quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Ficção

  

Meio dia de uma sexta é um bom horário para iniciar as férias. Passar uns dias longe de qualquer tela deve restabelecer minha paciência com a humanidade. Parece poético dizer que minha matéria prima são as pessoas, mas o contato via dispositivos eletrônicos borrou um tanto as relações; efeitos pandêmicos. Termino o ano com planos ultrapassados, reduzir o tempo aos interessados em levar suas neuroses à planícies mais calmas e dedicar espaço ao ócio. 

Não hoje; tenho uma pilha de burocracias gritando por prazos e cobranças antigas esperando resoluções. 

Uma mensagem no celular desmente meus planos: “Doutora, quem me passou seu telefone foi a doutora Regina pediatra da minha filha, gostaria de agendar um horário com urgência”. 

Os pedidos de véspera de Natal sempre me instigam. São diferentes dos que acontecem nos primeiros dias do ano, época de promessas vazias. Quem pede ajuda no Natal revela um certo desespero, um pedido de medida protetiva para atravessar a época de balanço. 

Bem poderia ignorar a mensagem e deixá-la naufragar na lista de pendências, mas decido responder. 

A Regina sempre faz encaminhamentos precisos, sua análise e sua prática clínica entregam casos com o trauma circunscrito. 

Ligo para a mãe, com preguiça, mas certa de que imprimir a voz no primeiro contato contribui para a construção do trabalho. 

A menina tem quatro anos, passou por uma situação traumática e a família não sabe se o que ela conta é fantasia ou realidade. Os pais parecem devastados; trauma recente. Agendo para a sexta, sabendo do risco de levar a questão para as férias. 

Chego cedo ao consultório, piso na poça de água no estacionamento, já estou atrasada. Abro a porta, acendo a cafeteira enquanto ligo o computador para a série on-line de trabalho. Distraída, esbarro na caneca e inundo a fórmica branca de uma borra quente de café. Escorre pelos cantos, pela parede, molha a agenda e o Seminário 11 depositado no canto esquerdo da mesa.  Respiro fundo e atribuo o gesto a pressa. Gasto um pacote de papel toalha para diminuir o dano, inutilmente. Atendo dois pacientes, faço uma reunião na posição passiva enquanto a manicure pinta minhas unhas de magenta. Depois gasto mais um par de horas finalizando relatórios e outras burocracias que uma secretária daria conta. 

Tenho uma hora de almoço e nenhuma fome. No frigobar uma maçã murcha, uma água de coco e um pacote de bolacha velha. Decido ficar por ali mesmo, estou sem paciência para os outros. Deito no divã e termino o livro com o auxílio do despertador; meia hora de cochilo deve ajudar a atravessar o último período de trabalho. 

Quinze minutos antes do horário combinado levanto, escovo os dentes olhando no espelho, o botox ficou bom, mas não liquidou a ruga na minha sobrancelha direita. A dermatologista falou que ali só preenchimento, mas a ideia de injetar um líquido estranho na testa não me parece confiável. Ajeito o cabelo, penso em passar um batom, mas lembro que a máscara me liberta destas vaidades vulgares.

Espirro um desinfetante na sala, por precaução higienizo os braços das poltronas e sento com as pernas cruzadas em posição de analista, a quarentena me fez esquecer o semblante de suposto saber necessário para as análises. 

Eles chegam pontualmente e juntos, não raro preciso esperar os casais se encontrarem na sala de espera antes do início da sessão. 

Cumprimento padrão, ofereço água e café, não aceitam, dirijo os a sala e as poltronas destinadas aos pacientes. Estão visivelmente assustados, checo a caixa de lenços e o relógio, pressinto que essa conversa levará tempo. 

Maria Clara tem 4 anos, quase 5, filha única, frequenta a escola desde o berçário. Aprendeu a falar cedo, geniosa (como a descrevem), decide pelas roupas, demonstra preferências por brinquedos, comidas e lugares. Nomeia os melhores amigos, já consegue se virar na piscina, sabe o nome da rua e do bairro que moram. Os pais trabalham, a mãe de mais, o pai de menos. A menina tem (ou tinha) uma rotina de mini executiva: escola, natação, dia de clube, horário de parquinho. A babá, Nena, trabalha pra família desde que Maria Clara nasceu. Dormiu no quarto com a menina até os dois anos, depois se mudou para um cômodo na lavanderia. São (ou eram) íntimas. 

A babá acompanhava a criança em todas as atividades. Sabia o nome das amigas, cortava o bife no tamanho certo, coava o suco de laranja, era uma mecenas física, social e psicológica da criança. Colocava para dormir e contava histórias de ninar todas as noites. 

Os pais participavam das atividades, mas confiavam tanto na relação das duas que não se incomodavam com a presença constante de uma estranha familiar pelos cantos  da casa. 

Um dia inteiro depois de um dia qualquer estranharam o silêncio dos cômodos, cena improvável. Primeiro pensaram que foram terminar a brincadeira no prédio de uma amiguinha, depois talvez uma tarde demorada na casa da avó; o telefone da babá não atendia, as mensagens lidas sem respostas, nenhuma hipótese confirmada e, com o avançar  da hora, suspeitaram pelo trágico.

Como dois neuróticos funcionais, recorreram a ordem suprema: delegacia de polícia. Desespero e informações detalhadas, o delegado contribuiu para o que seria a pior noite de suas vidas. De acidentes a sequestro, todas as hipóteses foram levantadas para iniciar as investigações. 

