sábado, 29 de março de 2014

Minha mãe escolheu o meu nome nos créditos de um filme de amor. Não sabia quem era a atriz, tampouco o personagem. O meu nome não tinha história, era só um amontoado de letras da legenda do filme de amor. Revi esse filme, ano após ano, desde que descobri que ele carregava meu nome. Queria captar o efeito do filme na minha mãe para entender porque ela escolheu o meu, dentre tantos. Cada vez que assisto aprendo um pouco menos do que nunca soube. Naquele dia foi a última vez que meu pai me assistiu, mas ele nunca soube que esse seria meu nome.   

quinta-feira, 20 de março de 2014

Rela-ços

Re-laços 

Foram três entrevistas para fecharmos o contrato. Propôs nos vermos duas vezes por semana, exigiu pagamento em dinheiro e por encontro. Parecia um excesso, mas sendo a primeira vez, não me senti a vontade para negociar. Antes do início me alertou que responderia pelos horários combinados, pelas faltas e pelas férias. Apresentou o divã,  falou de sonhos, passou o número secreto da porta de entrada e se despediu com um breve até mais. Foram dois anos, quatro meses e cinco sessões para eu entender que as vezes é preciso mais uma. Desatando nós, resistindo ao real, negando fatos e conclusões. Falar sobre a linhagem, a fuga dos avós de um país distante, a separação dos pais, a morte da melhor amiga na adolescência, a escolha profissional, seus desarranjos; tudo isso soava tarefa fácil. Difícil era reconhecer o fim. O fim. Nos conhecemos no último ano do colégio. Ele era amigo do amigo do meu amigo. Eu tinha dezesseis; vinte parecia o passaporte para o mundo. Não foi amor a primeira vista. Ele tinha carro, trabalhava, estava na faculdade, jogava futebol e era nota sete de beleza. Eu, além dos dezesseis, dividia meu tempo entre a indecisão do vestibular, as tardes de sábado na calçada da vila, as sessões de cinema e as quermesses do bairro. Ele me achou bonita; perguntou ao amigo do meu amigo alguma informação que ajudasse na aproximação, deu um jeito de se apresentar, passar a tarde na calçada da vila e oferecer carona na hora de subir. Nos beijamos após cinco horas, transamos após  oito meses e nos separamos pela primeira vez quatro anos depois. Nossas famílias se conheciam. Chamava sua mãe de tia e ele, a minha de dona. Viajamos juntos para a praia, para o sítio, para a Disney e para a casa dos amigos. Compramos um par de alianças, juramos amor eterno e voltamos. Ele adoeceu, operou e se recuperou. Dormi no hospital durante toda internação. Achei que estava grávida duas ou três vezes nos três anos seguintes. Me formei. Fui morar em Londres por seis meses. Jurei amor eterno e me apaixonei por um grego, um francês e um alemão. Aprendi , enquanto ele começava a segunda faculdade. Na volta consegui um emprego e um curso de pós. Compramos outro par de alianças, juramos amor eterno e fomos morar juntos. Seu pai morreu. Foi obrigado a assumir os negócios da família. Trancou a faculdade. Ficou velho novo. Mau humorado, ranzinza. Não queria filhos, nem eu. Viajamos juntos para a casa de praia, para Nova York, Paris e Roma. Viajamos só. Ele foi pescar, eu fui para o Rio com umas amigas. Me apaixonei pela liberdade mesmo sentindo sua falta. Eu gostava dele, mas gostava mais do jeito que ele mordia o lábio quando estava nervoso, da cobrança de falta que batia com a esquerda, da forma como me abraçava quando ia embora. Embora. Entregamos a casa. Chorei uma caixa de lenço. Tomei um porre com umas amigas. Emagreci cinco quilos. Nos falamos algumas vezes. Ele parece bem. Parece que esta em outra re-laço ... o que? Nosso tempo acabou?! Será que eu posso voltar amanhã? Ok. Até. 

terça-feira, 18 de março de 2014

Implicância

Implico com fricassê. Pratinho afetado! 
Aqueles pedaços miúdos de frango, disfarçados de carne de primeira, submersos em molho apetitoso, fingindo simpatia. Ficam lá, de mãos dadas com as ervilhas verdinhas e suculentas com semblant europeu; dissimulados! Já vi muita carne de pescoço pagando de sobrecoxa. De peito então, nem se fala. Prefiro o bicho boi. Mais autêntico, bem definido. Filet é filet, cupim é cupim e picanha é tapa de cuadril. Não tem erro. Simpatizo também com os nadantes. Nenhum caranguejo de brejo teria coragem de desfilar com trajes de lagosta. Entendem seu valor e seu lugar na cadeia alimentar. Alguém, por acaso, já encontrou uma sardinha dormindo na lata do atum?! Então!


