segunda-feira, 9 de junho de 2014

Acredite se quiser

Quando seu pai comprou a casa inacabada, não imaginaria que ficariam por ali tanto tempo. Não eram pobres, eram assalariados. A prestação no orçamento da família deveria acabar antes do primeiro entrar na faculdade. E assim foi. Deu para mobiliar o quarto das crianças, trocar os eletrodomésticos da cozinha, comprar um aparelho de som com duplo toca-fitas e um vídeo cassete. Estiveram no nordeste de avião e financiaram um carrinho usado para dividir entre os dois mais velhos. Com tudo pago conseguiram um lote de terra a um palmo e dois passos da capital, construíram um rancho com rede para todos. Mudaram para lá antes de o caçula terminar a faculdade. Voltavam toda semana para pagar a empregada, congelar comida, buscar a correspondência e apagar as luzes esquecidas pelos meninos. Ainda vivem e a despeito das estatísticas conheceram todos os netos, cinco no total.

Passaram imune a violência urbana. É certo que tinham grades e fé, desconfio inclusive que rezavam de joelhos, parece que dá mais sorte do que deitado.

Por opção, um contrato, meia dúzia de trabalhos e um pouco de dinheiro a casa permaneceu com a família. Na família que fez outra família. Pagaram antes de o primeiro entrar no colegial. Deu para mobiliar o quarto das crianças, o escritório, a churrasqueira, trocar os móveis da cozinha, comprar duas tevês de tela plana, um aparelho de som com cdeplay e assinar os canais pagos. Estiveram no nordeste de navio e na Europa de avião e financiaram um carro zero de fábrica com ar condicionado e direção hidráulica. 

Frequentam o rancho que agora ganhou varanda, lareira, piscina e abriga os anciões.  

Infelizmente os tempos mudaram. A segunda família, sustentada na ilusão do recanto seguro, foi vítima da violência urbana. É certo que tinham grades e fé, desconfio que rezavam deitados, parece que dê joelhos dá mais sorte.

Era um dia qualquer, desses quaisquer de trabalhar, levar filho na escola, dormir tarde para acordar cedo. Se o horário do xixi estava certo devia ser perto de quatro da manhã. Ela ouviu um barulho estranho, mais do que o gato preto no telhado do vizinho. Mas de repente o gato estava mais gordo, ou o telhado mais frouxo. Acordou o marido de cutuco para não assustar nem o gato nem as crianças. Como o barulho demorou a passar levantaram de fino, não acenderam a luz, esperaram e voltaram a dormir.

Logo cedo encontraram o que o medo negou na madrugada. Escada na beira da laje, armários abertos e uma bicicleta a menos. Merda!

Chamaram a polícia, o vizinho, o guarda da rua - nessa ordem. Chegou o vizinho, o guarda da rua e a polícia – nessa ordem. Obviamente o prejuízo foi pífio perto das noticias veiculadas no jornal, quase anedota. Ladrão de galinha travestido de usuário de crack. O vigia da noite não viu nada, tampouco ninguém. As crianças tinham prova, os adultos reuniões; a polícia, o guarda da rua e o vizinho tinham o que fazer. Lamentamos o ocorrido e seguimos o dia.

Antes do orçamento da cerca elétrica e das câmeras de segurança chegar por email a empregada ligou avisando que entregaram a bicicleta furtada sem muitas explicações.

Entrega de milicianos que operam no mesmo território. Não mexa no lugar do meu ganho pão, disse a nesga de caráter que dividi um homem entre o bem e o mal.


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