Discurso desordenado imerso a um mar de lágrimas, me contaram a trajetória infernal das horas seguintes. 

Percebi que estava na mesma posição há quarenta minutos quando minha perna direita adormeceu e começou a doer. Pensei em descruza-lá, talvez mudar de lado ou simplesmente pousa-las paralelas com os pés no chão. Não tive coragem. Permaneci assim até um momento em que a mãe, tamanha angústia, insinuou vomitar no tapete. Precipitei a caixa de lenços e em seguida ofereci a garrafa de água disposta na minha escrivaninha. 

Ela aceitou, deu um gole tão intenso que pude escutar o movimento da laringe decidindo se mandava o líquido para o estômago ou para o pulmão. O pai, ansioso, chacoalhava as pernas desordenadamente. Olhou para o relógio, para a mulher e para mim. Avisei  que tínhamos tempo, ajeitei as pernas, lembrei da conversa pelo celular, a menina estava com eles, foi a Regina que encaminhou, tinha algo de fantasia ou realidade; eles chegariam a questão. 

Enquanto esperavam por alguma notícia da polícia, parece que se empenharam por aniquilar o casamento. 

Pelo que pude testemunhar por ali, na tentativa de exaurir o horror das fantasias sobre o sumiço da filha, não faltaram todos os ingredientes nocivos à qualquer relação: desespero, raiva, acusações e revelações.

Até ali sabia dos atos prodígios da menina, da complacência paterna e da devassidão materna. Por alguma razão demoraram a revelar um acontecimento, talvez estivessem na fase dos efeitos que um hecatombe pode provocar; terra arrasada sem parâmetro para reconstrução. Talvez duvidosos de suas hipóteses, incrédulos de sustentar como verdade aquilo que não encontra correspondência na realidade. Ou talvez não houvesse um acontecimento. 

Enfim, após uma caixa de lenço e hora e meia de fragmentos desconexos perguntaram se eu seria capaz de dizer sobre a verdade que habita o discurso de uma criança de quatro anos. 

A verdade só pode ser dita nas malhas da ficção e nisso as crianças são mestres, falei encerrando a conversa e restabelecendo antes de partir o interesse pelas narrativas. 

Combinamos um novo encontro para depois das férias. 

 

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Dos elementos mágicos da masculinidade. 

A barba. 

Queria - do verbo invejar - ter um elemento capaz de me transformar, estruturalmente, em uma semana. 
Os homens (e suas toneladas de poros e folículos e testosterona) não só tem, como usam com a mesma despretensão  que troco de sapato. 
De um encontro a outro, transformam-se de príncipes anêmicos a bárbaros sanguinários. 
Reparem: um dia estão lá, com cara de mísero abatido, tipo cachorro sarnento, de pele pálida, sem vigor, desprovido de qualquer potencial desejante. Vira a lua, lsurge uma má intenção na rebeldia peliana, acompanhada de um olhar misterioso. Pouco tempo depois, voltam em posto de combate, capazes de liquidar na unha, qualquer resquício de insegurança. 
Pêlo na cara regenera o moço do carrinho de churrasco no maior barbecuer dos realitys shows. O aspirante a filósofo no maior pensador da pós-modernidade. O ator mambembe no verdadeiro Paul Newman das telas (aliás, vocês já viram uma foto do Paul com barba). Tira o guardinha da rua do posto de soldado raso e eleva a patente de atirador de elite da SWAT. 
Uma barba bem apresentada é capaz de fazer uma mulher tomar uma overdose de Nespresso apenas para admirar George. Aposto que faria fila no gelo para ajudar Di Caprio na luta contra um urso faminto. 
Até Freud foi favorecido pela condição; Marta, enciumada pelo mimi do marido com a tal da Salomé, mandou ele tirar; ganhou ombros e ele seguiu barbudo durante 24 volumes. 
Quero ver mulher conseguir tal façanha: nem lipoaspiração , botox , peeling de luz pulsada, faceta de porcelana (de canino a canino), retoque na raiz e cinta liga são capazes de nos transformar de gata borralheira a Bela Adormecida em 5 dias. Vai inchar, inflamar, descascar pra depois surtir efeito. 
Agora homem, além de tapar imperfeições e espinha encruada, ficam gatos! 
Bom, eu sigo aqui admirando o efeito extreme makeover, achando amigo-irmão com cara de Falcon e invejando, deliberadamente, a operação mágica de um punhado de pêlos. 
PS: Antes que algum amigo de plantão interprete meu texto como um resquício edipiano, informo: apesar da barba de papai, sua napa, sua careca, sua baixa estatura, seu humor do cão e seus traços familiares tornam sua floresta selvagem borrada pelo Grecim 2000, alvo de repulsa e não admiração.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Feriado

Costumamos reunir a família para comemorar o aniversário dos meus sogros, ambos com 86 anos; quatro dias é a diferença de idade entre eles. Por apenas esse intervalo de tempo, o homem torna-se mais velho do que a mulher. Isso nunca foi motivo para mais ou menos respeito: sendo homem ou mulher, velho ou novo, ensinaram aos filhos e aos netos a importância do cuidado ao próximo.


