Quando seu pai comprou a casa inacabada, não imaginaria que
ficariam por ali tanto tempo. Não eram pobres, eram assalariados. A prestação
no orçamento da família deveria acabar antes do primeiro entrar na faculdade. E
assim foi. Deu para mobiliar o quarto das crianças, trocar os eletrodomésticos da
cozinha, comprar um aparelho de som com duplo toca-fitas e um vídeo cassete.
Estiveram no nordeste de avião e financiaram um carrinho usado para dividir
entre os dois mais velhos. Com tudo pago conseguiram um lote de terra a um
palmo e dois passos da capital, construíram um rancho com rede para todos.
Mudaram para lá antes de o caçula terminar a faculdade. Voltavam toda semana para
pagar a empregada, congelar comida, buscar a correspondência e apagar as luzes
esquecidas pelos meninos. Ainda vivem e a despeito das estatísticas conheceram
todos os netos, cinco no total.
Passaram imune a violência urbana. É certo que tinham grades
e fé, desconfio inclusive que rezavam de joelhos, parece que dá mais sorte do
que deitado.
Por opção, um contrato, meia dúzia de trabalhos e um pouco de
dinheiro a casa permaneceu com a família. Na família que fez outra família. Pagaram
antes de o primeiro entrar no colegial. Deu para mobiliar o quarto das
crianças, o escritório, a churrasqueira, trocar os móveis da cozinha, comprar
duas tevês de tela plana, um aparelho de som com cdeplay e assinar os canais
pagos. Estiveram no nordeste de navio e na Europa de avião e financiaram um
carro zero de fábrica com ar condicionado e direção hidráulica.
Frequentam o
rancho que agora ganhou varanda, lareira, piscina e abriga os anciões.
Infelizmente os tempos mudaram. A segunda família, sustentada
na ilusão do recanto seguro, foi vítima da violência urbana. É certo que tinham
grades e fé, desconfio que rezavam deitados, parece que dê joelhos dá mais
sorte.
Era um dia qualquer, desses quaisquer de trabalhar, levar
filho na escola, dormir tarde para acordar cedo. Se o horário do xixi estava
certo devia ser perto de quatro da manhã. Ela ouviu um barulho estranho, mais
do que o gato preto no telhado do vizinho. Mas de repente o gato estava mais
gordo, ou o telhado mais frouxo. Acordou o marido de cutuco para não assustar
nem o gato nem as crianças. Como o barulho demorou a passar levantaram de fino,
não acenderam a luz, esperaram e voltaram a dormir.
Logo cedo encontraram o que o medo negou na madrugada. Escada
na beira da laje, armários abertos e uma bicicleta a menos. Merda!
Chamaram a polícia, o vizinho, o guarda da rua - nessa ordem.
Chegou o vizinho, o guarda da rua e a polícia – nessa ordem. Obviamente o prejuízo
foi pífio perto das noticias veiculadas no jornal, quase anedota. Ladrão de
galinha travestido de usuário de crack. O vigia da noite não viu nada, tampouco
ninguém. As crianças tinham prova, os adultos reuniões; a polícia, o
guarda da rua e o vizinho tinham o que fazer. Lamentamos o ocorrido e seguimos
o dia.
Antes do orçamento da cerca elétrica e das câmeras de segurança
chegar por email a empregada ligou avisando que entregaram a bicicleta furtada
sem muitas explicações.
Entrega de milicianos que operam no mesmo território. Não
mexa no lugar do meu ganho pão, disse a nesga de caráter que dividi um homem
entre o bem e o mal.
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