quarta-feira, 29 de julho de 2015

Veja o perigo. Devo a operadora de celular R$ 42,37. Digitei corretamente, checadamente, uma, duas, três vezes o código de barras. Deu errado. Apareceu no lugar, um boleto com vencimento em agosto, no valor de R$ 75.000.347,12. Imagina se eu autorizo por engano! Agora me diga Creonice: que porcaria compraram nesse valor?!? Casas, carros, viagens ou um naco da Petrobrás?
Os entendidos no ramo da literatura desaconselham a marcação precisa do tempo. Dizem que os bons escritores são capazes de preencher um instante com a descrição detalhada da cena. Mal sabem os entendidos a falta que faz um intervalo cronológico em algumas narrativas. Hoje, por exemplo. Convidei a família para apreciar um novato na culinária doméstica: arroz com vôngole. Espetáculo! Cebola, alho, pimentão amarelo picados no bico da faca. Tomate sem pele, azeitona em lascas, açafrão espanhol para colorir. Vinho branco para acentuar o sabor e um perfumado caldo de legumes caseiro para cozer os ingredientes. Prato para paladares refinados, não fosse a presença de criancinhas pentelhas, com cara de nojo, para a iguaria feita com tamanha dedicação. "Eca! Não gosto dessa comida!" A idéia inicial seria matá-los (de fome), mas diante do sol, da cerveja gelada e da promessa dos instantes de paz degustando o prato, aceitamos buscar um frango assado no boteco da esquina. Foram exatos dois minutos entre a batida na porta do carro e a entrada na cozinha. Apenas dois minutos; tempo de fazer um filho, explodir uma bomba nuclear, passar o ponto do camarão. O que de mais grave poderia acontecer em dois minutos?! Bom, alimentamos os famintos, oferecemos eletrônicos sem restrição e demoramos na refeição. Comemos e repetimos até a ultima conchinha ficar vazia. Depois teve a sobremesa, o café, a arrumação da cozinha, o cochilo comunitário, a visita dos vizinhos. Já prestes a dormir, lembro de pegar o carregador de celular esquecido no carro. Surpresa! O frango deixou rastros, odores, fantasmas maquiavélicos impregnados por todos os cantos do carro. PQP! Certa de que o perfume da semana lembrará o almoço de domingo, deixei os vidros escancarados. #tomaraquenãovenhagatos #senãosóvaipiorar

É fato

Os jornais atuais (e nacionais) violam a nossa inteligência. Informam do horror: miséria galopante, delação premiada, rico covarde se amparando no direito de ficar calado, economistas prevendo recessão, diretores de equipamentos de saúde vencendo remédio por negligência, a bendita presidenta gaguejando e acariciando o ego dos hermanos, enquanto a jornalista informa os índices alarmantes de desempregos. Para amenizar (e alienar, e subverter a indignação), alternam as notícias com comentários sobre jogos olímpicos, show da Ivete Sangalo, campeonato de futebol e lançamento de obra de arte de rua, considerando que fudido fica quem quer (basta resiliência e criatividade) Nos intervalos nos visitam os amigos do dono da emissora; vendem carros, viagens, jóias, idéias e ideais. Corja.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Diálogos

- Vamos andar amanhã? - Sim. - Pôs o despertador? - Sim. - Que horas? - As 8h30 - 8h30? - Sim. - Mas é muito tarde! - 7h15 - 7h15? - Sim. - Mais é muito cedo! - É. Um milagre. - O que? Acordar cedo? - Não. A gente tá casado. - É. Tem razão. - Boa noite. - Boa noite. - ... - Mas que horas mesmo você pós o despertador?

