domingo, 28 de fevereiro de 2016

Seja feita vossa vontade.

Das diversas formas de morrer, surpreende a que demora dias.

Anunciam que morreu um pedaço importante, outros ainda não.

Então esperam a comprovação contrária; se nada houver,
iniciam a prova dos nove.

Testam uma, duas, até três vezes para que não haja dúvidas.

De resto espera-se: por um milagre, por um equívoco, por uma decisão.

Tempo interminável: remontam histórias, cenários, saídas e supostos desejos.

Preocupassem com o que confere poder: cuidam dos vivos, frágeis e indefesos.

Há quem brigue por direito, quem questione os fatos, quem convença a resignação.

Há quem se culpe, se revolte, se perdoe.

Há quem prefira a solidão, outros a multidão.

Já vi gente conversar, na maioria chorar, todos se desesperar.

Tá morta? Tá viva? Por quanto tempo?

Tá ouvindo? Sentindo? Sofrendo?

E quando abrir, vai perceber? Nada?! Mesmo?!

Sim, ela queria, sempre disse: se um dia eu morrer e puder aproveitar o que for de proveito aos outros, doe.

Tudo!

Seja feita vossa vontade.

Doou um coração, um pulmão, rins e fígado, olhos, pele e osso.

Doou um monte de vida.
 
Amém.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Pastel

Responda rápido: porque exatamente,  seu último namoro durou o tempo que durou?
Não. Não me interessa a motivação da sua relação atual, senão começa um mimi de companheiros-cúmplices, mesmos interesses, construímos uma linda família e temos planos para o futuro; quero saber do último, ou até do penúltimo, que seja um que tenha  atravessado um sábado. Difícil, né?!
Passado mais de 20 anos, descobri uma das principais razões para a existência (histórica) do meu namoro número 3.
Para a época, durou a beça: 4 anos.
Vou contar.
Ele era um querido, nossas famílias se conheciam, gostávamos (quase) das mesmas coisas. Vivíamos uma idade que o universo ainda não era tão imenso. Ele tinha uma mania estranha de achar graça em acampar. Meu pai tinha a mesma mania, fato que contribuiu para minha tolerância. Aos 18, ágil e apaixonada, fazemos qualquer tipo de micagem: montamos barraca embaixo de chuva no camping super-lotado de Bertioga, dormimos abraçadinhos com medo de sapo, comemos miojo cozido na boca do mini botijão de gás e tudo, parece lindo. Ele também me enchia de cartas de amor, bilhetes fofos e cartões frente e verso do Garfield com dizeres cafonas: Pintou um clima entre a gente ... e eu adorei!  Contava as estrelas, pensava nos nossos filhinhos, conhecíamos novos lugares, assistíamos filme de terror no cinema. Adorava minha mania tosca de mexer o nariz, gargalhava cada vez que eu contava os melhores momentos do Chaves (lembram daquela do sanduíche de ovo?), dizia que não existia melhor bolo de chocolate no mundo. Me achava linda, me chamava de loira, deusa, amada, pequena. Gravou uma fita cassete com a nossa música: 50 vezes! Pendurou uma faixa no poste, em frente à minha casa, dizendo que me amava; mandou um caminhão de flores no dia do meu aniversário. Me deu um coelho na Páscoa (morreu de pneumonia 15 dias depois). Fez um funeral para o Peludo, chorou do meu desespero. Era feito de uma lista de qualidades para amá-lo.
Morávamos no mesmo quarteirão: eu numa ponta da esquina, ele noutra. Um pouco adiante, aos domingos, tinha uma feira.
Se estivéssemos em São Paulo, nosso ritual acontecia: acordávamos dengosos, nos obrigávamos a caminhar no parque e na volta, perto do meio-dia, almoçávamos o pastel da feira de domingo (prato referência na região da Vila Carrão).
A dona da barraca, como previsto, era uma japonesa com sua penca de filhos. Enquanto ela pilotava a escumadeira com a destreza dos samurais, o mais velho repunha o óleo, e depositava os pastéis no tonel fervente, a caçula pegava os pedidos e rabiscava no saco de pão os sabores e um menorzinho fazia o troco.
Ofereciam poucas opções: tinha carne, queijo, carne com queijo, escarola com queijo ou sem, palmito, pizza, bauru e o especial. A coqueluche da época era o frango catupiry, vendia muito e acabava cedo. Se encomendávamos quatro para viagem, o quinto era de graça, de queijo. Também tinha o melhor molho vinagrete da região.
Éramos capazes de rechear os espaços vazios com aquele manjar e brincar de desviar dos pingos escapados pelos fundilhos. Eu tomava um pequeno, ele, mais ousado, um copo grande de garapa com limão espremido.
Adorava seu jeito de começar o pastel pela borda; dizia que ajudava a escapar o calor. Depois, sempre gentil, deixava a primeira mordida do recheio pra mim.
Desconfiava que ali morava meu amor.
Fomos felizes, um dia acabou.
Acontece com os namoros.
Sofremos até o próximo.
Hoje, no intervalo exato do meio do dia de trabalho, cedi as tentações e almocei na feira. Antes mesmo da fornada sair da frigideira, cheirava a 45 combinações dispostas no varal. Os tradicionais ganharam versões modernas com queijos importados; trouxeram os frutos do mar, os peixes, as comidas regionais e típicas para dentro do pastel. Fritaram kibe e coxinha ali, no Mediterrâneo dos pastéis!
Trouxeram as sobremesas!
Uma loucura!
Trouxeram mesinhas, firmaram convênio com a barraca do caldo de cana: vendem água, refrigerante, cerveja, até taça de vinho se for o seu desejo. Aceitaram outras formas de pagamento, cartão!
E, diferente de antigamente, ofertam o gratuito logo no primeiro pedido: ganhei dois minis de carne com azeitona.
Puro luxo!
Também não tinha mais a japonesa, nem seus filhos. Surgiram uns funcionários que não escrevem no saco de pão, nem embalam num saquinho de gelinho o vinagrete. No lugar da pimenta no vidro de maionese tem Tabaco, molho de gergelim, limão espremido.
Glamourizaram minha lembrança!
Pelo menos, me ajudaram a entender que parte daquele amor-tempo foi movido pela promessa do próximo domingo.
Jurava que era a delicadeza que me fascinava, hoje sei que o traço marcante era outro.
Reafirmei meus votos: amo pastel.


sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Porta

A invenção da porta data do início da humanidade. 
Eva pediu para o Pai acordar do descanso do sétimo dia e construir, com urgência, um tapume de madeira, assim que ouviu o primeiro pum do moço Adão.
Achou aquilo de tremendo mau gosto. Deus, a contragosto, aceitou o desafio, mas recomendou: não precisa trancar, estipulemos a barreira física como limite e desejemos as ovelhas, obediência.
O casal, servo do senhor, bateu uma DR rápida, falaram sobre a importância de povoar o mundo, acordaram serem bons filhos, garantiram inclusive bater a meta estipulada, mas a porta era intransponível: se fechada, deveriam respeitar a privacidade.
Eva, fofa, cumpriu o combinado. Nunca incomodava o marido nos seus momentos de reflexão. O mesmo quando vieram as crianças.  Desde cedo incentivou a independência e autonomia dos meninos mantendo a porta, principalmente a do banheiro,  fechada.
Por recompensa ao bom comportamento das crianças, Eva fez uma surpresa no Natal: passou na arca e adotou um cachorro errante, macho.
Viveu feliz por um tempo, até a enxurrada de testosterona dominar o ambiente; percebeu que em
bando, funcionavam de um jeito muito diferente do seu.
Esqueciam as folhas tapa-sexo jogadas no chão, deixavam os gravetos e as cuias ao lado do tronco da sala, não recolhiam a sujeira do cachorro; era uma bagunça só.
Sem saída, restava sucumbir. Sucumbiu tanto que aos poucos perdeu a doçura; mantinha lembranças da feminilidade, apenas quando se escondia atrás do tapume, após um dia exaustivo de trabalho, e gastava tempo tirando a maquiagem, acertando a sombrancelha, se besuntando com o resto de creme retinóico que trouxe do Éden.
Mas os filhos de Deus, nascidos do seu ventre sagrado, não entendiam nem respeitavam o espaço da esposa e da mãe. Tampouco as recomendações divinas para não abrir o tapume fechado.
Bastava ela se trancar no banheiro, lá vinha o filho querendo escovar os dentes, o outro pentear o cabelo, Adão para tomar uma ducha rápida e o cachorro lambendo sua perna quando saía do banho.
Um dia, cansada da invasão constante, deu um basta: gritou como se não houvesse amanhã. Mandou Deus, os filhos, o marido e até um tal de Espírito Santo para o inferno; amaldiçoou as próximas centenas de milhares de gerações, expulsou todos aos pontapés e, exausta, tomou um chá de camomila e foi se deitar.
Naquele dia, parece que a terra viveu o primeiro  apocalipse: veio dos céus um anjo do senhor e trouxe uma chave, tetra, com a mensagem: tranque a porta hoje e sempre.
Desde então, os homens nunca mais ousaram invadir o templo sagrado das mulheres: a pia do banheiro.
Contentam-se com um quarto de gaveta e só.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Primeiro que meninas lindas e jovens e vaporosas não devem conversar sobre isso publicamente.
Depois que isso não é jeito de falar na rua.
Meus pais, mais minha mãe do que meu pai que é um puta boca suja, me ensinaram que palavrão tem que ser usado com moderação, em ambiente protegido e contextualizado.
Além do mais, usar esse linguajar, não seduz; espanta e causa incômodo, físico.
Eu mesma dei uma passada rápida para comprar um livro pra viagem.
Aí resolvi comer uma dupla de sushi e tomar uma água com gás e começar a ler.
E lá vem elas!
Pedem um shimeji e um chá; estão sem fome, preocupadas.

Ele tem uma estenose no arco aórtico. A médica auscultou e percebeu um frêmito tátil. Fez eco e eletro. O PCr deu alterado. As enzimas também. Pediu proteína C reativa. Pensaram em neoplasia, talvez doença reumática ou algo inflamatório.
Mas será que não é carrapato? Pensei amiga, mas sabe que pode ser típico do buldogue!? É? Então relaxa. E de resto?

De resto?!
De resto, comecei a declamar:

Quem é que ousa entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo.

Acharam estranho.
Eu também.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Pressa

Era as 2.
Já passa, pouco.
Em 1(uma) preciso fazer tudo para a Bahia.
Depois voltar, assumir semblante e esperar a hora do vôo.
Só quinta.
Daqui no salão atravesso 5. Hábito obsessivo para passar o atraso.
Todos no celular.

1. Não foi o que eu disse. Marcamos a consulta na segunda depois do carnaval. Preciso arrumar dinheiro.
2.  Eu nunca disse que o problema dele era dinheiro. Tem lá no banco, guardado. A questão é a falta de vontade.
3. Se você quiser eu passo lá cedinho. Posso buscá-lo, senão ele atrasa.
4. Tô achando ele meio deprimido . Tentei ligar várias vezes, não me respondeu.
5. É. Ela tava acompanhada. Disse que era um amigo, mas pareciam tão íntimos. Certa ela. Ficar chorando não leva a lugar nenhum.

Oi, sou a Patricia, tenho horário as 2.

Deu tempo e história, curta.