domingo, 14 de junho de 2015

Amizade é texto sem revisão. Cheio de erros de concordância, grosserias gramaticais, hipérboles baratas e pleonasmos edificantes.

Amizade é costura de chita e fio percal de um milhão, resulta em tapeçaria persa feita a mão, por anos.

Amizade é roto justificando esfarrapado. É bela viola e pão bolorento por dentro e por fora, sem descanso. 

Amizade é cerveja de garrafa e pastel gordurento na quinta a noite, arrematando a semana antes do fim. 

É fumar cigarro na promessa de parar, sem medo de doença porque tem afeto que protege da guerra. 

É falar dos tropeços mergulhando de cabeça na erosão. 

É construir lembranças sem fim. 

Do primeiro vomito na beira da estrada, da mão na garganta que sela pacto de irmão de sangue, da transa sem camisinha que faz todas doarem sangue pra descobrir que está tudo bem. 

Da prova colada de assunto desinteressante, do professor bonito.

Do roubo da sobremesa pra virar bebida de adolescente.

Das desavenças, das diferenças, da tolerância.

Da calça emprestada que não servia, mas serviu, porque amigo cabe em qualquer tamanho. 

Do sapato frouxo que laceia para receber a bolha alheia.

Da viagem longa que canta a brincadeira de infância e anuncia a chegada da adolescência. 

Da fita que volta por insistência de viver o momento por mais um instante.

Da música, do monte de músicas, do Fábio, Junior, companheiro insuperável de fim de noite. 

Dos casamentos, dos amores, das paixões da Bahia, do Cerrado, da esquina.

Dos filhos nascidos e dos perdidos e dos criados e adotados e sacramentados, na saúde e na doença, na harmonia e na discórdia, na vida e na morte. 

Em nome dos pais, das mães e de todos os espíritos dispostos a proteção. E também dos que não, intrusos aniquilados pela lealdade. 

Das profissões escolhidas e esquecidas pelo caminho. Daquelas que perduraram e findaram um lugar.

Da promessa da velhice, da cadeira de rodas com cerveja e cigarro e humor. Muito e sempre. 

Das quedas, derrocadas e vitórias. Das fáceis, das impossíveis e das transcendentes.

Amizade é primeira menstruação, que sangra até a menopausa, que marca tempo. 

Que volta a cada ciclo, certeiro. 

Que se escreve nas madrugadas e nas manhãs de cólica. Nas de ressaca e de sufoco e de angústia agonizante. 

Na sala de parto e de cirurgia e de onde mais Deus nos colocar.
Que não mede distância, dinheiro e nada que o homem possa calcular. 

Que enfrenta.    

Amizade é dedo na ferida, no ponto fraco e na hemorragia, que cutuca com a garantia de estancar.

Amizade é DNA. Modifica o código, as regras, as leis.

É anatomia. Conhece pelo tom, pela voz, pelo passo e pelo olhar cego do cheiro de alegria e tristeza.

É sublimação.

É amor sem fim.


Amizade é texto sem revisão.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Cabeça

Eu tenho cabeça.
Ontem tive dor na cabeça.
Um analgésico de efeito rápido sanou a dor e,
devolveu a função plena
da cabeça.
Hoje acordei sem.
Tomei 1 cerveja e 1 taça de vinho.
A cabeça abriu espaço,
pra dor.
PQP!
Encontrei um jeito,
ortopédico,
para
impedir
a
instalação.
Deitei no sofá:
a meia luz,
ao meio som,
bem meia boca.
Pedi
silêncio, sossego e café forte.
E um pouco de tempo.
Demorou,
mas passou.

