segunda-feira, 21 de março de 2016

(In)defensável

Minha primeira confissão foi baseada numa mentira.
A culpa foi do padre que exigia pecados; inventei. Algo como não ter feito a lição de casa e batido na minha irmã.
Mais tarde, quando meus pais perguntaram se eu havia ido a escola, preferi não decepcioná-los; fui até a porta e de lá pro Playcenter.
O mesmo sobre meu estado alterado de consciência: " você está bêbada garota?!". Não, não estava. Uma dose de San Remy causa enjôo e ânsia de vômito, o que não quer dizer, necessariamente, bebedeira.
E teve aquele zero de física e a acusação indevida de cola; eu estava compartilhando informação com a colega desamparada. Bem diferente.
Depois uma curiosidade excessiva sobre os namoros  - "foram onde?" , "no cinema, depois num barzinho, depois o povo quis comer algo", mesmo passando a noite no motel; teve filme, bar e filet a cubana para pernoite.
Ai, o cheiro de cigarro: "putz, fumam a beça na balada!"
E sobre o totó no carro da frente: " o çara deu uma freada antes do farol ficar amarelo."  Fato.
Crente estar livre de tanto interrogatório, vem o marido querendo saber a que horas vou chegar: "entre 10 e 1230, antes da uma tô em casa".
E os filhos insistindo numas de verdade: "ohmãe, fala sério, quando eu vou ganhar o jogo novo do Ps? Você não tá dizendo isso só praeu parar de falar, né?!". Imagina! Que tipo de mãe faria isso?!
E a empregada cobrando pela enésima vez a borrachinha da panela de pressão: " sabe que não tinha na feira. Eu não vi!"
Ou a mensalidade do clube: "Fiz o doc ontem, deve cair amanhã ou depois, é o prazo do banco, não é?! Putz! Anotei o cnpj errado, pode repetir?"
E teve aquele resfriado quase pneumonia que me impediu de comparecer à reunião ou entregar o relatório em dia: fiquei péssima, por pouco não fui parar no pronto-socorro.
E seu guarda, talvez o senhor não acredite, mas troquei de bolsa e a habilitação ficou na carteira da outra, se me der um minutinho eu pego e já volto.
Ademais, todas as acusações foram indevidas.
Protocolo minha defesa no prazo e de forma sucinta: uma lauda como previsto.
Não! Não especificaram o tamanho da letra. O pedido era uma lauda.
(...)
Já tem gente que precisa de 68 páginas, fonte Arial, tamanho 6, espaço simples, sem parágrafo.
(...)
Não sei se dá pra confiar em que tem tanto para se defender.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Rímel

Já falamos sobre a conexão neurológica entre os cílios e os pelinhos do nariz?
Explico: na formação do tubo neural do feto durante a gestação, ocorreu ao cromossomo 2 , responsável pela pelugem pré-histórica do homos atualis, se responsabilizar pela raiz homóloga do nariz com os olhos. No entanto, sobrecarregado de trabalho (haja pêlo!), o cromossomo apressado fez um remendo: deixou que os cílios e os pelinhos do nariz formassem um fio único. 
Não haveria problema, não fosse a chegada no universo do Monsieur Eugene Rimmel, perfumista francês do século 19, preocupado com os odores e apresentação estética do seu povo. 
O fofo, à toa na vida, inventou um mini pincel que penteava os pêlos dos olhos dando as mulheres um ar de donzela romântica. 
Tamanho foi o sucesso que passado um punhado de anos o rímel se tornou item de higiene: ninguém sai de casa sem escovar os dentes, passar protetor solar e uma máscara para os olhos. 
Revolucionário. 
(...)
Em outro lugar do planeta, um bocado mais à frente do século 19, um moço governante de grande cidade decidiu que só poderíamos andar com os nossos carros, livremente, 4 dias da semana; o 5º sofreria restrições: bem cedo, no miolinho do dia ou bem tarde, do contrário multa neles. Montou um exército amarelo com armas em punho - papel e caneta - e lascou bala.
(...)
Circo armado: pular da cama antes do sono terminado para fugir dos guardas somada a necessidade cristã de esticar os cílios é certeza de acidente. 
Aconteceu hoje: atrasada para o primeiro compromisso com o rosto inchado da noite mal dormida, queimei a língua com o café quente, enquanto passava um reboque na cara; esqueci que quanto mais eu pincelava o rímel ultra-potente-doze-camadas-a-prova-dagua-vire-uma-estrela-hollywoodiana, mais eu estimulava os pelinhos do nariz, puxada de cá, cosquinha de lá, 
espirrei: alto, sonoro, repleto de perdigotos e lágrimas. 
Resultado: ganhei uma tatuagem versão Emília Clown Deprimida a um minuto de tomar uma multa e estourar meus pontos na carteira. 
Fui. 
Borrada e revoltada. 
E passei a manhã explicando que não era alergia, nem briga, nem doença rara: era a porcaria do rímel com duração 24 horas. 
(...)
Em tempo: não tem rímel que disfarce a cara de pau dessa gente de Brasília. 
Oremos! 

