segunda-feira, 13 de maio de 2013

Casu Marzu : a larva.


Por favor, entre. Que bom que chegou! Deixe eu guardar sua bolsa e seu casaco. Quer tomar alguma coisa? Acabei de preparar um chá, mas se preferir passo um café. Nem uma água? Vou buscar. Sente-se. Mais uma vez obrigado por vir, preciso muito te contar uma história. Já faz um tempo que tenho sentido um mal estar pela manhã. Pensei que fosse algum processo infeccioso, tomei uma medicação por conta, melhorou um pouco nos primeiros dias, mas depois além do aperto no peito, as dores estomacais agravaram meu estado. Decidi me consultar com um médico, não sabia quem procurar até que os colegas me indicaram um clínico geral com especialidade em coração. Disseram que na minha idade seria importante avaliar o rendimento cardíaco, tantos anos trabalhando com fermentação, cavocando buracos nos queijos, minha pressão alterada ... enfim, aceitei. O doutor demonstrou preocupação logo de cara; pediu uma infinidade de exames, teste ergométrico e cuidado com a alimentação. Achou prudente largar o cigarro. Expliquei a ele que meu trabalho não favorecia suas recomendações e que o cigarro ... não passavam de cinco por dia. Com essa vigilância pro-saúde, programas anti-tabagismo, meu prazer estava bastante limitado. E quanto ao emprego ... onde uma larva como eu conseguiria um colocação tão digna?! Bem sei quantos degraus galguei para chegar aqui! Foram anos de dedicação.
Na juventude fiz estágio numa fruteira apodrecendo bananas e laranjas, depois consegui uma vaga na goiabeira do seu Nhô Lau. Trabalhei por uns tempos nos sacos de arroz e nos pacotes de feijão e de farinha de trigo, mas nada, nada se comparava com a fermentação. E não se trata de qualquer seguimento de laticínios, você sabe como é. Na época dos iogurtes eu vivia com azia, quando passei no processo de recolocação interna para a vaga do meia-cura, meu tormento era o sotaque mineiro e nem por isso deixei de ir, na sequência teve o cream cheese, o queijo prato, as bolinhas de mussarela de búfala e eu sempre presente e dedicado ao trabalho ... até que no último ano, finalmente fui promovido ao Casu Marzu ... o mais puro queijo de ovelha já visto no mundo! O The Washington Post dedicou um artigo sobre meu trabalho! Ganhamos o prêmio Noticia Bizarra do ano, mas e daí?! Nem os Nobels conseguem um espaço de tanta visibilidade na mídia. 
Ah! Agora eu sei que sou da tropa de elite dos queijos. Aquele aroma, a mudança de coloração durante o decomposição  ... uma verdadeira obra de arte, me lembra muito as pinturas do Renoir. 
Posso ser acusado de vaidoso, mas como não ser?! Eu sou um verme! Um verme! Um verme que não tem a chance nem mesmo de virar mosca! Eu posso ser devorado antes! Com a proibição da comercialização do queijo, os apreciadores estão cada vez mais ousados. Deram agora para comer o queijo sem esperar nossa partida. Pegam a colher  e degustam minha vida com uma taça de vinho em punho. 
Você não é a primeira pessoa a falar isso. Ja pensei se estou com depressão, mas se for ... o que posso fazer? Viver no campo?! Que seja ironia, sair daqui seria um ato de covardia. Todos almejam minha posição. Sou reconhecido, louvado, tratado com respeito como poucos. Não estou sendo arrogante, é verdade. Desde que fui promovido sou tratado por doutor, ainda que minha especialidade seja apodrecer queijos!!! Isso é irônico. 
Sim, sim, tenho lido reportagens sobre a vida minimalista, mas você há de convir que não existe vida mais mínima do que a minha, lembre-se: eu sou um verme. 
Negação?! Mecanismo de defesa?! Será!? Você tem alguma razão. Não tenho mais amigos, minha última namorada ... não lembro, talvez na fazenda. Férias? Emendei o feriado do dia do trabalho no ano passado, caiu num sábado. Mas era meu plantão! 

(Silêncio)

Pensando bem o campo pode ser uma ... sempre é uma opção. O mercado de trabalho é convidativo; não é tão glamouroso, mas a alimentação é orgânica, posso tomar banho de sol todos os dias, passear pelos pastos e com um pouco de sorte até virar mosca. As vacas não são tão ágeis quanto os queijolatras. Demoram a alcançar as feridas com aquela língua gosmenta. 
Conheço um cara que tirou uma ano sabático. É um bom jeito de encarar um afastamento. 
É ... você tem razão ... sabe que me sinto um pouco melhor?! Falar é sempre bom. De qualquer forma muito obrigado. 
Podemos nos encontrar a semana que vem?
Quer mais uma água ?  

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