Rejuvenescimento

As duas senhorinhas, sentadas no sofá ao lado, esperavam pela ficha preferencial número 2049.
A minha vinha logo depois, a tempo de  espiar a conversa.
Para segurança do paciente, e pelo interesse de quem vos escreve, foi preciso preencher um formulário pré-exame respondendo aspectos clínicos da sua vida.
A menos senhora, primogênita de 68 anos, auxiliava a mãe, moça de 90 a viajar no tempo.
Primeiro queriam saber sobre o número de filhos. Recontaram, as gargalhadas, um a um; depois a idade do caçula. Discordaram. A filha jurava 62 enquanto a mãe dizia 61. Fizeram contas e tudo. Dai vieram os partos; teve normal, 3, o Jr de fórcepes e aquele aborto espontâneo. Curiosos, perguntaram sobre a amamentação. De peitos em peitos passou 3 anos com menino pendurado no bico. Não contente falaram de sexo: data da última relação, dores, corrimentos. Leve constrangimento resolvido com a lembrança saudosa do pai.
O resto do questionário - exames anteriores, doenças prévias, tratamentos - perdeu a importância.
Briguei com o atendente da padaria. Não houve feridos, infelizmente.
A cena consistiu num bate-boca de 3 frases; eu, reivindicando uma xícara maior e ele, defendendo a média.
Busquemos culpados.
Tudo começou numa daquelas conversas de virada de ano, fazendo o balanço das conquistas e das contas e concluindo que o ralo tava sem fundo (prometo que na próxima virada vou pra cama as 10 como se nada houvesse).
Na ilusão que tomar uma providência concreta mudaria o rumo do rombo orçamentário, baixamos um aplicativo de finanças domésticas no celular.
Entre um acordo de paz anual, mais diversão e menos trabalho, nos comprometemos a anotar no app todas (e todas) despesas mensais.
Assim fiz.
Janeiro foi um misto de euforia com pânico. Mês improdutivo, recebi quase nada e gastei quase tudo. Anotava, compulsivamente, cada picolé derretido na areia, alienada na esperança que fevereiro anunciava.
Ocorreu uma pequena melhora: os pacientes voltaram, novos chegaram (tomando providências de virada de ano), as aulas aumentaram e o ícone entrada ficou azul reluzente.
Ganhei estrelinhas pela dedicação.
Março e abril, de mãos dadas, revelaram a real situação dos meses cheios: chegaram os impostos, seguros e os imprevistos (cupim, vazamento, curto circuito e mudança de empregada).
Tentei ignorar o aumento vertiginoso da inflação e manter pequenos luxos: podóloga, café em padaria gourmet, ceviche boutique com as amigas e oficina de escrita criativa.
Não deu.
Maio se impôs como tormenta (e eu em bote de borracha).
Com calma, olhos e mente abertos, analisei numa marcação homem a homem, quanto e onde queimo o suor do meu trabalho.
Pasmem: com infra-estrutura (aluguel, saúde, educação, impostos, transporte e empregada)  gasto 65% do salário; com alimentação (doméstica e na rua) vão se outros 20%; mais 5% para garantir alguma dignidade no futuro (previdência) e os parcos 10% restantes para gozar de furtividades.
Entre elas está o café de todas as manhãs.
Prescindo de companhia, ainda estou de mau humor, sem muita disponibilidade para o outro, conversando com meu sonhos, os colunistas do jornal e algum romance inacabado.
Um momento tão íntimo pede espaço aconchegante e bem servido.
O chapeiro conhece a textura do queijo quente, a moça das frutas fatia a perfeição o formosa, mas o responsável pelo café, velho sovina, completa metade da xícara com espuma de leite.
Apelei, aos berros.

Eu já disse que não gosto de espuma de leite! Café com leite não é o mesmo que café com espuma de leite! Cinco reais uma mísera xícara, não pode conter espuma. Eu quero líquido de leite, entendeu!

O gerente intercedeu. Buscou pessoalmente uma caneca maior e combinou com o atendente que a minha média seria servida, a partir de hoje, naquela xícara.
Justo.
Demorei a beça na padaria, em tempo de escrever até crônica e, pela piscadela do gerente na saída, desconfio que tenha usado o mesmo aplicativo.
Oremos!
Dos lamentos da cidade 