domingo, 13 de março de 2016

E também teve a caixa do supermercado, sofrida no texto obrigatório: cartão fidelidade? cpf na nota? vai querer sacola? quantas? você gostaria de doar um ovo de páscoa para a instituição das crianças carentes? forma de pagamento? débito ou crédito?
Ops! Tem frase nova no script. Doar ovo instituição criança carente!?
" Não. Primeiro eu vou arrumar dinheiro para as crianças carentes da minha casa e depois, se sobrar, eu dou pra essas ai."
" Não! Porque seu chefe que é rico não doa?!"
" Escuta, que instituição de criança carente é essa?"
Decidiram ler o folheto.
A campanha, chamada Páscoa Solidária, propunha a doação do valor de um ovo da marca da rede para crianças carentes atendidas por instituições não reveladas.
Pareceu negócio arriscado em época de Lava Jato.
Dinheiro que pode virar ovo, doado para desconhecido, apelando para a culpa católica dos clientes.
Não sei não!

Fila

Domingo é dia de fila longa na padaria. Famílias unidas em busca do pão fresco, forçam intimidade. Foi o caso da mãe do Artur.
Logo à frente estava o pai do Joaquim, garoto de dedo gracioso que furou o pacote de maria mole.
" Não pode Joaquim! Vem cá e sossega!"
Empoleirou o pequeno no colo e seguiu esperando o chamado caixa-livre.
Já a mãe do Artur, sem colo para o filho, seguia equilibrando o saco de pão, o queijo prato, o presunto, o litro de leite e o pote de requeijão. O garoto, de olhos curiosos, investigava todos os itens da padaria.
" Que gracinha! Quantos anos ele tem?"
" Obrigado. 2 e 4."
" Ah! São terríveis nessa idade! O meu já tá com 3 e 1, muito melhor! Mais obediente! É só falar que ele para. (...) Artur, vem cá! Fecha a geladeira meu lindo!"
" Que bom!"
" Você vai ver como muda. Artur! Não fura o pote de yogurte, agora eu vou ter que pagar!"
" Sei."
" Parece que amadurecem ... Eu já falei menino, larga esse Kinder ovo. Não abre! Poxa Artur, outro chocolate! Meu amor, obedece a mamãe."
O pai do Joaquim apenas sorriu.
" Artur, volta aqui. A-R-T-U-R, não fura a melancia. Eu já falei ... não saia dessa padaria ... não coloca a comanda ai! E agora como eu vou sair?!"
A atendente interviu: caixa livre!
Joaquim já tirava uma soneca no colo do pai. A mãe do Artur insistiu.
"Fique tranquilo, você vai ver como ele vai melhorar logo. Artur ... tira a mão do lixo!"

quinta-feira, 10 de março de 2016

Precisaremos de mais cinco anos de chuvas torrenciais para iniciarmos as reclamações.Até agora todos permanecem educados: ninguém faltou às aulas, tão pouco as sessões, reuniões mantidas, até o Ari apareceu: trocou lâmpada, limpou calha, consertou vazamento do gás. Betania permanece feliz guardando água para reuso. A grama (cortada) no último sábado já cresceu, o pé de manjericão virou um pé de boldo. A parede do banheiro virou um bloco de húmus. Meu cabelo cacheou ferozmente, o cachorro voltou a fazer xixi no tapete do banheiro, cancelei 3 happy hours, minhas relações estão ameaçadas. Aliás, o Zé Maria tem dificuldade para correr? Parece que está apertado para ir ao toalete. É amanhã que acaba a novela? Comecei assistir essa semana. Só chove! E também teve aquela ridícula que cruzou meu caminho logo cedo, lépida, faceira e molhada (de suor), já saindo da academia, de pernas torneadas e músculos definidos com cara de missão cumprida. Já eu, de cabelo Joãozinho de tão encaracolado, com o maldito sapato de camurça impraticável, barra da calça molhada, com os Escritos do Lacan embaixo de um braço e o crachá de doutora entre os dentes, o celular preso entre o ombro e o hipotálamo para avisar o paciente do atraso e 2 dedos da mão direita segurando o diminuto guarda-chuva do Ben 10 que não serve para nada.
Mas não, reclamar da chuva é heresia. Espero que ela continue até transbordar o oceano Atlântico. Adoro dormir com esse barulhinho. 😏