Decidimos alugar uma casa de campo em um condomínio no interior do estado. Conhecemos o lugar por intermédio de amigos. Trata-se de um recanto privilegiado, com pouco mais de 500 casas que compõe o cenário ideal junto a mata virgem, a represa, bucólicos saguis e  legiões de quatis.
 Lá, crianças passeiam livremente com suas bicicletas, velhos caminham pelas ruas com tranquilidade, mães empurram os carrinhos dos seus bebês, as casas prescindem de portões como um convite a civilidade.
 Muitas são as áreas comuns: quadras de tênis, campos de futebol, parques infantis com monitoria especializada, espaços para eventos, restaurante e uma náutica para os mais bem aventurados. Para o conforto e segurança da população, o espaço conta com rigoroso sistema de monitoramento, portaria com funcionando contínuo , guardas fazendo a ronda por terra e água, controle de velocidade com radares eletrônicos, posto de gasolina e um equipado posto médico capaz de resolver problemas complexos.
 A natureza, a presença dos amigos, a liberdade proporcionada por tanta segurança convida a voltar. Já estivemos aqui em outras ocasiões e sempre ponderamos a ideia de mantermos ou não uma casa fixa.
 Alugar um final de semana por mês? Ou buscar um casal de amigos, talvez dois, para dividir uma temporada? E se fizermos uma aposta por um ano? Será que viríamos? E as atividades em São Paulo? Mas tem o voley com o pessoal do bairro aos domingos? E também  nossos pais? Mas é tão tranquilo! E seguro!
 Meus sogros aproveitaram muito o passeio. Estávamos receosos por modificarmos a rotina deles por quatro dias - cansam com facilidade e recente a proteção do ambiente doméstico - mas a presença das crianças, as boas conversas , a comida caseira e a atmosfera do local contribuíram para a experiência de bem estar.


 Sempre nos programamos para esse passeio: costumo caminhar à exaustão com as amigas, as crianças andam quilômetros de bicicleta, intercambiando pelas  casas de novos desconhecidos, meu marido consome um pacote de bolinhas no tênis todas as manhãs. Montamos um cardápio caprichado, trazemos boas bebidas e bons livros.
 Na quarta, um pouco antes de pegarmos a estrada, passei na editora para me abastecer da última indicação literária: Equador, um romance escrito por um autor português, Miguel Souza Tavares, sobre "um retrato primoroso dos últimos anos da monarquia portuguesa".
 O desconto garantido a professores, somado ao desejo de possuir todos os livros, fizeram com que minha sacola e conta pesassem um pouco mais: comprei mais um exemplar da nova tradução do Freud, um Manoel de Barros, um livro de receitas e Amós Oz em Como curar um fanático.
 Das mais gratas surpresas que tive nos últimos tempos, Amós Oz me fez ignorar a caneta (pois o livro mereceria ser grifado inteiro),  lê-lo em voz alta (para qualquer um que passasse por perto) e arrepiar do começo ao fim.
 Composto por ensaios - o último deles escrito após o ataque à Paris em 2015 - se propõe a reflexão (e saída) sobre a guerra eterna entre israelenses e palestinos. No entanto, o alcance das discussões inunda a mente de associações a respeito das relações humanas, seja lá ou aqui na esquina.
 Defende que a guerra e a violência são frutos das agressões produzidas e disseminadas há séculos, que a prática de infligir a dor ao outro cria a cultura da guerra. A saída não seria o amor pelo próximo, mas sim a paz.
 O amor serviria a paz, se tomado, antes de mais nada, por um profundo senso de justiça, por um necessário senso comum e pela tolerância em estabelecer acordos de compromissos que por vezes podem ser muito dolorosos, mas não fatais. Acrescenta que a única maneira de acabar com idéias ruins seria a proposta de idéias melhores oferecidas através do diálogo, não da violência.
 Equador, ainda em leitura, atende a proposta do final de semana: gostoso como caldo quente em noite fria, mas deixa o posto de melhor - conveniente como água fresca no deserto - para Amós Oz. Leiam.


 Nossos amigos lembraram que no feriado ganharíamos de bônus a tradicional festa junina do condomínio; ocasião esperada por todos que reuniu no último ano 3500 pessoas.
 A administração (profissional) organiza em um espaço comum e cercado, um arraial digno das quermesses de São João do Nordeste. Comidas típicas de qualidade, bebidas bem temperadas, barracas de prenda para a molecada, fogueira gigante e boa música caipira. O ambiente, reconhecido por familiar, agrega pessoas de todas as idades em busca de confraternização. Tudo mostra-se impecável: a venda antecipada de ingressos e fichas de consumo, o toldo protegendo das intempéries do tempo, o gerador dando suporte ao inesperado, os seguranças circulando, a ambulância à disposição, até o projeto social representado pela ONG disposta a arrecadar fundos para ajudar a população carente do entorno.
 Eu e as crianças fomos cedo. Mesmo escuro - porém imbuídos por um espírito aventureiro, certos de que o grande perigo seria apenas uma macaco arteiro - decidimos cortar caminho pelo atalho no meio da floresta. Os outros adultos foram depois: esperaram o anúncio do campeão da liga dos campeões.  Quando chegaram, buscamos abrigo para os velhos. As crianças, já em posse das fichas, disputavam prendas baratas na barraca da pescaria.  Apenas dois peixes, verdes - em meio a dezenas de outros de outras cores - garantiam a escolha do melhor brinde: uma bola de futebol. Esses ficavam a distância mais distante dos pescadores que reivindicavam o acesso. Meu caçula, de dorso pendurado no muro de madeira, sem conseguir o que queria, convocou o irmão à ajudá-lo. De pouca idade,14 e muita altura, o adolescente esticou o braço com facilidade e pescou a desejada bola vermelha. Orgulho do irmão mais velho e a sensação de vitória!
 Os menores, um garoto de 10 e duas meninas de 9, vieram seguidos do mais velho ao nosso encontro mostrar o troféu e felizes, partiram, em busca de mais aventura.
 Encontraram.
 Uma de nossas amigas apareceu aflita e apressada gritando por ajuda. Algo havia acontecido com o meu filho mais velho, talvez uma confusão, não sabia direito.
 Imediatamente pensei que havia se machucado - o lugar contava com escadas, morros íngremes e chão batido revestido de pedregulhos.
 Por mais que procura-se, não o via, tampouco os pequenos. Os amigos formam chegando e dizendo que agora estava tudo bem. Mas o que aconteceu? Onde ele estava? Sabia que estava protegido pelo próprio ambiente, mas queria vê-lo e entender o ocorrido.
 Em meio à multidão, ao meu lado, uma homem de 30 anos, baixa estatura, cor de pele clara, olhos claros, acompanhando de mulher e filha pequena, estava agitado contando para um outro o incidente: " o guarda falou que foi ele que pegou a ficha, caiu no chão, ele pegou, eu fui até lá e joguei ele no chão, fiquei com raiva, ataquei pelas costas, mas quando vi era só um menino" .
 Me apresentei como a mãe do menino, meu marido que vinha um pouco atrás também. O homem, tentando recobrar a compostura, insistia na história que o garoto pegou as fichas que caíram do seu bolso no chão, enquanto ele buscava no bolso da calça o celular para tirar uma foto da esposa com a filha.
 - " As fichas estavam perto de mim, eles pegaram e saíram"
 - " E quem são eles?!"
 - " Um grande e um menor".
 - " E cadê o meu filho?!"