Implico também com o Luan Santana. Até simpatizo com a breguice do menino roliço, com calça de couro colada, cantando umas musiquinhas forçadas, daquelas que colam no ouvido e não saem nem com lavagem. Alguma coisa entre “amar não é pecado” e “ai se eu te pego” trás um colorido erótico, no meio do expediente, quando passo na recepção do prédio e escuto o pessoal da portaria cantarolando o refrão. Lembro que existe vida após um longo dia de trabalho. Mas, apesar disso, acho um pouco demais a super produção dos shows. Domingo, entre uma conversa com a vovó surda e os gritos das crianças enlouquecidas, assistíamos ao domingo do Faustão. Luan estava lá, lépido e faceiro, concorrendo a algum prêmio melhores do ano. Por alguma razão, que não ficou clara, o cenário contava com uma chuva torrencial, dessas de fim de verão que acabam até com a circulação de leptospirose na cidade. Não bastasse, a moça da maquiagem deve ter usado um pancake de segunda linha que derreteu igual as geleiras da Antártida em pleno aquecimento global. Deu dó. Enquanto ele dançava, tirando alguma inspiração do intestino delgado, seu rosto se desintegrava; e de triste (música com pegada soucornoedaí) virou um comediante do improviso. Difícil!

E sobre o superlativo? È pra implicar ou não?!Tenho uma birra de neguinho que tem mania de usar o intensificador Tabajara de qualidades. Em geral vem na carona do eu. Eu sou super, hiper, master, issimo legal! Meus penduricalhos  são mega, ultra, plus, érrimos! Empolo. E não existe antialérgico que de conta do mal. A coceira é tão intensa que é preciso sair de perto. Também tem a versão superlativa às avessas. O drama do cidadão não é mexicano - isso é coisa de telespectador de segunda categoria – a desgraça segue um estilo Praça da Independência de Kiev. Seu sofrimento não é equiparável a nenhum outro. Você chega meio cabisbaixo, desanimado porque o filho teve febre, o salário não caiu, a empregada faltou, discutiu com o marido e o sujeito entoa a marcha fúnebre com o clássico : pior eu! Ninguém merece!

Pronto falei. Você nunca implicou com ninguém?!

Pois, é! Parece que adoeci. Fui picada pelo bicho da implicância. Envolvida em coisas demais, com valores de menos. E aí, preciso de um antídoto – essa é do Luan ou do Tonico e Tinoco – que mate essa ... doença? saudades? ... o que era mesmo?

Implico quando esqueço alguma coisa ...