terça-feira, 7 de julho de 2015

Aos 4 anos é comum termos medo da noite. Meu mais velho tinha medo da noite. Não todas, felizmente. Quando acontecia , deitávamos no sofá iluminado pelos fiapos de luz vindos da rua e buscávamos adivinhar os sons do mesmo lugar. Era uma meditação guiada para uma criança de 4 anos. Escutávamos os cachorros abandonados, os gatunos forasteiros, o último ônibus da linha e os bêbados remanescentes. Sua cabeça cansava seus olhos de pensar e levava o medo para outros lugares. Aos 90 anos é menos comum termos medo da noite. Minha avó tem. Quase todas, infelizmente. Outro dia dormi junto dela. Estava de cabeça agitada, desconvencida do seus pensamentos; tampouco dos meus. Fiz massagem nos pés, dei gole d'água, bala de leite na madrugada, arrumei travesseiro, camisola e fralda. Nada ajudou. Lembrei do meu filho, dos sons e do aconchego que o mundo de fora trazia para o mundo de dentro. Abracei minha avó e, em tom de mantra disse: " vamos escutar os cachorros, os barulhos da noite e esperar o sono chegar". Fui agraciada por um instante de lucidez: " Vá pra puta que o pariu que eu não vou escutar cachorro nenhum! Tá achando que eu tô louca?!" Juro que funcionava com o meu filho. 😳😴

sábado, 4 de julho de 2015

Tatoo

Nasci devendo 2 meses de vida. Um resto que fez muita falta aos meus pais. Olhavam aquele corpo emagrecido pela prematuridade e não encontravam pontos de apoio que revelassem minha origem. Eu era feio, com orelhas grandes, nariz pontudo e cabeça achatada. Nasci quase hígido, portador de anomalias funcionais. Meus sistemas precários precisariam de tempo e furos e drogas para começar a trabalhar. Por obrigação continuaram a cuidar: deram nome e sobrenome, um canto para dormir e uma desesperança constante. Minha mãe deu um pouco do seu peito, mas logo desistiu. Minha fraqueza comprometia a força necessária para arrancar dali o meu sustento. Por sorte haviam substitutos: tubos, sondas, fios capazes de conectar meu corpo as maquinas. Assim foi: trataram e cresci, com a pele marcada pelos efeitos da prematuridade. Essa foi minha identidade: pequeno, miúdo, doente; atrasado no tempo dos normais. O tempo passou e a dúvida da origem pediu respostas que não foram dadas por ninguém: nem por meus pais, nem pelos médicos, nem pela porra do analista. Foi quando decidi transformar, marca por marca. Do pulmão fiz minha mãe, pelo instante de respirar. Do coração, fiz o braço forte do meu pai. Do estômago, o arco de flores da casa dos meus avós. Da garganta, a corrente sufocante do cordão umbilical. Da veia do braço, a cobra venenosa do doutor. Do resto, fui pintando o que aparecia, das relações construídas pela nova identidade.