 Um outro que passava avisou que o guarda levou para a ambulância. Corri até lá e estavam os dois sendo acudidos pelo enfermeiro. Estavam bem.
 O menor, chorando de nervoso, pediu para contar o que houve: " Ohmãe, agente tava brincando e viu uma ficha no chão, não era de ninguém, estava no chão, nos pegamos e fomos pra pescaria com a meninas, aí eu vi as meninas saírem correndo e olhei pra trás e o Léo tava no chão e um homem gritando que ele tinha roubado, encima dele, nervoso. Aí eu comecei a chorar, eu fiquei com medo do homem bater no Léo, e ele não parava de gritar e o Léo falava pra ele parar que ele tinha 14 anos, aí ele parou e o guarda veio ajudar o Léo e trouxe agente pra cá. Eu fiquei com medo."
 O maior, contou a mesma a história. Acrescentou a cena o ato de agressão: estava em frente à barraca de pescaria com os menores, quando sentiu uma pessoa puxar seu rabo de cavalo ao mesmo tempo que puxava seu corpo para trás . Por instantes achou que poderia ser uma brincadeira ou talvez um encontrão, mas assustou quando um homem, adulto, se posicionou em cima dele e começou a gritar "você roubou, você roubou" e então, assustado respondeu "não roubei, calma, calma tá aqui, calma" e nada fazia pará-lo, foi então que disse: "eu tenho 14 anos!"
 Curativo feito, choros contidos, voltamos ao local do acontecimento. O homem adulto estava lá . Meu marido muito nervoso, controlou com rigor o desejo de partir para o ataque. Questionamos o ato numa discussão calorosa:
 - " Como você se chama cidadão?"
 - " Guilherme."
 - " Guilherme, você tá louco?! Tome aqui suas fichas."
 - " Foi um ato deliberado, ele pegou as fichas do chão!"
 - " Exatamente, do chão, não de ninguém! Ato deliberado foi o seu, agredir pelas costas um menor "
 - " Mas eu achei que ele tinha 20 anos!"
 - " E você bate pelas costas em alguém de 20 anos?!"
 - " Desculpa, eu me excedi, perdi a cabeça, desculpa."
 - " Você foi um covarde, bateu numa criança pelas costas, você tem uma filha pequena, é isso que vai ensinar pra sua filha? Covardia?"

 Discussão finalizada em ato simbólico, meu marido deu uma cusparada em outro punhado de fichas e entregou para o cidadão.
 Visivelmente transtornado pediu desculpas mais uma vez e se afastou. Sua mulher, instigando a cena, grita em minha direção:
 " O outro rouba e acha que tem razão, vamos embora."
 Se meus ânimos estavam controlados, despertaram como vulcão. Em dedo em riste, milímetros daquele narizinho finalizado no botox, exigi reparação, do contrário, quem resolveria aquela cena seria a polícia, adulto que bate em menor , ainda mais pelas costas é bandido e bandido deve ir pra cadeia.
 A covarde complementar abaixou a pestana e partiu, pelos fundos.
 Restou um retro gosto de mal estar no que sobrou da festa. Os amigos foram trazendo pedaços de relatos para compor a cena. " O cara tava bêbado . O amigo dele mandou ele ficar onde estava. Ele tentou amenizar e disseram para ele que o menor tinha pai e mãe e era melhor ele esperar. Ele queria arrumar confusão. Ele não é daqui do condomínio".

 Fato é que nada justificava.
 Também não justifica uma certa paralisia das pessoas em volta.
 Estávamos protegidos pela cerca, pelo passe, pelo acordo, mas não.

