segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Il culo

Compreendi o conceito de tempo lógico no final do primeiro ano da faculdade. O ano era noventa e dois. A faculdade vivera uma de suas maiores greves, lutando pela autonomia alcançada em relação as intervenções da fundação mantenedora. Os serviços acadêmicos demoraram a se encerrar, mas assim que o sino bateu combinamos eu e uma amiga (das melhores até hoje) uma viagem para Bahia. O destino específico seria Porto Seguro/Arraial D'Ajuda, bandas recém re-descobertas pelos jovens. Na época já tinha idade e hábitos que conseguia manter sozinha, ou quase; contava mensalmente com a ajuda financeira dos meus genitores.
A negociação não foi difícil. Eu era uma segundo anista, recém proprietária de uma carteira de habilitação, trabalhava na loja da família e contava com uma recente separação dos meus pais.
Já conhecia outros lugares, próximos e distantes. O incentivo as viagens sempre foi prática familiar. Fui desacompanhada para a Disney, a todos acampamentos de férias do estado, ao Sul beber cerveja, até as terras do Fidel já tinha me aventurado, mas todas, sem exceção, algum adulto responsável assinava um contrato com outro suposto responsável durante minha ausência. Dessa vez era diferente! Eu iria só!
"Como chegarão lá? Mas ficarão onde? Quanto tempo?" - eram as inquietações dos meus pais. Não sabíamos ao certo. Uma semana, talvez dez dias. Calculamos uma quantia necessária para esse tempo - precisaríamos de hospedagem, comida, uma ou duas cervejas por dia e sol, muito sol - e combinamos de nos encontrar na rodoviária da cidade. Peguei o metrô e no horário previsto estava lá, sentada na mochila a espera da amiga. Intencionalmente abri mão do relógio de pulso que há anos me acompanhava. Ela fez o mesmo e rimos um riso cúmplice quando nos demos conta da má intenção. Que delícia!
As passagens já compradas, prometiam nos deixar ao destino vinte e quatro horas após a partida. Músicas gravadas, o maço de Marlboro no bolso da jaqueta jeans, as infinitas conversas e expectativas, nos fariam companhia durante o percurso. E assim foi. Viajamos apoiadas uma a outra, enquanto voltávamos a fita com o auxílio da tampa da caneta Bic.
I want to feel, sunlight on my face!
Embora fôssemos aspirantes a psicanalistas - sem ter completado nem a leitura das Cinco lições - mantínhamos rituais preponderantemente visuais, ou seja: nosso interesse era por gente bonita, muito bonita, tonificada e gratinadas pelo astro rei. Numa das paradas conhecemos uma moça um tanto mais velha para nossos dezoito - na casa dos trinta - que estava a caminho do mesmo destino. Arrendaria uma barraca na praia durante a temporada e ficaria numa pequena pousada recém inaugurada por módicos três reais, um terço do orçamento inicial. Bingo! Se aquilo não fosse um golpe, nossa estadia tinha triplicado de tamanho. E não era!
A pousada era pequena, com banheiro privativo, oferecia café da manhã e estava a distância exata que nossas pernas suportavam do centro da muvuca.
Como chegamos cedo - no mesmo horário da partida apenas um dia depois - fomos explorar as terras descobertas pelos patrícios. Entre um baiano e outro encontramos uma locadora local de veículos. O modelo mais sofisticado era um bugue com capota e o menos ... bom, alugamos. Era verde abacate, sem teto (o gerente garantiu que não chovia em janeiro), as portas não abriam, o banco do motorista estava travado por um bloco de cimento, a buzina funcionava conforme a temperatura subia, mas era nosso e tinha um som! Nos não tínhamos tanto dinheiro, mas eu possuía uma lábia treinada por anos atrás do balcão. Fechamos o contrato por um mês, tempo que negociamos a pousada. Sem a existência de celular, a ligação a cobrar comunicou que o projeto fora estendido por trinta dias. Pânico na região sudeste!
Fizemos um pacto: houvesse o que for ficaríamos sempre juntas! Selamos nosso trato com uma cerveja e duas tatuagens (temporárias).
Ah! A Bahia! Terra onde a música brota do chão. O dia começava normalmente no último instante do serviço de café da manhã, ou acabava no primeiro. Com o nosso turbo jipe de guerra desbravamos cada pedaço de Santa Cruz de Cabrália a Trancoso, conhecemos locais, internacionais e temporários. Fomos a todas as festas, de todas as bandas e estilos. Tostamos as custas de muito óleo de urucum, curamos ressacas as custas de muito caldinho de sururu. Nos apaixonamos, acho que umas duas ou dez vezes.
On a dark desert highway, cool wind in my hair!
Em uma delas conhecemos uns ragazzi italianos molto bello! Como éramos modernas e motorizadas combinamos de buscá-los no hotel para irmos a festa daquela noite. Vestido descolado, rasteirinha, bochechas rosadas, cabelos tingidos de sol, trilha sonora emoldurando nossos sonhos. O nosso carro era do tamanho da nossa disposição. Além de nós e dos rapazes, levamos duas recém melhores amigas. Aquela altura a noite tinha entrado para o top five da minha vida.
O caminho era longo, talvez pela quantidade de buracos existentes, o GPS era composto pela lua e a música que nos guiava. Sem função. Nos perdemos a beça até encontrarmos o local secreto da noite.
A certa altura os meninos começaram a gritar, num riso nervoso, algo parecido com "Culo!Culo!", que para o nosso italiano falsificado era um jeito errado de falar muro.
Não demos muita atenção para os apelos. Embora o auto não tivesse retrovisor a co-pilota, com a visão impedida pelo contigente de pessoas na garupa, garantira que não havia muro nenhum. "Esses italianos estão bêbados!", acho que foi a última frase que ouvimos antes do relinchar estridente de um pequeno burrico esmagado entre o bugue e uma árvore.
O animal sobreviveu, já nós... sorrimos faceiras, como poucos.

Vivemos o tempo medido pelos laços que dávamos naturalmente nos longos cabelos. Cada volta marcava nossa coragem juvenil. Não precisávamos de relógio. O tempo era lógico.



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