quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Meu

Resto, restolhada, restolho. Aquilo que sobeja de maior porção. Ruínas, despojos mortais, detritos. Parte de um dividendo menor que o divisor. Restos. De tudo. De comida, de papéis, de brinquedos, de lembranças. Do remédio, do creme, do tempero, do afeto. Do pote grande de sorvete, do bloco de notas, do tonel de tinta, do rolo de fio. Ocupam espaço, deixam rastros, servem de ninho as pragas. Emboloram, umedecem, apodrecem. Mudam de cor, de tom, de cheiro. Perdem função. Ocupam o nada, o vazio, o buraco na barriga, do peito, na alma. Resto que se preze serve a transformação. O feijão vira caldo, o arroz virado, a mandioca bolinho. O shampoo vira espuma, bolha de sabão. Vira diversão. O bloco vira bilhete de namoro. A amargura vira vinagre. O amor vira lembrança, que vira saudades e só. Restos.  

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Mau humor

Meu humor é suscetível aos vírus. Basta um influenza de qualquer tipo invadir o meu corpo para surgirem os primeiros sintomas. Sou sistêmica, como qualquer espécie viva deve ser. Se uma peça da engrenagem falha, todas as outras sofrem os efeitos. As vezes diminuem o ritmo de trabalho, sobrecarregam regiões próximas e não raro encerram o expediente antes da hora. Em geral, talvez pela proximidade com o canal de acesso as vias respiratórias, o principal sistema afetado é o cerebral. Infeliz movido por toda sorte de estímulos exógenos que se articulam com o repertório endógeno desencadeando um baita mau humor. Nessas ocasiões o melhor a fazer é nada, prática desestimulada quando se tem empregos (vários), geladeira vazia e dois filhos para administrar. Por Deus! Como a agenda não garante um trabalho democrático, verifiquei o estoque energético para fracioná-lo conforme a necessidade. Obviamente gastei a maior quantia no trabalho: cumpri o obrigatório e adiei o possível. Com pouco tempo e uma taxa adicional pela comodidade fiz as compras pela internet e segui por inércia a caminho  de casa. A menos de um quilômetro da fronteira lembrei que havia me comprometido  em levar o caçula para um teste de natação - evento mudança de touca. Febril, dolorida e apnéica toquei a buzina exatos cinco minutos antes do horário da aula. Graça plena a distância é curta, tempo suficiente para ele se queixar, em prantos, da falta de habilidade Phelps de ser no nado borboleta: "Eu não sei nadar golfinho, eu acho um saco essa natação, eu não gosto de tomar banho naquele chuveiro!" Pobre eu! Aniquilado pela fúria super-egóica do seu dono! Sem muita paciência para delongas, entoei um tom mais grosso (encorajador) e fui me aconchegar do lado de lá do vidro com as outras mães. Foi então que começou meu martírio. 
Cinquenta minutos consecutivos de pernadas e braçadas entretêm a professora que é obrigada a coordenar o ritmo sincronizado dos aspirantes a arruaceiros; eu, na condição materna, dei nota mil nos primeiros quinze minutos e depois comecei a fazer bolinha de bafo no vidro embaçado. Demente!  Como não era a única - e meus ouvidos não foram atingidos pela gripe - fui obrigada a escutar o bate papo alheio. Pelo visto a galera ao lado costuma bater cartão por aquelas bandas. Conversavam de forma harmônica, repletas de achismos em tom de verdade. Que preguiça! Minha vocação a Santa Rita foi aniquilada no instante que o vírus invadiu meu cérebro, portanto paciência tava longe de ser minha virtude mais marcante. 
Bom, discutiam temas previsíveis: empregada, escola, marido e direito do consumidor. E como o que não salva serve de inspiração, tentarei fazer uma réplica.
Empregada: todas são péssimas, mal necessário pouco valorizado que serve para estragar os bens adquiridos no exterior pelo uso excessivo de alvejante. 
Escola: definitivamente as tradicionais são as únicas capazes de educar, afinal onde já se viu essa história de construtivista, escola de gente folgada que não gosta de dar limite pros filhos, dizem até que dão lição de casa e prova só no sexto ano, depois viram maconheiros e ninguém sabe porque. Falta de regras! 
Marido: todos são folgados que trabalham demais e não sabem onde fica o papel higiênico. 
Direito do consumidor: temos que brigar pelos nossos direitos, outro dia uma delas comprou uma bolsa da marca XPTO e veio com defeito e a vendedora (a irmã bem sucedida da empregada) não quis trocar porque tinha um mês de uso e ela entrou nas pequenas causas. Ganhou uma bolsa nova e um sapato! Uau! 
Precisava me vingar de alguma forma. Abri o computador e chita! comecei a escrever ...  claro que não serei aceita na Ordem de Santo Agostinho, mas futilidade tem limite! Para a próxima semana pensei em começar um curso de Muay Thai, acontece na mesma hora da natação. Talvez seja mais inspirador. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Cenas da vida II


Escolher um pai para os nossos filhos não é uma tarefa fácil. Juro que fiz uma boa pesquisa antes de eleger meu cônjuge como o escolhido.
Em geral ele tem desempenhado um papel exemplar, mas como todo humano (menos as mães, é claro!) comete suas gafes.
Chegando em casa, após um longo dia de trabalho, costumo fazer uma varredura rápida sobre os acontecimentos do dia.
Falamos sobre a lição, a escola, a programação do dia seguinte, a evolução das espécies e o desflorestamento (assuntos tratados nas aulas de ciência).
Tudo ia bem, até que meu mais velho pede para ler o trecho do livro que foi indicado pelo pai.
Segue: " O corpo nu de Clara jazia sobre os lençóis ... As mãos do professor deslizavam sobre seu peito ... Seus olhos brancos olhavam o teto enquanto o professor a penetrava entre as coxas pálidas e trêmulas ... com uma ânsia animal ... "
Silêncio seguido de gargalhadas, escuto o comentário preciso do garoto:
" Ohmãe ... Acho que o papai me deu um livro inapropriado ... "
Será?!

Cenas da vida


Comprar papel higiênico as nove da noite, definitivamente, não é um ato glamouroso. Mas lá estava eu, cansada e trôpega na última promotora viva com seu saboroso patê de atum.
Entre o quiosque e a barricada de leite promocional ela: tímida e japonesa segurando sua delicada sacola de compras.
Com ar tristonho se aproximou pedindo licença para entregar o papel em mãos.
" Minha irmã se curou da depressão, eu salvei meu casamento, meu filho largou as drogas. Se você tiver um tempinho venha as nossas reuniões, todos os dias de manhã e a noite. Obrigada. "
E partiu.
Ela com seu fardo, eu com o meu.