domingo, 24 de agosto de 2014

Brincar

Brincar é a melhor forma de levar a vida a sério. Talvez a única. Todo o resto é uma tremenda violência: psíquica, física, social. Brincar é um ato de fé. É apostar no desenvolvimento da fantasia, mola propulsora dos processos criativos. É trocar de lugar, testar possibilidades, ser no outro. É gozar por todos os poros, descobrir fontes de prazer, treino cerebral. Brincar é entender as regras sem imposição, autorizar a presença do outro, questionar a necessidade de sacrifício das relações. Participar dos combinados sociais, assumir uma posição ativa frente a sua vida. É duvidar de si; das coisas muito valiosas, das certezas infundadas. Brincar é um verbo indefinido, eternamente em construção. Se vem pronto não é brincar; é subverter a lógica do sujeito. Sujeito é dono de si, transitoriamente de objetos. Se os objetos apresentam seu sujeito, não há processo. Uma criança está brincando se atribui uma função imprevisível para as coisas. Se responde ao óbvio esta em adoecimento, deixou de descobrir. Também é jogar, pintar, bordar, cantar, dançar, ler, conversar, estudar, rezar, trabalhar, cozinhar, banhar, dormir, sonhar. É ação, condição infinitiva dos verbos; sem qualquer conjunção, sem necessidade de determinar um tempo, um modo, um pronome específico. Brincar é ser, estar; é remédio, cura.
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Gostava de brincar de escalada nos montes de areia e pedra que ficavam no fundo do quintal. O de areia era aconchegante, convidativo, seco e molhado. O de pedra era áspero, pontiagudo, firme. Gostava do cheiro de madeira, da serra elétrica, do caminhão basculante; de brincar de esconde-esconde entre o estoque de louças e caixas d’água, de contar quantas portas e janelas havia no barracão. De pular elástico entre duas cadeiras, de fazer cama para os pintinhos nos canos, de contar parafusos e separar as tintas pela cor.
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O caçula, para quem todo dia é dia do seu aniversário, brinca sem parar. Tá sempre na companhia de um ou dois bonecos que se aventuram pelos cantos da casa. Entre viagens intergalácticas, lutas épicas e a descobertas de novos poderes passa tempo sorrindo e tagalerando barulhos pela boca. Dia desses suspirou: ohmãe, gosto tanto de brincar!
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O primogênito lê: aventuras intergalácticas, lutas épicas, mistérios indecifráveis. Já revelou, segundo sua “perspectiva infantil”, que não gosta de livros que falam da vida real, “desses que podem acontecer com qualquer um”. Se refugia na fantasia, seu jeito de brincar.  

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