quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Meu avô morreu

Meu avô morreu. Ele tinha 75 anos. Seu coração parou subitamente e com ele todos os outros sistemas também pararam, incluindo seu cérebro. Ele morreu num sábado comum. Como de costume acordou as sete da manhã, ensaiou um alongamento, fez a barba, guardou o pijama na primeira gaveta da cômoda e foi para cozinha tomar seu café e os três comprimidos matinais para a diabetes, colesterol e hipertensão. Por recomendação médica e gosto pelas rápidas conversas deu início a sua caminhada matinal. Passada uma hora retornou para casa com o jornal. Na mesa da cozinha iniciou a leitura do caderno de esportes seguido do editorial e das notícias da cidade enquanto tomava um refresco de limão. Minha avó adiantava o almoço pensando nos itens que compraria na feira. As dez e quinze, munidos do carrinho, da sacola e da pequena carteira com o dinheiro, a chave de casa e um lenço de pano, partiram. O percurso da rua, repleta de barracas, durava cerca de uma hora, a tempo de chegarem na de pastel para dividirem um especial - onde o ovo cozido sempre ficava com o meu avô.
De volta a casa auxiliaram-se mutuamente na organização da fruteira e da gaveta de legumes. Repuseram o baleiro e o pote de biscoito que ficava guardado no esconderijo secreto das netas de trinta anos.
A espera do almoço assistiu ao programa de esportes até o chamado da esposa: " Vem Naldo, tá na mesa! "
Morávamos no mesmo prédio. Meu filho tinha seis meses e eu, uma preguiça típica de mãe de bebê. O segundo andar era parada obrigatória, naquela sábado subimos por volta da hora do almoço para falar um olá e quem sabe buscar umas casquinhas de pastel. Entre uma beliscada e outra liquidamos a refeição por ali, chupando uma laranja descascada com destreza pela minha avó. Cada um se encarregou de tirar seu prato e fomos para a sala esperar a soneca da tarde chegar. O cochilo aconteceu no tapete felpudo esperando pela manta que seria posta - "só nas pernas" - antes do primeiro ressonar. Sesta tirada subi para o meu apartamento e meu avô desceu para o banho de sol do bisneto. Todo orgulhoso deu a segunda caminhada do dia empurrando o carrinho pelas ruas do bairro. Na volta passou pelo armazém para comprar quatro pãezinhos; dois para o lanche da noite e outros dois para o café da manhã. Quando voltou, acompanhou o banho como um perfeito auxiliar e me beijou carinhosamente na testa – “Tchau Pazoca” - enquanto eu amamentava. Naquela noite iríamos - eu, meu marido e o bebê – a uma festa junina. Por volta das dezoito horas, prontos, decidimos por outra breve passada na casa dos avôs, queríamos apresentar o pequeno caipira. Entre graças e gracejos nos despedimos.
Meu avô tinha medo da morte. Ele dizia que não queria morrer num hospital longe da família. Na verdade meu avô tinha medo da solidão.
A festa era lonnnnge, há mais de uma hora da nossa casa. Um pouco antes de chegarmos ao destino, recebo uma ligação agoniada da minha irmã pedindo que voltássemos, achava que o meu avô estava morto.
O trânsito da cidade foi generoso conosco, chegamos ao prédio junto com a equipe de socorro, a tempo de avisar o doutor que meu avô tinha medo da solidão. Ele não disse nada, mas quando entramos no apartamento encontramos um senhor deitado no sofá com as mãos cruzadas sobre o peito. Sem exageros, o médico nomeou o que já sabíamos, o meu avô estava morto.
Contida as lágrimas impulsivas, sentamos a mesa aguardando a chegada do carro funerário. Alguém providenciou um café, os vizinhos mais chegados e os mais curiosos foram entrando em meio aos sinais da cruz.
Minha avó, suspirando, contou o que houve. Depois que voltou do meu apartamento, decidiu tomar seu banho. Escolheu um pijama novo. Avisou que estava sem fome, talvez um pouco indisposto e ficaria no sofá, deitado. Ele nunca havia deitado no sofá. Minutos depois da nossa partida chamou minha avó e pediu que fizesse um chá de capim-cidreira. Do meio do caminho voltou a cozinha e com um leve beijo em seus lábios disse que a amava. Arrumou a almofada, deitou confortavelmente no sofá, cruzou as mãos sobre o peito e morreu.
Penso que morreu rezando, como seu pai. Meu bisavô, devoto da fé, morreu aos noventa e quatro anos, durante uma missa, em genuflexão após receber a hóstia.
Dizem os psicanalistas que cada filho esta mais filiado a um lado da linhagem familiar. Dizem os que acreditam que nosso destino está traçado. Não sei se podemos escolher.
Dizem tanta coisa ...

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