Brincar é a melhor forma de levar a vida a sério. Talvez a única. Todo
o resto é uma tremenda violência: psíquica, física, social. Brincar é um ato de
fé. É apostar no desenvolvimento da fantasia, mola propulsora dos processos
criativos. É trocar de lugar, testar possibilidades, ser no outro. É gozar por
todos os poros, descobrir fontes de prazer, treino cerebral. Brincar é entender
as regras sem imposição, autorizar a presença do outro, questionar a necessidade
de sacrifício das relações. Participar dos combinados sociais, assumir uma
posição ativa frente a sua vida. É duvidar de si; das coisas muito valiosas,
das certezas infundadas. Brincar é um verbo indefinido, eternamente em
construção. Se vem pronto não é brincar; é subverter a lógica do sujeito.
Sujeito é dono de si, transitoriamente de objetos. Se os objetos apresentam seu
sujeito, não há processo. Uma criança está brincando se atribui uma função
imprevisível para as coisas. Se responde ao óbvio esta em adoecimento, deixou
de descobrir. Também é jogar, pintar, bordar, cantar, dançar, ler, conversar,
estudar, rezar, trabalhar, cozinhar, banhar, dormir, sonhar. É ação, condição
infinitiva dos verbos; sem qualquer conjunção, sem necessidade de determinar um
tempo, um modo, um pronome específico. Brincar é ser, estar; é remédio, cura.
...
Gostava de brincar de escalada nos montes de areia e pedra que ficavam
no fundo do quintal. O de areia era aconchegante, convidativo, seco e molhado.
O de pedra era áspero, pontiagudo, firme. Gostava do cheiro de madeira,
da serra elétrica, do caminhão basculante; de brincar de esconde-esconde entre
o estoque de louças e caixas d’água, de contar quantas portas e janelas havia
no barracão. De pular elástico entre duas cadeiras, de fazer cama para os
pintinhos nos canos, de contar parafusos e separar as tintas pela cor.
...
O caçula, para quem todo dia é dia do seu aniversário, brinca sem
parar. Tá sempre na companhia de um ou dois bonecos que se aventuram pelos
cantos da casa. Entre viagens intergalácticas, lutas épicas e a descobertas de
novos poderes passa tempo sorrindo e tagalerando barulhos pela boca. Dia desses
suspirou: ohmãe, gosto tanto de brincar!
...
O primogênito lê: aventuras intergalácticas, lutas épicas, mistérios indecifráveis.
Já revelou, segundo sua “perspectiva infantil”, que não gosta de livros que
falam da vida real, “desses que podem acontecer com qualquer um”. Se refugia na
fantasia, seu jeito de brincar.
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