sábado, 5 de julho de 2014

Quantas pessoas que você conheceu já morreram?

Quantas pessoas que você conheceu já morreram? 

A primeira pessoa que conheci e já morreu foi minha bisavó. Lembro dela deitada numa cama de quarto escuro, sem um dos dedos do pé esquerdo. Seu corpo vivia coberto por um retalho de matelassê  cor de rosa, apenas do joelho ao peito, deixando amostra o pé sem dedo e o rosto envelhecido. No criado mudo direito havia uma prótese dentária mergulhada numa solução turva. Numa mão segurava o terço de contas com a cruz pendurada entre os dedos, na outra um lenço engomado de escarro. Lembro como uma imagem fixa de foto, sem cheiro. Ela era oitenta e cinco anos mais velha do que eu.  
* Passado uns anos, morreu a tataravó da minha prima. Tinha cem anos e morava numa cama de solteiro. Não se mexia, a boca estava sempre aberta emitindo odores e gemidos. Eu tinha medo daquela cena, em movimento. * Da mesma prima morreu o pai, meu tio. Diziam que morreu com a mesma idade de cristo. Dele lembro pouco, éramos muito novos, mas lembro do canto que fazia esfregando o dedo nas taças de cristais para provar se eram verdadeiras; lembro também do beiral que subíamos escondidos na janela do hospital em que estava internado, pois não podíamos entrar. Lembro de vê-lo emagrecido na cama. * Depois foi a vez de uma colega da escola. Ela era dois meses mais velha. Sentava na primeira carteira da terceira fileira da sala seis. Na quinta série ficaríamos no segundo andar não fosse seu coração fraco. Ela era branca como a neve com lábios roxos, falava baixo e sorria sem dentes. Não tinha força para passar o recreio no pátio, então nos dividíamos para buscar o lanche na cantina e acompanhá-la até o sinal anunciar o fim da diversão. Não voltou da férias. * Talvez, na seqüência tenha morrido meu tio avô; era um touro capaz de carregar toras de madeira nas costas. Tinha uma Brasília laranja muito bem cuidada, como ele. Era decidido, seguro e extremamente afetivo. Brigava se girássemos nas cadeiras da cozinha. Descobriu uma doença chata que havia passeado pelo seu corpo. Foi assustador ver seus músculos definhando; não durou muito. * Meu bisavô foi logo depois; das mortes mais poéticas que já vi. Morreu as vésperas de completar noventa e quatro anos. Era um operário padrão das missas de segundas, quartas e domingos. Sabia de cor o aniversário de todos os filhos, genros, noras, netos e bisnetos. Bom contador de histórias; nos fez acompanhar a vinda no porão do navio cargueiro, o primeiro emprego como mortorneiro, o lamento cínico diante da partida dos mais velhos. Com ele aprendi um naco de salve rainha, mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve! Para evitar uma grande queda, ajoelhou-se após a hóstia e desfaleceu no banco da igreja. * Teve também uma amiga do bairro. Passávamos boa parte do final de semana sentados nos três degraus disponíveis na fachada da sua casa. Ajudava sua mãe na barraca de pastel. Seus irmãos mais novos não estavam autorizados a mexer no tacho de óleo fervente, poderiam causar um acidente perigoso. Na segunda, como havia trabalhado muito na feira de domingo, acompanhou sua mãe e sua tia em um dia na praia. Os menores não puderam perder aula, tinham prova.  Sua tia não sabia nadar, tampouco sua mãe e ela, aos quinze anos não conseguiu salvá-las. Se afogaram antes do meio-dia. * Então perdemos meu tio, esmagado entre as ferragens do carro e do caminhão. Era apenas vinte e cinco anos mais velho, embora muito moço. Sempre, sempre carregava um sorriso alegre, debochado e bravo no rosto. Passou a vida sendo gordo, da gordura mais apetitosa para um abraço. Sábado a tarde costumava aparecer em casa para uma cerveja, um petisco e meia hora de prosa. Sem que soubesse perdeu peso para morrer. * Das mortes significativas a última foi do meu avô, dele já falei em outro lugar, mereceu uma escrita especial. * E do passarinho, que hoje a tarde ficou com as patas presas nas flores da cerejeira até sufocar de tanto bater as asas, em vão. Morreu na única semana do ano em que floresce a mais bela e efêmera das flores.

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