Priapismo

Maria, você sabe que não existem segredos entre nós, não é?! Na verdade não existiam tantos, talvez um ou outro sem importância, nada grave que comprometa nossa relação, até porque Maria, o que eu tenho pra te contar não muda muito quem eu sou. Continuou sendo a mesma, amiga, mas o que me aconteceu hoje mexeu um pouco com os meus valores. Eu sei, valor, daqueles de verdade, tipo bastião do caráter, não muda assim de repente, mas deu uma chacoalhada. Eu pensei muito pra falar, como falar, se não podia ser coisa de quem foi criada no interior com pai rigoroso, mãe católica. Também sei que eu sou médica, devia estar acostumada. Todo dia vendo gente doente, tendo que mexer no corpo dos outros, mas você sabe, escolhi ser infectologista. Meu prazer é uma sepse generalizada, uma suspeita de HIV com cancro mole, gosto de gonorréia bem instalada ou de uma hepatite viral; até me divirto com uma dengue, mas o que vi hoje, pois em dúvida minha relação com o Vladimir. Não! Ele não me traiu! Ou se traiu, nunca desconfiei. Você sabe, o Vladimir foi meu único homem! Você tem razão, teve o Tavinho, mas com ele foi aquela única namorada que não deu nem pra chamar de sexo. Ele era moleque , gozava de pensar. Vivia com a cueca molhada só de pegar no meu peito. O Vlad não, sempre foi homem; dedicado , empenhado, nunca me deixou passar vontade. Me apresentou o mundo! Quem Maria? Quem você conhece que serve na traseira por prazer?! Tá bom, eu conto. Conto, mas espero que você entenda. Aquele maldito do meu chefe decidiu que o plantão do final de semana seria meu. Tudo que é problema internou no meu nome; isso me obrigou a passar na segunda cedinho, de leito em leito, dando bom dia, vendo no que posso ajudar e protocolando avaliação com especialista. Hoje não foi diferente: uti lotada, meu humor azedo e as enfermeiras eufóricas comemorando o dia. Assim que virei a esquina no box dos cardíacos, sou chamada de canto pela responsável do plantão que me atormenta avisando sobre o xilique do paciente do leito 12 . Gemeu a madruga, pediu travesseiro, banho quente e a última queixa era uma dor em baixo ventre sem conseguir urinar. Perguntei dos exames, fez febre, calafrio, indicava infecção urinária. Era passar a sonda de alivio, prescrever o antibiótico e mandar pro quarto. Não fosse a levantada no lençol. Maria: eu juro pela cura do câncer que nunca vi instrumento maior nem em todos os livros de anatomia, nem em todos filmes pornôs do planeta! Valha me Deus! Aquele moço tinha um problema de estrutura! De resto ele era parecia normal: tinha dois braços, duas pernas, cara simétrica e uma tatuagem de facção criminosa no ombro direito que não desabona ninguém . Mas o membro Maria; se não fosse doença era pura falta de educação. Maria, você sabe, minha abrangência no tema é limitada ao Vladimir. Não sabia muito o que fazer, tampouco quem chamar. O doente, que no momento era eu, pedia que eu examinasse o órgão como quem fala de dor nas costas. "Doutora, dê um jeito pelamordedeus, tá doendo muito e não quer baixar, o que que eu faço?!" "Ah! Meu senhor! Deve ser priapismo." "Qué é isso doutora?" Maria, me pus a falar em espanhol com o homem, acho que foi desespero. " Es una enfermedad que causa intenso dolor e o pene erecto no retorna a su estado flácido por um tiempo prolongado". O paciente ficou desesperado, com razão coitado. Segurou na minha mão e exigiu providências. O que eu fiz Maria?! Fiz o que não devia ter feito: segurei no pinto do cara e liguei aos berros pro Vladimir: - " Escuta aqui Vladimir, você pode dizer o que isso significa?! "

