quinta-feira, 23 de outubro de 2014

A vantagem de conversar com os mortos é que o eu possui a verdade.

Meu avó materno é uma figura carregada de afetos; desses que condensam como traço de memória, toda linhagem de palavras que falam de aconchego: calor, acolhimento, pertinência, alteridade, paciência, serenidade, subserviência. Ele é uma representação dinâmica; tem cheiro, expressividade, tom e entonação. Escuto, de forma prosódica, a forma carinhosa que me chamava. Mesmo morto, assegura (a mim) um ponto de determinação, filiação, amparo e anteparo de identidade. O eu existe ali, no intervalo entre a palavra e o gesto; sou a Pazoca que surge como extensão da sua fala e encontra parada no toque de sua mão. 

Passava tempos do dia na casa dos meus avós (maternos). O percurso da escola até eles durava cerca de vinte minutos. No começo me buscava a pé, demarcando cada fragmento com uma história, um ponto de referência. Um dia, seguro das minhas reais e ilusórias competências, anuncia que em breve faria o trajeto sozinha. Sábio, antecipou que estaria ali como fiador do meu aprendizado. No primeiro dia pediu para guiá-lo, no segundo que criasse alternativas para os possíveis obstáculos, no terceiro que me esperaria na metade do caminho, até que então, garantiu sua presença na entrada de casa. Estava ali (e sempre esteve) encarnado de Outro assegurador.  

Meu avó paterno é uma figura desprovida de afetos, um eremita das emoções; construiu império num loteamento na Sibéria. Teve muitos filhos, muitos imóveis, muitas riquezas e uma família desabitada de relações. Sua imagem é inerte; mal lembro do colorido dos seus olhos, azuis e sem brilho. Se sustenta no resto sucateado pelos seus descendentes. Não manteve nem mesmo o nome; cada qual, para existir, ludibriou sua herança. 

Visitava, eventualmente, a casa dos meus avós (paternos). Como éramos muitos havia movimento: rápido e fugaz. Em geral, os netos eram nomeados pela filiação; nada era individualizado, do tratamento a alimentação. Um dia, incrédulo da própria posição, proporciona uma viagem aos primeiros. Dentre todas maravilhas que o dinheiro podia comprar, tínhamos a disposição piscinas de extensão e profundidades suficientes para uma criança acreditar que o oceano era ali. Para que o mar se transforme de morte a vida, existe um intervalo de tempo que se chama sujeito. Sujeito que se constitui na relação com o outro, que apreende desse outro as possibilidades de advir. Desejávamos o mar, mas temíamos sua imensidão. Meu avô ordenou que nadássemos e diante o primeiro vacilo, vociferou em ato: nade! Na urgência desnecessária não há tempo para o encontro. Eu nadei, desassossegada.

Ambos morreram em decorrência da decrepitude orgânica. É assim que normalmente morrem os velhos. O primeiro morreu em casa: sereno, feliz, acompanhado dos seus. O segundo morreu preso a uma máquina de hospital: triste, sovina, solitário. 

As vezes, o real se impõe de tal maneira, que oscilo entre o sopro do afogamento e o alojamento no apelido carinhoso que me define. 

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