quarta-feira, 22 de maio de 2013

Manual alternativo de patologias relacionais


Em meio ao lançamento do último DSM, o V , tenho lido reportagens de toda sorte de críticas e indignações a respeito do excesso de diagnósticos propostos pelos ditos papas da psiquiatria. O normal se patologizou e por conseqüência se medicalizou. A isso soma o discurso de que a criação de categorias diagnósticas bem definidas orienta o trabalho dos profissionais de saúde, pois estabelece diretrizes terapêuticas. Fato é que a galera não se apresenta mais pelo apelido, nome ou sobrenome; viramos uma grande família: dos deprimidos, ansiosos ou qualquer outra possibilidade. E eu, que sou uma integrante da segunda maior família brasileira – a primeira são dos Silvas e a segunda dos Santos, os Souzas não tem com o que se preocuparem, ocupam o terceiro lugar – perdi posto. 

Os consultórios lotam de humanos – muito jovens e muito velhos – enchendo a cara de pílulas milagrosas. Trabalhando a partir do dispositivo da psicanálise tenho sambado miudinho para dar conta de manter um canal de comunicação com os profissionais que tem o poder, ou seja, o receituário azul. Quando usar ? Porque usar ? De que forma usar ? são perguntas constantes na clínica. As famílias ou os adultos que vem para análise – e, portanto já fizeram um movimento em busca de ajuda – normalmente nos questionam sobre efeitos do uso da medicação. Respondo: eu não sei. E de fato não sei, pois as conseqüências (ou desdobramentos) que podem ocorrer ao se reconhecer numa tipologia patológica com uma medicação específica, só aparecerão a posteriori. Conheço pessoas (algumas) que fazem uso contínuo, há anos, de medicações psicoativas, pois entendem um transtorno transitório como uma patologia crônica. Sabemos, que a lógica da pulsão tende a evitação do conflito, o que ela quer é realizar-se, chegando a um ponto muito próximo do zero. O trabalho de uma análise se propõe a adiar essa compulsão a repetição e para isso recorre-se a outras formas de suportar a dor, em geral utilizando o método da palavra. Às vezes a briga é injusta.

Recordar, repetir para só então elaborar perde terreno para anestesiar, esquecer e repetir, a partir do mesmo lugar, com uma maquiagem diferente. Trata-se de um traço sutil; percebemos nas nuances do discurso um sujeito posicionado na vida a partir de um diagnóstico medicado.

Outro dado importante é que tem muita gente ganhando dinheiro volumoso com isso e essa cara não sou eu. Psicanálise dá trabalho, não é dos tratamentos mais baratos (ex: uma caixa de um remedinho que segura a onda das mulheres no puerpério e de lambuja promete aumentar a produção de leite custa R$10,30 nas melhores drogarias), custa tempo (vamos combinar que uma vez por semana é o mínimo para o tratamento funcionar) e não tem a dose definida de saída (diferente da classe de antidepressivos que promete um ano de tratamento assim que o sujeito se sentir plenamente feliz, ou seja, nunca).

Um ponto questionável nos manuais diagnósticos de psiquiatria diz respeito ao texto se propor a catalogar e agrupar sinais que compõe uma categoria nosográfica. No entanto, não há, nem antes nem depois, capítulos que se ocupem em discutir etiologia, consequências e tratamentos. Parece que as coisas são porque são.

As teorias psicodinâmicas, sociais, antropológicas enfim, a turma das ciências humanas, queimam a pestana tentando compreender como uma gente vira gente, como se tornam saudáveis e/ou doentes. Em comum concordam com uma palavra: alteridade.

A respeito da alteridade, outro dia, assistindo a aula de uma colega competente, discutíamos que a melhor forma de se fazer gente é com outra gente (de preferência com alguma qualidade). O problema é que gente não vende, porque tá aí aos montes, basta olhar para o lado que certamente tem uma gente dando sopa. Já mini ofurô para banho, termômetro ultra sônico, babá eletrônica tridimensional que traduz o significado do choro do bebê, porta pedaço de picanha para retirar o sumo da carne e lenços aromatizados de lavanda e melissa que servem para acalmar o recém nascido , ah! ... isso não tem em qualquer lugar (em Miami certamente tem), custa caro, a publicidade se regozija com cada propaganda veiculada e por aí vai. Com diria Salim: "loginha" de promessas.

Bom, decidi entrelaçar esses dois temas (sociedade do consumo e pandemia de doenças psiquiátricas) com a pretensão de vender meu peixe (rico em ômega 3), afinal de contador de caso e caixeiro viajante todo mundo tem um pouco.

Proponho então, a criação de um manual alternativo para patologias relacionais. Isso quer dizer que a etiologia dos quadros abaixo derivam da troca com o Outro, at all.
Os quadros foram apresentados seguindo um trilhamento cronológico, contudo vale ressaltar que contingências podem interferir no momento da manifestação, ou seja, durante toda vida.

1.Transtorno dismórfico corporal da primeira infância: acomete bebês que se oferecem enquanto objeto de satisfação do Outro. Em geral eles acreditam que se resumem a uma mãozinha ou um pezinho e por vezes, a própria barriga e que a parte do corpo elegida saciará a fome da mamãe.