 A ilusão do ambiente seguro foi rompida pela presença do homem, pertença ele ou não aquele lugar.
 Ao homem que não participou do pacto de paz, que não assinou o compromisso de civilidade, que decidiu pela bem individual em detrimento do bem coletivo, que deliberadamente concluiu que crianças que pegam fichas de papel do chão - cena repetida à exaustão durante a festa junina por crianças e adultos que cruzavam com um papelão de 0,50 centavos caídos no chão - são bandidas que precisam ser punidas no susto, que se autoriza a bater em alguém suposto de maior pelo tamanho do corpo, que não se constrangi na presença de uma filha de colo no colo, que não usa da palavra para resolver impasses, que se encoraja pelo uso de álcool, que cogita escapar do ato de reparação, que acredita que não haja lei, que não reconheça a lei e seus efeitos na organização do grupo.

 Felizmente tudo ficou bem.
 Foi só uma cena.
 Meu filho conseguiu impor palavras onde prevaleceu a violência.
 " Calma, você me jogou no chão, não é assim que resolve as coisas."

No mesmo dia, um morador do condomínio, homem mais velho, amigo nosso, pediu desculpas ao Léo em nome das pessoas de lá.
Ato de coragem falar por todos.
Certamente ele é um homem corajoso.

Queria ter dado o livro para o moço Guilherme, não deu.
Com os meus filhos pude ler e conversar.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Do dia

Munik venceu o Big Brother tornando-se a mais famosa milionária e meio do dia. A porta da casa foi quebrada por fãs e parentes fervorosos. Bial, coitado, perdeu os óculos. Perder os óculos é uma tristeza sem tamanho, ainda mais se você só tem um óculos e naquele momento nenhum. Eu só tenho um e não ando com reserva. O dia que esqueci os meus no trabalho - estava de lente - em casa ouvi música e fui dormir cedo. Fico feliz por Munik, mesmo não sabendo absolutamente nada sobre ela. No resumo da notícia, soube que manteve a discrição durante o jogo, ensaiou um namoro sem efetividade e fez uma fala política revelando que a expressão "nega" não revela preconceito. Entendo Munik, às vezes uso; uma antiga sogra também usava, me chamava de "neguinha" mesmo minha pele fazendo bolhas com protetor 70.  

Bolovo invadiu a gastronomia cinco cifras da cidade de São Paulo. Nunca comi bolovo, mas tenho vontade, ainda que não goste muito nem de ovo nem de bolinho de carne. Depois de partido fica bonito de ver: a gema mole derretendo lentamente para a borda da carne rosa. Dá um charme quando salpicam orégano e pimenta do reino. A primeira vez que escutei sobre o bolovo foi no clube. Um amigo do meu cunhado falou da iguaria encontrada num pé sujo do Largo da Batata. Pareceu meu underground, coisa de metaleiro encardido. Descreveu a confecção e a forma de apreciação com tanto empenho que me deu até tesão. Desejo vida longa ao aperitivo. 

Tati Bernardi e Ramon Nunes Mello confirmaram a Flip. Fiquei feliz por eles. Gosto da Tati porque ela escreve divertido inspirado pela mais nobre das razões: a própria neurose. Quando leio Freud e Lacan e depois a Tati, uso de exemplo sobre as 
configurações psicopatológicas. Além do mais, como eu, é nascida e criada na Vila Carrão; cada vez que conta dos pais ou da infância/adolescência lembro que quero perguntar para o meu pai se ele conhece o pai da Tati, mas sempre esqueço. Ramon eu não conhecia, achei bonito o rapaz. Fotógrafo de jornal faz aquelas fotos-montagem que a pessoa fica em evidência sob a paisagem. Na entrevista revela espiritualidade, interesse pela cultura indígena e o uso de ayahuasca: " foi depois do HIV". Ele não associou, mas me pareceu, como Munik, uma posição política contra o preconceito. Descobri que tem um livro chamado Poemas tirados de notícias de jornal, gostei do título. Em todas as oficinas de escrita criativa que fiz, os professores propuseram um exercício usando essa técnica. Na última vez, tive que escrever sobre o anúncio de uma prostitua que atendia num cortiço do baixo Augusta a 50 reais/hora. Vou lê-lo. 

Mais adiante soube que Carlos Alberto, aquele da Praça é Nossa, participou de uma sátira do próprio programa. Dele, sei que faz o mesmo desde que nasceu. Também casou umas vezes, teve uns filhos e uma das ex-mulheres era uma dessas Mulheres Ricas. Nunca gostei da Praça é Nossa, mesmo. Nem era preconceito contra TV de segunda categoria, era falta de afinidade. Outras coisas dessa TV eu até já vi: Casa dos Artistas, Roletrando, Qual é a música?. Uma vez eu participei de um programa lá. Dancei representando as Irmãs Casadei, escola de balé da Vila Carrão (será que a Tati conhece?). Eu era a nona, quatro de um lado e outras quatros do outro, eu no meio. O Bozo, Papai Papudo, Vovó Mafalda é aquele mau humorado atrapalharam toda apresentação. Dancei chorando, mas fui até o fim amiguinhos.  

Da Liliaex li a tirinha. Gosto do programa da GNT, mas gosto mesmo do João Vicente, o irmão gostosão do protagonista. Aliás, alguém viu JV no Papo de Homem falando sobre sexo oral. Acho que até minha avó, aos 9.1 com Alzheimer deu uma reanimada. Recomendo. 

Por fim soube que o Mr. Catra ganhou um programa no Multishow. Se não me engano ele é aquele cantor de rap? funk? que tem vários filhos com várias mulheres e consegue viver em família mosaico poligâmica sem stress. Do canal suporto a sequência de musicas, um top five atual, mesmo que não goste do estilo, fico até o final por pura curiosidade. Quem será a número 1? No fim é ou o Luan Santana ou o menino Bierber - Sorry. 