Carta aberta

Me sinto infeliz como um ator pornográfico que vive a potência no pinto duro e padece de apatia pelo resto do corpo. Conheço poucos atores pornográficos, talvez o mesmo tanto que você. Em geral são pessoas tristes no olhar, covardes morais que fecham os olhos e abrem a boca na hora de gozar. Nunca vi um que mantenha os olhos em riste. Lembro do Long Dong da adolescência, negro clássico inglês com pinta de americano, dono de fama com mais de um metro. Famoso nas rodas de escola, vivia no imaginário popular como uma aberração peniana. Felizes os que tinham acesso as revistas de sacanagem importadas. Vendiam informações de quando o show da capa se apresentaria no banheiro do terceiro andar. Eu, não era popular, vez ou outra cruzava com um no banco da perua. Embora o trânsito fosse menor, o trajeto forçava a intimidade. Serviu a poucas coisas; uma delas foi a foto do Long Dong. O entusiasmo do pré-evento foi infinitamente mais prazeroso do que o evento em si. O medo de ser pega pelo bedel, do meu pai saber, do rubor evidente, valeu pela decepção em descobrir que o negão além de feio, era mentiroso. Sem photoshop, até a velhinha mais inexperiente perceberia que se tratava de uma prótese. Se não me falha a memória era uma emenda mal feita com mangueira flexível de ¾. Suspiramos em uníssono, fizemos cara de nojo e duvidamos com certeza do que víamos. Por interesse, mantivemos a mentira e ganhamos um nível de popularidade. Um pouco do mal estar do engano, perdura. Tenho 40 anos, idade bem-maldita; melhor que os 50 e pior do que os 30. Melhor pelo tempo da promessa em virar algo que nunca fui. Li o livro do corredor, fiz a oficina do escritor, o curso de culinária e deu vontade. Pior pelas realizações já cumpridas, sacramentadas e duradouras, sem recuo. Formei, casei, pari e arrumei trabalho. Difícil mudar o rumo da história atravessada. Faz pelo menos 20 anos que estudo o mesmo tema; nem sempre pela dedicação, muitas vezes pela exposição exaustiva; se não sei, finjo bem. Pessoas me sustentam comprando o meu trabalho. Vendo interpretações. Satisfazem, operam mudanças; não sei se duradouras. Não me importo, nem tenho como saber. Às vezes mandam noticias, às vezes esbarro em lugares públicos e contam desfechos. Às vezes disfarçam e mudam de calçada. Às vezes chegam novos, indicados pelos antigos; carregam expectativas do encontro anterior. Minha potência habita um canto desconhecido. Feliz do ator, pago por manter um pedaço de carne dura numa época sem acesso fácil. Comprar seu ideal custava caro. Era preciso o primo rico e desavergonhado atravessar o continente com dinheiro na cueca e parar na banca de jornal com cara deslavada e arriscar o inglês de escola de bairro: I wanna a sex magazine. Hoje basta um clic e sua potência é revelada em série na primeira página. Hoje basta um clic e seu ideal é impresso nas propagandas baratas. Ontem mesmo jogaram na cara minha indiscrição. Sentei para colocar as notas dos alunos no site da faculdade e denunciaram minha superficialidade. Veio anúncio de gordo tentando emagrecer, querendo comprar fritadeira elétrica e o motivo da morte do Long Dong. Agora preciso cuidar do meu histórico. Tenho marido, filhos em idade escolar, curiosos por viagens de férias e pesquisa de mamífero-ovíparos no mesmo computador que desenho meu futuro. Não combina com mãe de família ver foto de pinto grande. Já imaginaram se dá cruzamento de ornitorrinco com Long Dong?! Criança pega trauma e eu, tenho que explicar e pagar análise pra filho e marido desconfiados dos meus interesses. Melhor apagar. Mas apagar não liquida meu desejo. Queria ser livre, sem compromisso, disposta a propor cópula furtiva com quem me convir. Meu problema não é a vida, é a falta. Condição existencial que liquida minha existência. Sem ser desrespeitosa com quem tem nos mandamentos uma referência, cansei de respeitar e amar e venerar a Deus e todos os próximos. Cansei de sublimar a ausência de objetos fúteis. Cansei da falta. Falta tempo, grana, horas de sono, reconhecimento. Falta a empregada parar de preencher a lista de pendências. Mal volto do supermercado e ela lembra do sabão em pó. Estaciono o carro e a reserva avisa do fim da gasolina. Entrego o relatório e o chefe agenda a próxima reunião. Sem contar as tarefas nobres: vacina, consulta de rotina, exames ginecológicos e a comida do peixe. Comprei peixe porque vive só. Bem aventurados os que inventaram o beta, pena que o infeliz come. Come pouco, miseras bolinhas fedorentas que entretêm as crianças duas vezes ao dia. Mas come comida que acaba segunda-feira as oito da noite. Beta só come bolinhas. Quando tentei atum em lata, morreu engasgado. E criança pega trauma, e paga análise, ... Long Dong morreu de AIDS, aos 45 anos; jovem. Podia ter estudado na faculdade, casado, parido, arrumado trabalho de vida inteira, mas não. Se meteu a enfiar mangueira no pinto e não deu conta de disfarçar a mentira. Coitado! É... Me sinto feliz como um ator pornográfico que vive a potência no pinto duro e padece da promessa do amor pelo resto do corpo.