segunda-feira, 7 de março de 2016

Chegar mais cedo em casa custou um pequeno ajuste na agenda.
Nada sério.
A funcionária, vítima do sistema público de saúde, avisou que não viria, pois tinha um exame, para verificar um problema na visão, agendado há 94 dias.
Nada urgente.
Em casa, em horário comercial, resolvi agendar alguns técnicos para reparar danos antigos.
Na seguradora de carros, aquela que oferece consertos grátis para os clientes, só poderiam registrar 3 problemas por chamado. No caso, na categoria elétrica, temos 4 problemas, assim sendo, precisaria de 2 funcionários, uma vez que liberam 1 por chamado.
Bom, se isso não chama burrice plena, não sei como chamar.
Abrimos 2 chamados para elétrica e 1 para hidráulica. Ignorei a calha, mas questionei se cuidavam de vazamento de gás - vocês devem estar pensando que minha casa está caindo aos pedaços; sim: pedacinhos - mas não: verificavam vazamento de água na pia, nos sifões, nas mangueiras, caixa d'Água, esgoto e a pqp, mas gás não.
Anotaram como sugestão de melhoria.
Pedidos agendados com toda gentileza, pediram para anotar o protocolo, confirmar celular, que hora antes da visita passariam um sms confirmando: medidas de segurança senhora.
Ah! É também avisaram que a visita e o reparo são gratuitos, mas o material necessário é por conta do cliente, tendo 10 dias corridos para providenciar. Fiquei agradecida!
A última vez que vieram, desmontaram um freezer de colecionador que tenho e pediram para comprar um motor ; 6 meses depois, sem saber onde vende um motor recauchutado, parcelei em 10 um novo nas Casas Bahia.
Oremos!
O Ari, referência para ajustes gerais do bairro, prometeu uma visita para meados de 2014. Deve ter errado o caminho, portanto resta receber a galera. De qualquer forma, implorei. Liguei queixando do risco de explosão, do fato de comermos assados, saladas e arroz japonês há semanas e ele, o Ari, prometeu passar amanhã.
Amanhã também tem o cara da Net, de longe a pior maldição. Foram 48 minutos em três ligações, berros e ofensas e um combinado final que vai custar 90 reais senhora, mas pode pagar em 2 vezes.
Ódio! Desejei o pior a cada um dos atendentes. Desejei LER, transtorno de ansiedade, burnout, carreira no telemarketing e tudo mais que meu coração amargurado foi capaz de pensar.
Já começa por aquela voz de amigão que a gravação tem; depois a mesma voz que jura que seu QI bateu recordes de recém-nascido.
Olá! Já localizei o seu telefone, anote o protocolo pelo fato de eu ter localizado o seu telefone. Quer que envie por e-mail? Digite 1. Se preferir que envie pela coruja do Harry Potter digite 2, mas se quiser que minha tia de uma passadinha aí, digite 3. Agora se quiser falar sobre a internet digite 1, se for sobre a Tv digite 2, agora se for sobre os dois ou o bicho de pé que você pegou na Bahia digite 3. Ah! Entendo.
Entende o que sua anta automatizada!?
Ultrapassado a voz do capeta travestida de arcanjo, começa a sequência de atendentes. Pra economizar nos detalhes, a última conversa precisou de mediadores de conflito. A fofa queria, praticamente, que eu subisse no poste para verificar se o pino estava no lugar correto. Expliquei do pinçamento no ciático, das vezes intermináveis que já liguei, esperei 30 segundos e reiniciei o programa, que meu desejo mais legítimo era receber a visita de um técnico senhora.
Nada adiantou, a reinstalação só poderia ser feita por telefone. Apelei. Inventei uma deficiência visual, pediu que chamasse outro morador, retruquei contando que morava só: solteira, filha única, pais falecidos, contava com a companhia de um cão guia. Insistiu num vizinho. Falei da última discussão na reunião de condomínio, do risco de despejo pelo falta de pagamento das despesas, do preconceito vivido diariamente. Pedi que lê-se em voz alta o registro da minha lamentação. Não o fez.
Contei de novo, mais detalhado. Falei da artrose que atingia as juntas, da solidão amenizada pela internet e das lentes de aumento que provocavam feridas, uma vê apoiadas no nariz. A moça começou a chorar, parecia raiva. Pediu para aguardar e transferiu a ligação.
A nova, talvez temerosa pelo histórico, encurtou dizendo que o técnico trocaria  o aparelho na manhã seguinte. Noventa reais senhora em duas vezes.
Nem pediu para anotar o protocolo.