...

Hoje li o jornal do avesso. Quando li pedaladas fiscais dispararam sob Dilma, Lula faz planos para atuar no governo, gripe B causa danos como a suposta morte da menininha de 8 anos, comecei a chorar. O moço da padaria, em posse da minha média e pão na chapa, ficou preocupado. Perguntou se tava tudo bem, se precisava de ajuda ou se eu queria trocar o pedido. 
Chorei mais e pedi um pouco de esperança, mas ele, bem clichê, trouxe um mini sonho - cortesia da casa. 
❤️

domingo, 3 de abril de 2016

Dia de domingo

Os excessos do final de semana estão diretamente ligados a relação abusiva com a semana de trabalho. Vai me batendo uma saudades dos amigos, da agenda frouxa, da picanha mal passada e da cerveja gelada que me impulsionam a correr mais e mais rumo a sexta à noite. 
As cinco começo a salivar, meus pés incham sedentos pelas Havaianas, a seleção Spotify entra automaticamente na playlist Churrasco e Violão, o despertador do celular trava e o único barulho permitido é do cachorro brigando com a formiga no quintal. 
Dia desses dei uma entrevista para alguma revista barata semanal sobre cinco dicas de como ter uma vida saudável conciliando trabalho e lazer: não cumpri nenhuma. 
Enfim, a sexta chegou. 
Criei um ritual para diminuir a gana e garantir a sobrevivência dos dias a seguir. Tento dar uma caminhada cardiopata, gasto uns minutos alongando, tomo banho gelado esfoliando cada poro do corpanzil, dai hidrato por dentro e por fora e me jogo. 
O problema é que o sono da sexta está acumulado a cinco dias: uma cerveja depois e eu quero cama. Nenhum outro dia durmo tão cedo, mal o Bonner fala boa noite eu estou roncando de boca aberta. Morta! 
No sabadão, livre de qualquer cobrança, acordo as 6h20. Poderia dormir até o cheiro da macarronada da dona Luci (minha vizinha) invadir meu quarto, mas não consigo. Levanto para um xixi, acredito que livre da pressão voltarei a dormir. Rolo para lá e para cá, tento um copo d'agua, mudo de cama, talvez a do quarto de hóspedes esteja mais fresca. Arrisco o sofá e as 7 assumo a derrota: vou a padaria, passo no mercado, no açougue, na frutaria, abasteço, troco óleo, deixo a roupa na lavanderia, pego a comida do cachorro e as 10 encontro o primeiro se espreguiçando e reclamando de cansaço. 
Demoramos hora e meia para definir um roteiro; difícil conciliar tantos interesses: definimos pela bicicleta no parque, uma passada na livraria, almoço simples na casa dos amigos a tempo de voltar para o aniversário do vizinho. 
Só que não! Queremos cinco voltas, muitos livros, conversa demorada a tempo de atrasar para o aniversário do vizinho. As crianças ficam perdidas nas casas dos amigos, prometo buscá-los cedo, pois pretendo ajudar na lição antes do almoço.  
Bom, diante de tantos afazeres tenho sono, volto a dormir menos cedo do que ontem, mas longe do meu desejo semanal: começo a semana com a promessa das 8 horas por noite e finalizo com a clemência das 6. Banho quente, Neosaldina, amanhã fico até mais tarde. 
Fato, acordo as 7h20. Porque meu Deus? Porque? Só quem acorda cedo no domingo são pessoas com propósito ou obrigação. Tenho amigos que pegam no batente antes do pão assar, outros mais xaropes porque vão fazer um pedal até Piracicaba para treinar pra maratona de Berlim, tem uns que precisam ler Heidegger no original pro pós doc, mas eu, já tinha liquidado a agenda doméstica na madrugada do sábado, minha caminhada terceira idade duraria pouco, de importante precisava acabar o livro novo da Tati Bernardi e talvez levar o cão para queimar a grama da vizinha. Até ele deu uma rosnada tipo taloucasualouca hoje é domingo! 
Resta explicar como ansiedade pré-segunda.
Assim foi, fiz o previsto no parágrafo de cima, dei uma arrumadinha na cozinha, estendi as toalhas, mais uma arrumadinha nos quartos, uma vassoura rápida pela casa e fui buscar as crianças. Cheguei na amiga as 945, quase 10. Com criança pequena, sabia que seu sono já tinha acabado a tempos. Subi rapidinho prum café e lá fiquei até as 11. A lição já tinha ficado pra tarde. Senti uma leve pontada no estômago; tivesse ficado só conversando, mas a bendita mania de não desgrudar do papo e estendê-lo por mais um café garante dinheiro pro meu clínico geral. 
Já em casa, preparando o almoço, interrompo o cozimento do angu quando a outra amiga telefone e convida: vem só dar uma passadinha aqui no clube até os meninos acabarem o jogo. Lá fui, o jogo mesmo já tinha acabado e passado meio dia e meio já da pra abrir só uma antes do almoço. Saímos de lá as 14h30 quando as criancinhas ensaiaram pedir o segundo salgadinho: deixa disso menino, tem comida lá em casa! 
Comida e mais amigo que vem para um oi e termina cochilando no sofá. 
Do tempo de assar o bife ancho e despedir com só mais um café foram três horas; um tremendo exagero para quem almoça em quinze minutos durante a semana. 
Se eu fosse psicóloga diria que trata-se de apego crônico. Nunca vi; tudo precisa ser vivido com muita intensidade. Gente civilizada fica pouco, faz visita social de 50 minutos igual sessão freudiana e vai embora. 
Mas não. Já que toca o telefone de novo e vem a vizinha teen chamar pruma volta na pracinha com a cachorrada. Coisa rápida. 
Na ida os bichinhos foram fofos, quase analisados, mas bastou soltar a coleira para mostrar o verdadeiro eu. Feraz indomáveis travestidas de pets domésticos. O primeiro correu, na sequência a primeira criança, logo em seguida o segundo e, consequentemente a segunda criança. Um pouco mais adiante, ágil como o cruzamento de uma gazela na savana com uma gralha com hemorroidas, eu. A tia gorda pedindo ajuda para os transeuntes para salvar os cachorros e as criancinhas, não necessariamente nessa ordem. As crianças choravam e corriam, os peludos latiam e corriam e eu tentava respirar e correr e gritar. Acho que de exaustão pararam, não as crianças, os cachorros. Fiquei tão estressada que amarrei todo mundo na coleira, as crianças e os cachorros, e voltei para casa. Passei na vizinha para entregar a cria e aceitei o convite para mais um café. 
As 7h30 lembrei da lição, não a minha. Da fração, a correção da autobiografia, a exigência de um inglês enferrujado - fala sério, quem sabe prontamente o que é badges e stationery, faltava ainda um jantar, dois banhos e a lista de obrigações da semana. 
As 10 todos na cama. Eu insone, vendo só um episódio da série, só uma postagem do face, só a escrita de uma história, só ... 
Puta merda! Meia-noite! Amanhã o capeta do rodízio me acorda as 6. 
Juro que amanhã durmo antes das 9. 

