quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Carta 1. Para você.

Carta 1. Para você. 

Parece óbvio, mas não é. 

De forma bastante simplificada a temporada na Terra segue um fluxo frugal: nascemos, vivemos e morremos. Para alguns a temporada pode ser breve, para outros um pouco mais prolongada; no entanto, seja qual for a duração do ticket, a estada dos humanóides exige certa adaptação no modo de funcionamento psíquico, há quem chame isso de processo de subjetivação. Em outras palavras, se você foi um dos espermatozóides que ganhou a corrida desenfreada, furou a barreira da resistência ovular e se manteve em franca multiplicação durante nove meses... Não pare! A batalha não está ganha e seu trabalho está apenas começando! Se a princípio o objetivo era aniquilar os inimigos, nos próximos anos a meta se torna estabelecer uma harmoniosa convivência com os pares.

Entenda que não se trata de obrigatoriedade, você poderá se organizar como ermitão, monge tibetano ou simplesmente como o esquisito da escola, mas saiba: pagará um preço. Até que seus primários responsáveis aceitem seu modo de vida, é provável que passe por uma batelada de consertadores físicos, psicológicos e sociais que tentarão achar uma causa provável para o seu estilo-problemático. Em geral encontram, e se não encontram inventam (as vezes comprovam, as vezes não). Fato é que nos dias de hoje pouca coisa fica sem explicação; talvez falem que seu código de DNA veio com defeito ou sofreu alguma alteração por radioatividade, podem sugerir que sua morada não era adequada para virar humano, que as condições do seu entorno não favoreciam um funcionamento razoável, que você sofreu algum trauma nos primórdios da vida ou que o excesso de bugigangas consumidas durante o percurso contaminou seu corpo e sua cabeça. Explicações  não faltam e junto com delas vêem as soluções. A mais comum é a medicação. Hoje em dia temos remédios para quase tudo: para nascer, crescer, aprender, para dormir e respirar, para comermos, parar de comer,  para parar de chorar, de gritar, de brincar, temos remédios até para transar e para morrer; são medidas eficazes, mas como eu disse tem um preço. Alguns tratam só do problema, mas outros comprometem tantas coisas. Outro dia conheci um rapaz que queria parar de pensar, mas não queria parar de namorar. Conseguiu as duas coisas e aí começou a chorar, teve que tomar remédio para parar de chorar, só que ai parou de dormir e com isso de trabalhar; ficava a noite toda comendo e de manhã dormindo. Coitado! Era melhor continuar pensando, ao menos dormia, trabalhava, chorava ( de vez em quando) e namorava. Alguns vão propor que você mude hábitos: acorde mais cedo, tome água de berinjela, mexa o corpo, faça uns exercícios para memória e esqueça todos entorpecentes (álcool, drogas e chocolates). Antecipo que não é fácil; na mesma loja que mandam você mudar oferecem mercadorias tentadoras que só fazem piorar. Luta inglória dos tempos de espermatozóide! Outros mais preocupados chegam a cogitar tirá-lo de casa, às vezes pode ser interessante. Organizam lugares preparados para recebê-lo: arrumam o chão, as paredes, os utensílios necessários para viver; contratam umas pessoas mais gentis, empenhadas pela causa. Em geral elas aceitam seu modo de vida com um pouco mais de tolerância, mas não deixam de querer adequá-lo ao mundo da maioria. E falando em maioria, é assim que se organizam por aqui. O objetivo não é tão claro, mas alguns dizem que mantendo a casa em ordem, com as gavetas catalogadas por números, cores, gêneros e formas de se relacionar, fica mais fácil dividir os bens necessários; como se alguém soubesse de antemão aquilo que lhe convém. Não estão de todo errado, no começo é fundamental que alguém se ocupe dos seus cuidados e lhe ofereça uma espécie de kit de sobrevivência; já existem até lojas especializadas no tema: vendem fraldas, mamadeiras, lugares para dormir, tomar banho, brincar, mas o mais estranho são as orientações. Você acredita que existem pessoas que vendem orientações de como cuidar de outro humano! Confesso que nos últimos anos tenho lido a respeito, me pareceu  tão interessante que alguém saiba exatamente o que fazer para criar espécies adequadas ao mundo! Talvez por ser um tema universal tem gente a beça criando manuais auto-explicativos recheados de dicas e sugestões; parece um pouco com a história da medicação, só que de ler e fazer. Mas vou te revelar um segredo: ninguém conseguiu inventar um método tão preciso que garanta os resultados esperados.

Bom, preciso ir. Tenho que me relacionar um pouco. Eu queria mesmo te falar sobre a história da subjetivação, mas me alonguei demais. Se quiser prometo  escrever dia desses para falar sobre isso. 

Fique bem.

Abraço.
  

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