sábado, 1 de março de 2014

Entre meus seis e dezoito anos escutei meu pai repetir - com certa freqüência - que existem três tipos de pessoas no mundo: aquelas que aprendem observando os erros e as experiências  dos outros; outras que não se contentam em observar, desafiam a realidade e só então, após um bom tropeço e o nariz esfolado no chão conseguem entender o recado e por fim os Ipsilons que resistem vigorosamente ao aprendizado, recusando as contribuições e ensinamentos dos outros e negando a própria experiência. A gentileza do meu pai não parava por aí. Dizia que a exigência – não dele, da vida – sempre foi pelos melhores. Sustentava a tese citando os macacos, Darwin, os sobreviventes de guerra e até alguns personagens da família. Tanta sinceridade pedia um atenuante poético; recitava que não precisava ser a melhor, bastava pertencer ao ranking dos primeiros colocados e, dentre eles, ser a primeira. 
Coisas do meu pai!
Meu pai falava – e continua falando – tantas outras coisas. Costumava realizar uma espécie de chamada oral cultural que, há algum tempo, acredito que servia para verificar a qualidade da sua paternidade, uma espécie de avaliação de desempenho 360º. Com o passar dos anos o questionário sofreu algumas modificações, no entanto algumas perguntas chaves sempre estiveram presentes: a capital do Nepal, quem havia escrito o Guarani e por quem os sinos dobram. 
Naquele época meu desafio era decorar as respostas, adquirir confiança para contra-argumentar e lidar com minha total ignorância. Obviamente a proposta não pretendia estabelecer um longo diálogo, uma discussão histórica ou reflexiva e acabava resultando no diminuto “não sei” com “vai pesquisar mina!”.  E lá estava eu, entre um misto de vergonha, raiva mortal e curiosidade, debruçada em alguma enciclopédia, um mapa geográfico ou o bendito Admirável Mundo Novo. Não sabia ao certo a definição do termo, mas tinha interesse em me tornar uma Alfa. Quanta ilusão! 
Entre meus seis e dezoito anos percorríamos semanalmente os sessenta quilômetros de estrada que separavam nossa casa da cidade da nossa casa no campo. Apelidamos a primeira de Carrão – espécie de metonímia que garante a ilusão que a parte é o todo – e a segunda de Santa Isabel. Deixávamos o ponto de partida com alguns suprimentos alocados no infinito porta-malas da Belina azul e partíamos rumo ao primeiro sobrado de campo da face da terra – que até hoje não consegui entender o motivo.
Algumas vezes o quiz paterno era aplicado durante o trajeto e, na falta de recursos para pesquisa, restava desbravar a natureza do sítio e adquirir conhecimentos para além da fronteira impressa. 
Boas lembranças. 
Do sobrado, das aventuras, do contato com os bichos, da grande família da dona Severina, da caixa d´água, do balanço de pneu, da fogueira, da Cumbuca e sua ninhada, dos intermináveis jogos de War, do morrão, da casa do sítio do pica pau amarelo, do porco morto, do torresmo, do varal de lingüiça, do porão, das estórias de terror, do quarto das caminhas, do papai Noel, do chuveiro de lata, da perereca no rolo do papel higiênico, do lampião, do machucado no joelho, do beijo escondido atrás da casa. 
Entre meus seis e dezoito anos aprendi algumas coisas. Umas importantes outras nem tanto. 
Aprendi que existem três caminhos para chegar a Santa Isabel. O mais curto, porém, o mais perigoso, é pela Dutra. A Trabalhadores – inaugurada durante aqueles tempos – é mais bonita, segura, tem o relógio solar que garante algum entretenimento, mas é looonga. Você também pode ir “por dentro”, fato que exige conhecimento da periferia e uma boa dose de senso de direção. 
Aprendi também que o carro atola em dias de chuva. A tempestade abre vincos no chão que misturado ao barro e aos pedregulhos formam uma armadilha para os carros sem tração (raros naquela época). Aprendi que não devemos seguir as trilhas abertas pelos outros carros, elas enganam quanto a profundidade e, ao invés de encontrarmos um caminho, podemos encontrar uma cilada. Não devemos recuar, tampouco diminuir ou aumentar a velocidade. Se lento aumenta a chance de atolar, se afoito de derrapar. O ideal é engatar a segunda marcha e manter o controle e ritmo constante. Quanto ensinamento! Não raras foram as vezes que tivemos que enfrentar o caminho ermo, embaixo de chuva, carregando os suprimentos para a temporada na selva. As regras não davam conta do imprevisto: choveu demais, o solo cedeu, o motor esquentou. Nessas ocasiões parávamos, descíamos do carro, as mulheres e as crianças carregavam a bagagem enquanto os homens buscavam escoras para o pneu e forças nos braços para empurrar a banheira enlameada. 
Aprendi um pouco sobre paciência ouvindo Jesus alegria dos homens e, portanto, quem era Bach. 
Com as perguntas aprendi bem mais do que pretendia meu pai. Descobri que Katmandu é a capital do Nepal. Que lá por perto fica o ponto mais alto da terra, tão alto que andorinha não chega. Que Sidarta nasceu por lá e trouxe algum aprendizado aos seus. Aconselhou que não fossem pessoas infelizes, daquelas que mesmo não sabendo não perguntam, tampouco daquelas que sabendo  não ensinam aos outros e muito menos das que sabem, ensinam e não reproduzem nada do que aprenderam. O Guarani me apresentou Carlos Gomes, nascido na terra das andorinhas que, depois de um punhado de sofrimento, desbravou o mundo levando produto nacional de qualidade. E quanto aos sinos ... aprendi que com " a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti " ... meu amor. 
Mas essas coisas eu aprendi em outras épocas, antes dos meus seis e bem depois dos meus dezoito.