segunda-feira, 21 de março de 2016

(In)defensável

Minha primeira confissão foi baseada numa mentira.
A culpa foi do padre que exigia pecados; inventei. Algo como não ter feito a lição de casa e batido na minha irmã.
Mais tarde, quando meus pais perguntaram se eu havia ido a escola, preferi não decepcioná-los; fui até a porta e de lá pro Playcenter.
O mesmo sobre meu estado alterado de consciência: " você está bêbada garota?!". Não, não estava. Uma dose de San Remy causa enjôo e ânsia de vômito, o que não quer dizer, necessariamente, bebedeira.
E teve aquele zero de física e a acusação indevida de cola; eu estava compartilhando informação com a colega desamparada. Bem diferente.
Depois uma curiosidade excessiva sobre os namoros  - "foram onde?" , "no cinema, depois num barzinho, depois o povo quis comer algo", mesmo passando a noite no motel; teve filme, bar e filet a cubana para pernoite.
Ai, o cheiro de cigarro: "putz, fumam a beça na balada!"
E sobre o totó no carro da frente: " o çara deu uma freada antes do farol ficar amarelo."  Fato.
Crente estar livre de tanto interrogatório, vem o marido querendo saber a que horas vou chegar: "entre 10 e 1230, antes da uma tô em casa".
E os filhos insistindo numas de verdade: "ohmãe, fala sério, quando eu vou ganhar o jogo novo do Ps? Você não tá dizendo isso só praeu parar de falar, né?!". Imagina! Que tipo de mãe faria isso?!
E a empregada cobrando pela enésima vez a borrachinha da panela de pressão: " sabe que não tinha na feira. Eu não vi!"
Ou a mensalidade do clube: "Fiz o doc ontem, deve cair amanhã ou depois, é o prazo do banco, não é?! Putz! Anotei o cnpj errado, pode repetir?"
E teve aquele resfriado quase pneumonia que me impediu de comparecer à reunião ou entregar o relatório em dia: fiquei péssima, por pouco não fui parar no pronto-socorro.
E seu guarda, talvez o senhor não acredite, mas troquei de bolsa e a habilitação ficou na carteira da outra, se me der um minutinho eu pego e já volto.
Ademais, todas as acusações foram indevidas.
Protocolo minha defesa no prazo e de forma sucinta: uma lauda como previsto.
Não! Não especificaram o tamanho da letra. O pedido era uma lauda.
(...)
Já tem gente que precisa de 68 páginas, fonte Arial, tamanho 6, espaço simples, sem parágrafo.
(...)
Não sei se dá pra confiar em que tem tanto para se defender.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Rímel

Já falamos sobre a conexão neurológica entre os cílios e os pelinhos do nariz?
Explico: na formação do tubo neural do feto durante a gestação, ocorreu ao cromossomo 2 , responsável pela pelugem pré-histórica do homos atualis, se responsabilizar pela raiz homóloga do nariz com os olhos. No entanto, sobrecarregado de trabalho (haja pêlo!), o cromossomo apressado fez um remendo: deixou que os cílios e os pelinhos do nariz formassem um fio único. 
Não haveria problema, não fosse a chegada no universo do Monsieur Eugene Rimmel, perfumista francês do século 19, preocupado com os odores e apresentação estética do seu povo. 
O fofo, à toa na vida, inventou um mini pincel que penteava os pêlos dos olhos dando as mulheres um ar de donzela romântica. 
Tamanho foi o sucesso que passado um punhado de anos o rímel se tornou item de higiene: ninguém sai de casa sem escovar os dentes, passar protetor solar e uma máscara para os olhos. 
Revolucionário. 
(...)
Em outro lugar do planeta, um bocado mais à frente do século 19, um moço governante de grande cidade decidiu que só poderíamos andar com os nossos carros, livremente, 4 dias da semana; o 5º sofreria restrições: bem cedo, no miolinho do dia ou bem tarde, do contrário multa neles. Montou um exército amarelo com armas em punho - papel e caneta - e lascou bala.
(...)
Circo armado: pular da cama antes do sono terminado para fugir dos guardas somada a necessidade cristã de esticar os cílios é certeza de acidente. 
Aconteceu hoje: atrasada para o primeiro compromisso com o rosto inchado da noite mal dormida, queimei a língua com o café quente, enquanto passava um reboque na cara; esqueci que quanto mais eu pincelava o rímel ultra-potente-doze-camadas-a-prova-dagua-vire-uma-estrela-hollywoodiana, mais eu estimulava os pelinhos do nariz, puxada de cá, cosquinha de lá, 
espirrei: alto, sonoro, repleto de perdigotos e lágrimas. 
Resultado: ganhei uma tatuagem versão Emília Clown Deprimida a um minuto de tomar uma multa e estourar meus pontos na carteira. 
Fui. 
Borrada e revoltada. 
E passei a manhã explicando que não era alergia, nem briga, nem doença rara: era a porcaria do rímel com duração 24 horas. 
(...)
Em tempo: não tem rímel que disfarce a cara de pau dessa gente de Brasília. 
Oremos! 

