussão tratava da perda do objeto: pensávamos se o impacto psíquico da ausência do objeto seria sentido de forma diferente, sendo permanente ou transitória. O abandono paterno teria semelhanças com a morte de um irmão? A demissão de um emprego seria vivida como a notícia de uma cirurgia mutiladora? O fim de um relacionamento ou a morte de um animal de estimação? A perda da confiança em um ente querido ou o roubo de um celular com todas as fotos e músicas escolhidas nos últimos anos? Enfim, falávamos sobre o valor de cada objeto no nosso ranking interno. Estudamos narcisismo, relações objetais e teoria do trauma. E seguimos assim.
No dia seguinte recebi uma pessoa para entrevista. Buscava a validação do psicólogo para realização de uma cirurgia bariátrica. Em geral, ofereço a palavra questionando a motivação para tal encontro. Então, estabeleço uma linha do tempo e anoto as variações de peso relacionadas aos acontecimentos. Contou, em pormenores, as alterações sofridas. Da adolescência a vida adulta ganhou peso paulatinamente. Ganhou mais quando começou a namorar, entrou na faculdade, arrumou o primeiro emprego, casou, morou fora do país, engravidou. Ganhou junto às conquistas. Perdeu apenas uma vez: quando recebeu a suspeita diagnóstica de uma doença grave.
Em casa, saída do banho, observou uma protuberância nas costas. Como vinha sentido dores , atribuiu a má postura, ao sobrepeso e ao sedentarismo. Passado uns dias, sem que o sintoma cessasse, procurou um médico no posto de saúde. Foi examinada e encaminhada para um especialista. Questionou o médico em relação ao diagnóstico: cauteloso, insistiu que esperasse a consulta com o colega. Mas demoraria, não teria agenda tão cedo, a ansiedade seria pior. Bom, diante da insistência e a ressalva de ser um clínico, dividiu as possibilidades com a paciente.  
Por razões, que talvez ela própria desconheça, optou pela pior. O acesso à informação desenhou o cenário mais tenebroso: doença grave, em lugar delicado, correndo o irisco de perder a mobilidade, talvez uma paraplegia ou a morte. E o futuro? O casamento? O trabalho? Os filhos ainda não tidos?
Todos objetos, reais ou imaginários, ameaçados por uma possibilidade. Perdeu  apetite, sono, disposição. Perdeu interesse pelos objetos valiosos: o trabalho, o namorado, os amigos, a família, o corpo. Gastou o resto de energia para cumprir as obrigações sem nenhuma afetação.
A morosidade do sistema de saúde manteve a incógnita por meses. Primeiro a consulta com o especialista, depois o exame demorado, mais um tempo para o retorno. Sua libido minava pela 5ª vértebra. Seus sintomas se acentuaram. Tinha dores, fisgadas, dormências. Tinha medo.  Na tentativa de estancar o vazamento, receitaram um anti-depressivo, um indutor do sono e recomendaram tratamento psicológico (com espera de 5 meses).
Quando enfim a notícia foi alentadora, estava magra, deprimida e medicada. A confirmação da benignidade e o descarte de uma intervenção cirúrgica operaram efeitos no seu humor. Aos poucos, retomou o interesse e o peso, tanto que se tornou candidata a cirurgia bariátrica e hoje, não encontra forças para emagrecer sem ajuda.
Pasmem, passado outros dias, uma moça, aflita com as questões do amor, desmarca a consulta: teria médico no mesmo dia. Conseguiu um encaixe de última hora e gostaria de resolver logo "esse" problema.
"Esse problema" foi tema da sessão seguinte: percebeu uma bolinha nas costas enquanto fazia massagem, agendou uma consulta para o dia seguinte, seguido de exames diagnóstico e retorno com o especialista. Era uma "gordurinha num lugar inadequado", nada preocupante.
Aparentemente o diagnóstico final era o mesmo. Os efeitos em cada sujeito, completamente diferentes.
A permanência da palavra duvidosa causou mais danos na primeira.
A ameaça, como um mar revolto, arrastou seus objetos para longe, mas os devolveu após o fim da tempestade.
" Ainda bem que não era nada mais sério, não sei se suportaria."
De fato não sabemos.
Mas sabemos pela clínica, sempre soberana, o quanto somos capazes de nos reinventar diante da dor, na mesma intensidade que somos capazes de sucumbir.
Esse é o nosso trabalho.
Abraço
Patricia Bader

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

" Eu tenho princípios, normas, ética, caráter" 
Das frases mais usadas pelos políticos corruptos. Parece grito de guerra de facção criminosa. 
Eu mesma tenho um carro popular 2014, flex, em ótimo estado, única dona. Também tenho 18 pares de sapato e 3 chinelos de dedo. Tenho um creme hidratante corporal aroma de macadâmia que é um espetáculo! Tenho uma panela de arroz que faz legumes no vapor e o super grill George Foreman que grelha o hambúrguer enquanto esquenta o pão. 
Ah! E tenho um suporte de celular em forma de mãozinha, mas esse eu não uso; não me adaptei. E um pote de Herbalife Baunilha, me deu gases. Aliás, se alguém quiser, manda mensagem inbox. 
Todo resto eu uso. 

Podiam fazer o mesmo.