2.Transtorno de angústia de separação: normalmente ocorre por volta do 8º mês de vida, a criança demonstra estranhamento quando separada das figuras importantes. Manifesta insegurança através do choro e resistência em permanecer com pessoas que não a mamãe. Conhecido também como a Crise do Baby Sauro.
 
3.Transtorno esquisito de aquisição de linguagem: a criança nomeia objetos a partir da sua função. Normalmente indica uma imitação dos genitores que regrediram a idade mental da mesma chamando o carrinho de vrumvrum. Praticamente um grunhido. Na gramática pertence a classe das figuras de linguagem e tem um nome bem sugestivo para um transtorno: onomatopéia.
 
4.Síndrome do bicho papão: a criança jura que um monstro S/A habita o andar de baixo da sua cama, alguns se escondem dentro do guarda-roupa e os menos habilidosos permanecem atrás da porta. Os sinais associados são: dificuldade em dormir no escuro, sustos espontâneos e eventualmente xixi na cama. Existem variantes da tipologia dos monstros como: bruxas, dinossauros, assombrações. Alguns estudos (com hipersensibilidade) indicam que esse transtorno tem uma intenção subliminar : dormir agarradinho com a mamãe e o papai.
 
5.Distúrbio do Marcelo, Marmelo, Martelo: o nome do quadro foi dado em homenagem a PHD Dra. Ruth Rocha, que descreveu pela primeira vez o quadro sintomatológico do seu paciente MMM. Trata-se de crianças que questionam o sentido e significado das coisas. Há relatos de comorbidade com o 5.1Transtorno Ecolálico com prevalência da palavra PORQUÊ, PORQUE e POR QUE.
 
6.Distúrbio sonoro esquizo alucinatório: acomete mais meninos do que meninas, trata-se de um prazer discordante dos bons comportamentos instituídos pelas mães (somente as mães) . O fedelho costuma arrotar e soltar pums em ambientes inadequados (embora nesse caso só o banheiro seja adequado). Quando acusado diz que nada aconteceu, que não ouviu nada, atribuindo ao observador o caráter alucinatório. Causa incômodo em ambientes fechados e situações silenciosas, como: reuniões, missas e consultórios médicos.
 
7.Transtorno da Liga da Justiça: mais comum de acometer primogênitos que costumam questionar e reivindicar seu reinado. Manifestam-se de forma birrenta sempre que o caçula obteve, segundo seu parecer, algum privilégio. Pode ser desde uma bala até aquele dia, há meses, que o fulaninho dormiu na cama dos pais, porque estava com 40 de febre e ele, o maior, não. Alguns choram , outros gritam. Em casos mais graves podem bater o pé no chão em sinal de protesto. 7.1 Comorbidade com o transtorno somatoforme atípico: quando sugerem doença sem causa aparente. Para diagnóstico diferencial basta dar um beijinho no local indicado, se passar confirma o transtorno.
 
8.Transtorno tripolar: os primeiros sinais aparecem na pré-adolescência. Alternam estados de euforia com profunda depressão e, ocasionalmente, instantes de plena indiferença, normalmente basta o(a) melhor(a) amigo(a) ligar convidando para sair que tudo se resolve.
 
9.Transtorno disrruptivo de besteirol: revela-se através de um ataque súbito de risadas exageradas sem motivo aparente. Indicam que uma palavra, um gesto ou qualquer bobagem que o valha, em geral vinda do outro, causou o quadro. Altamente contagioso, de rápida transmissão e propagação. Custa a passar. Pode acarretar lacrimejamento sem sugerir tristeza. Conhecido popularmente como "chorar de rir".
 
10.Transtorno de espelhamento: a criança ou adolescente passa horas em frente a um objeto refletor. Normalmente esta associado a sinais precoces de auto-reconhecimento. Os mais afetados pelo transtorno, quando questionados, respondem que mantêm esse comportamento por serem muito lindos. De forma covarde acusam os genitores de terem reforçado essa crença.

Se apresentar 2 ou 3 dos sintomas abaixo, certamente sua cria padece de uma moléstia gravíssima, procure imediatamente ajuda, você pode levá-lo ao parque, convidá-lo para fazer um bolo de chocolate, tomar banho de chuva, ver um filme de sofá com pipoca ou cantar uma música de suas preferências. A posologia será definida enquanto durarem os sintomas. Alguns casos apresentaram efeitos colaterais severos como reforçamento dos sintomas. Atenção : sujeito a vício.

Se você tem algum relato, depoimento, declaração ou testemunho sinta-se a vontade, esse é um canal aberto. Como profissional da saúde entendo e concordo com a necessidade de diretrizes, mas a partir da clínica me oponho aos abusos que se mostram tão ou mais violentos do que a própria doença.

Além do mais, para a vida, a cada dia reafirmo a certeza que o humor bem dosado é uma forma de resistência aos excessos.

E em breve lançaremos o DSM da mulher madura.

Aguardem.
 



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