Moro num pequeno oásis cercado de favelas por todos os lados. 
As favelas são cercadas pelos rios, pelas marginais e pelas bocas de crack. 
Como o oásis foi planejado antes de ser construído, lembraram de colocar alguns ornamentos: uma praça, um campo de futebol, algumas áreas verdes, um coreto, um pequeno centro comercial, um clube (cercado de muros por todos os lados) e um shopping. Ah! Por respeito, princípios e a boa educação fizeram uma escola pública. 
Quando construíram o oásis não haviam favelas como ornamento (tampouco como desejo). Mas como desejo foi feito para não se realizar, elas vieram e povoaram as imediações com gente mais simples , mais pobre, mais preta. 
As casas receberam famílias com condição financeira de pagar escola particular para os filhos, mensalidade para freqüentar o clube murado e ingressos para o cinema que fica dentro do shopping.  São casas grandes e respeitosas: tem quarto com banheiro exclusivo para os pais, sala de refeições, amplo cômodo de empregada lá pros lados da lavanderia.
Gente com todas essas condições precisa de gente para ajudar com a casa e com os filhos, e gente para trabalhar precisa chegar na casa de família. Com isso construíram acesso: linha de trem e terminal de ônibus. Alguns vinham de longe, outros de nem tanto. 
Com tanto entra e sai, vieram umas pessoas com más intenções. Pensaram num jeito de melhorar essa vida e, num cantinho da área verde, instalaram um posto policial.  Poucos protetores para tantos aflitos, aí fizeram uma igreja (que ninguém é de ferro) e umas guaritas nas portas de entrada do oásis. Lá mesmo na rua onde moro tem guarita e três guardas (de manhã, de tarde, de noite). Todos moram na favela. O mesmo acontece no pequeno centro comercial, no clube, no shopping e até na igreja; com medo da invasão dos moradores da favela, contrataram pessoas da favela para proteger os lugares públicos.
As vezes nem precisa de tanto, com o preço do pãozinho ninguém pobre entra na padaria, com o preço da academia do shopping, tampouco. As pessoas diferentes se encontram na fila do mercadinho: uns com carrinhos cheios, outros com pequenas sacolas; uns pagam com cartão de milhas, outros com porta-moedas. No coreto ficam as crianças, as grávidas com filhos pequenos esperando uma moeda de boa ação. 
Assim é a vida. 
Mas o que aconteceu outro dia me deixou um tanto chateada. 
Já faz tempo que as pessoas do miolo, junto com as pessoas  das margens, construíram um adorno que não estava previsto na planta original: um campo de futebol e uma pista de bicicross. Em dias de calor, manhãs de sábado e tardes de domingo  o povo se encontra por lá e fica um colorido só: tem preto, tem branco, de chuteira laranja ou furada, de bicicleta cara ou carrinho de rolemã. Da até para acreditar que não existe (tanta) diferença; ou dava. 
Acontece que a cidade resolveu pela democratização dos espaços públicos : fez faixa de bicicleta por todos os lados, colocou sinal de internet no poste da rua e resolveu tomar posse daquilo que já era do povo; aqui no nosso oásis foi lá no campo e na pista de bicicleta; invadiram e destruíram o que tinha sido construído pelo povo. Imbecis! 
Quebraram as machadadas cada monte de terra, jogaram no lixo os pedaços da trave do gol. Puta bola fora! E não disseram nada. Suspiraram a palavra revitalização, quase como um lamento de morte. 
Disseram do planejamento, do poste com internet, dos bancos da praça e há um ano não fizeram nada mais do que acabar com a tentativa de aproximação e convivência entre as partes, num lugar que dilui as diferenças: ali, no lúdico. 
Tentamos ligar na prefeitura, ninguém atendeu. A mensagem dizia que estavam cuidando dos bichos da dengue. 

P.S: Lá onde havia restos, reconstruíram, no improviso, outro campo, outra pista. Até quando?

