segunda-feira, 20 de maio de 2013

Carta branca

 
Existem várias formas de eternizar um personagem. Papéis de sucesso em Hollywood, grandes pensadores, inventores dignos de um Nobel e até mesmo um serial killer procurado pela Interpol. Mas não há método mais sólido do que acordar, perante um padre, qual será a carta branca de um casamento. Foi assim que Javier entrou em nossas vidas.

Era um sábado de primavera, os preparativos para a festa foram calculados durante os quatro meses que antecederam aquele vinte de novembro. A casa rupestre, na gema da cidade grande, foi escolhida e aprovada por todos: meus pais, meus sogros e a infinidade de padrinhos que abençoaram nossa união. As flores, as músicas, as comidinhas e a quantidade de bebida por convidado, tudo foi minuciosamente discutido, pensado, provado e aprovado. O vestido desenhado e confeccionado pela madrinha sofreu ajustes até a véspera. A ansiedade da noiva mostrou sua força e eficácia contra todos os regimes já tentados. Eu estava linda! Linda e radiante como uma princesa deve ser. O dia amanheceu ensolarado, mas manifestou sua revolta trazendo uma tempestade inesperada. Não foi suficiente para desmanchar nossa felicidade. Dizem que os casamentos abençoados em dias de chuva duram eternamente.  Às dezoito horas meu pai me esperava na porta do salão. Se emocionou como nunca antes e beijou minha testa me desejando o mundo.

Como manda o figurino fui entregue ao noivo. Só nos sabíamos do combinado, quando o padre terminasse o sermão e lê-se os votos, selaríamos nossa união com um beijo nos lábios e as cartas brancas em mente. Assim de simples.

Era um sábado de primavera do século passado. De lá pra cá a vida seguiu e aconteceu. Comemoramos a festa até o sol raiar, aproveitamos cada chocolate de menta esquecido no travesseiro da lua de mel, voltamos para casa nova, para o trabalho, para os estudos, para os filhos que vieram, para as crises e reconciliações.

Como nós, Javier seguia trabalhando. Durante esses anos encarnou toda sorte de personagens. Foi David em Carne Trêmula, o excepcional Ramon Sampedro em Mar adentro, impressionou o mundo como o assassino Anton Chigurh em Ondes os fracos não têm vez. Conheceu Penélope como Juan Antonio de Vicky Cristina e Barcelona e ganhou meu eterno amor contracenando com Julia Roberts em Comer, Rezar e Amar. Ah! Felipe! Quantas noites esteve presente em meus sonhos! Também se casou e com ela teve um filho: Léo, como o meu. Não era dada a superstições, mas a escolha do mesmo nome era muita coincidência, outra, além do Bardem – Bader. Destinos cruzados, não?!

Bom, vocês devem estar se perguntando o que significa uma carta branca. Pois bem: carta branca é um empréstimo do francês carte blanche, que traduzido ao pé da letra quer dizer cheque em branco. Com um pouco de transformação podemos utilizar a expressão como uma forma de atribuir poderes plenos e ilimitados a alguém. Dentro de um casamento monogâmico católico romano, quer dizer que você pode pular a cerca sem dó na consciência.  Seu uso é único e irrestrito, permite ao par que proceda como quiser, sem consequências para a união, quando de um objeto de desejo cruzar o seu caminho. Para que o documento seja utilizado com critérios de segurança, devemos garantir que o objeto representado seja alguém da ordem do impossível. O meu era Javier.

Tão logo todos saíram a campainha tocou. Que saco! Com o dia livre minha programação era sair da cama assim que o sol se pusesse. De cara e humor amassados, abri a porta e encontrei uma figura familiar segurando um envelope.

- Javier?!

- Sí,  ¿cómo está

Um pouco confusa perguntei a que devia a honra.

- Vino personalmente a darle carta blanca.

Vivi instantes de arrependimento. Pensei: maldita hora que eu desmarquei aquela depilação! Achei um pouco ousado me atirar nos braços do rapaz ali na garagem, o guarda, em alerta, caminhava com tanta agilidade de um lado para o outro que aquela altura eu já era manchete do jornal do bairro. No me importa! Convidei-o para entrar, ofereci a cadeira e pedi uns minutos para me arrumar. Chuveirada express, escovei os dentes, lavei rosto e vesti certamente o pior traje do guarda-roupa. Não pensava nem no meu marido, tão pouco em Javier, tentava a todo custo lembrar que modelito Penélope vestia na última capa da revista Caras. Decidi pelo moletom velho e despojado, acompanhado da camiseta branca surrada. Pra fazer um charme coloquei um sutiã preto e prendi o cabelo um tanto desarrumado. Passei uma base informal e um brilho nos lábios. Borrifei duas ou três vezes a água de colônia e fui. Na verdade eu estava mais para uma lavadeira do Abaeté do que para uma mulher sexy, mas ... Voltei para sala e ele, servido de uma dose de uísque admirava o quadro exposto na parede da sala de jantar. Caraca! Plena segunda de manhã, eu numa ressaca lôca, daquelas que nem o povo do Palau daria conta de rebater e aquele homem na minha frente tomando um destilado! Pelas barbas de Santo Isidoro de Sevilha!

- ¿quieren una dosis

- Sí, claro! Porque no? – era o máximo que meu espanhol suportava

- Que bella foto. ¿ donde és ¿Grand Central Station

- Não, não. É a estação da Luz, é central também , mas é aqui em São Paulo, capite?

- Sí, como no.  ¿  Puedo poner una canción.

- Si, como no. Puede ligar.

O tempo para a leitura do CD certamente foi o silêncio mais duradouro que já vivi em toda minha vida. Adormecido na caixa três do tocador estava, nada mais nada menos, que a famosa Mart´nalia ao som de Cabide. Entreguei pra G-zuis! Entornei o copo ao mesmo tempo de Javier completava o outro. Surreal era o adjetivo mais simples para descrever a cena. Quando a negona soltou a pérola “Quero ver chegar junto Prá me juntar, eh! Me fazer sentir mais viva Me apertar o corpo e a alma Me fazendo suar Quero beijos sem tréguas Quero sete mi'léguas Sem descansar Quero ver Se você tem atitude Se vai encarar... “

-   ¿  el que és el bela canción

O que você responde para um cidadão a respeito da letra dessa música! Trata-se de sexo selvagem, amore mio. É disso que se trata, mas eu não sabia traduzir pro tal do catalão “chegar junto pra me juntar”, era demais pro meu latim. A malemolência da carioca de Vila Isabel falava por si. Bastou meu olhar, ele com aquela mão carnuda, dedos grossos, me puxou pelos cabelos e enquanto segurava minha coxa em volta da sua cintura, lembrei do meu pai me desejando o mundo, do acordo com o marido, da benção secreta do padre e dos intermináveis anos de análise negociando com minha analista e meu super ego o tal do reconhecimento do meu desejo insconsciente ... ele estava ali, encarnado no melhor modelo. Aumentei o volume e não passei vontade. Bem soube o quanto o pé de mármore da mesa de jantar era resistente. Pagamos em cinco parcelas dolorosas, mas sabíamos que era forte. Aguentou a mim, Javier e toda sorte de desejos inescrupulosos que habitavam minha mente. Ah Javier! Nunca mais serei a mesma; tamanha a vergonha que passei, quando a Maria, minha empregada diretamente de Carapicuiba, me acordou assustada:

- Dona Patricia, dona Patricia ... tá tudo bem com a senhora? Tá sentindo alguma coisa?  Quer que eu peça ajuda pra vizinha? A senhora tá tão estranha ... vou preparar um chá e já volto.

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