domingo, 13 de março de 2016

E também teve a caixa do supermercado, sofrida no texto obrigatório: cartão fidelidade? cpf na nota? vai querer sacola? quantas? você gostaria de doar um ovo de páscoa para a instituição das crianças carentes? forma de pagamento? débito ou crédito?
Ops! Tem frase nova no script. Doar ovo instituição criança carente!?
" Não. Primeiro eu vou arrumar dinheiro para as crianças carentes da minha casa e depois, se sobrar, eu dou pra essas ai."
" Não! Porque seu chefe que é rico não doa?!"
" Escuta, que instituição de criança carente é essa?"
Decidiram ler o folheto.
A campanha, chamada Páscoa Solidária, propunha a doação do valor de um ovo da marca da rede para crianças carentes atendidas por instituições não reveladas.
Pareceu negócio arriscado em época de Lava Jato.
Dinheiro que pode virar ovo, doado para desconhecido, apelando para a culpa católica dos clientes.
Não sei não!

Fila

Domingo é dia de fila longa na padaria. Famílias unidas em busca do pão fresco, forçam intimidade. Foi o caso da mãe do Artur.
Logo à frente estava o pai do Joaquim, garoto de dedo gracioso que furou o pacote de maria mole.
" Não pode Joaquim! Vem cá e sossega!"
Empoleirou o pequeno no colo e seguiu esperando o chamado caixa-livre.
Já a mãe do Artur, sem colo para o filho, seguia equilibrando o saco de pão, o queijo prato, o presunto, o litro de leite e o pote de requeijão. O garoto, de olhos curiosos, investigava todos os itens da padaria.
" Que gracinha! Quantos anos ele tem?"
" Obrigado. 2 e 4."
" Ah! São terríveis nessa idade! O meu já tá com 3 e 1, muito melhor! Mais obediente! É só falar que ele para. (...) Artur, vem cá! Fecha a geladeira meu lindo!"
" Que bom!"
" Você vai ver como muda. Artur! Não fura o pote de yogurte, agora eu vou ter que pagar!"
" Sei."
" Parece que amadurecem ... Eu já falei menino, larga esse Kinder ovo. Não abre! Poxa Artur, outro chocolate! Meu amor, obedece a mamãe."
O pai do Joaquim apenas sorriu.
" Artur, volta aqui. A-R-T-U-R, não fura a melancia. Eu já falei ... não saia dessa padaria ... não coloca a comanda ai! E agora como eu vou sair?!"
A atendente interviu: caixa livre!
Joaquim já tirava uma soneca no colo do pai. A mãe do Artur insistiu.
"Fique tranquilo, você vai ver como ele vai melhorar logo. Artur ... tira a mão do lixo!"

quinta-feira, 10 de março de 2016

Precisaremos de mais cinco anos de chuvas torrenciais para iniciarmos as reclamações.Até agora todos permanecem educados: ninguém faltou às aulas, tão pouco as sessões, reuniões mantidas, até o Ari apareceu: trocou lâmpada, limpou calha, consertou vazamento do gás. Betania permanece feliz guardando água para reuso. A grama (cortada) no último sábado já cresceu, o pé de manjericão virou um pé de boldo. A parede do banheiro virou um bloco de húmus. Meu cabelo cacheou ferozmente, o cachorro voltou a fazer xixi no tapete do banheiro, cancelei 3 happy hours, minhas relações estão ameaçadas. Aliás, o Zé Maria tem dificuldade para correr? Parece que está apertado para ir ao toalete. É amanhã que acaba a novela? Comecei assistir essa semana. Só chove! E também teve aquela ridícula que cruzou meu caminho logo cedo, lépida, faceira e molhada (de suor), já saindo da academia, de pernas torneadas e músculos definidos com cara de missão cumprida. Já eu, de cabelo Joãozinho de tão encaracolado, com o maldito sapato de camurça impraticável, barra da calça molhada, com os Escritos do Lacan embaixo de um braço e o crachá de doutora entre os dentes, o celular preso entre o ombro e o hipotálamo para avisar o paciente do atraso e 2 dedos da mão direita segurando o diminuto guarda-chuva do Ben 10 que não serve para nada.
Mas não, reclamar da chuva é heresia. Espero que ela continue até transbordar o oceano Atlântico. Adoro dormir com esse barulhinho. 😏