Indicação

Perguntei ao professor - a esses e tantos outros - como se define uma crônica.
Nunca vi perguntinha difícil de ser respondida, enrolam mais que filósofo em mudança de época; citam os consagrados, lêem dezenas de exemplos em busca de categorias e sempre encerram com a máxima "busque seu estilo". 
Como psicanalista, fui treinada para não responder as inquietações dos pacientes; já as minhas desejo objetividade, na falta sigo a busca. 
Antônio e Gregorio, companhias atuais nos cafés matinais aos domingos e segundas, trataram indiretamente do tema. O menino Prata contribuiu dizendo que toda crônica é uma ficção, ainda que inspirada em fatos reais e o garoto com nome impronunciável definiu, de forma mais precisa, que a crônica é uma ilha de amor cercada de ódio por todos os lados. Gostei. 
Dia desses tropecei com uma figura em busca de um encaminhamento para terapia. O pedido de indicação para uma análise é um troço mais delicado de conduzir do que dica de neurocirurgião. Felizmente nunca me pediram o telefone de um neurocirurgião, mas já pensei sobre o tema. Avaliaria o número de sobreviventes, depois dos sequelados, o nível de tremor nas mãos do médico, sua capacidade de concentração, aplicaria testes psicométricos e de personalidade, daria uma olhada no currículo, na simpatia e até no facebook. 
A diferença crucial (entre o psi e o neuro) é que no neuro basta dizer o nome do problema (tipo cisto sebáceo em giro pré-central) para você lembrar se o colega é especialista em cistos sebáceos em giros prés-centrais ou não ; caso fosse, ficaria comovida e solidária com a situação e faria o encaminhamento.  
Já no psicanalista é preciso ouvir o problema, entender as nuances, arriscar um breve interpretação e rezar: pela empatia, transferência, valores, números de sessões e proximidade da casa ou do trabalho.
Raramente pedem ajuda em tópicos: problemas conjugais, álcool e drogas, enurese e ecoprese, distúrbios do sono, filhos adolescentes, mudança de trabalho, crise de identidade. 
O problema vem em narrativa épica: "deixa eu te contar rapidinho o que tá acontecendo". Sento, peço um café, abro o coração e a mente, crente que a dor e o sofrimento sejam legítimos. 
O começo da fala anunciava o grau de importância do pepino (e da minha pessoa) : 

 "Já faz tempo que penso em falar com você. Disseram que você pode me ajudar. Há 20 anos sofro com isso."

Pedi um café, triplo. Um problema de 20 anos duraria uma eternidade. 

"Minha vida vai bem. Tenho saúde, filhos lindos, pais vivos, casa própria, trabalho e amigos." 

Comecei a tremer, cenário assustador para introduzir a questão. Típico de filme de terror: família feliz em casa de campo bucólica a espera da visita do serial killer. 

"Falando assim parece que tudo vai bem. Vejo pessoas em condições piores que não se queixam de nada e eu aqui, reclamando."

Início de autopiedade somado a autoflagelo. 

" O problema, veja, nem sei se é um problema, é a solidão."

Lucidez poética. 

" Não sei se o que quero é muito, acho que não. Todo mundo tem uma companhia para dividir as coisas da vida. Eu nem preciso de alguém para dividir conta, sou independente. Quero alguém que me faça feliz e só! " 

Sei

"Mas o problema é que não rola. Não sei porque? Encontro pessoas que parecem bacanas, a conversa dura uma ou duas saídas e depois desaparecem. Não acho que quero algo demais. Quero um companheiro, romântico, cuidadoso, trabalhador; não precisa ser muito novo, nem muito velho, sei lá. "

Sei, sei

" E modéstia a parte, eu sei meu valor."

Esperança. Ego fortalecido.

"Sou bonita, inteligente, charmosa e, parece futilidade, mas preciso dizer, uso calça 38, 38! Agora diga, quem com calça 38 fica sozinha?" 

Fala sério! A figura tava indo bem, reconhecendo um lampejo de desejo, negociando as opções de objeto, repensando as modalidades de satisfação e de repente mete uma dessa. 
Aí não dá, Creonice! Que Freud me perdoe, mas fiz cara de gravidade, atuei na  pura inveja (da calça 38 e só) e considerei que um problema de tantos anos não  seria fácil de resolver; valeria uma análise de artilharia pesada para avaliar que elementos psíquicos impediriam um pedido tão simples de realizar para a maioria dos mortais. 
Definição comprovada: uma ilha de amor cercada de ódio por todos os lados! 
Fiz semblante de saber e indiquei uma colega 44, super realizada!