domingo, 21 de abril de 2013

Dois personagens


Cliff sabia o quanto podia contar com Rimini e sabia que era pouco. A conversa que teve com o amigo, antes de partir em turnê, deixava claro os sinais de decadência. A sujeira no apartamento traduzia a condição decrépita em que se encontrava. Os papelotes de cocaína, misturados com a foto de Sophia na gaveta do escritório, o preocupava. Há meses sua rotina era marcada pelas carreiras e lamentações sem fim. Seu cheiro denunciava a melancolia instalada. Nos momentos que se dispunha a falar, recitava sonetos auto-acusatórios. Abandonou o trabalho e ignorou, uma a uma, as tentativas de contato dos poucos conhecidos. Recebia a entrega da droga no  próprio apartamento, sem cerimônia, normalmente vestido com o trapo de cueca corroído pelo tempo. Despertava para cheirar a carreira mais longa do dia, aquela que apagava da memória tudo, menos o rosto de Sophia. Cliff testemunhou o infortúnio desde a separação. Foram doze anos de relacionamento com toda sorte de excessos que ela pode tolerar. A mudança de cidade, de emprego, as traições, a frustração pelo livro inacabado e as drogas. Acompanhou seus devaneios na juventude, mas decidiu pela vida adulta. Desejava um filho, desejava o controle mínimo da rotina doméstica. Cansou em legitima defesa e partiu sem deixar sinais. Pra trás ficou o quadro de Riltse comprado na viagem a Londres que servia de inspiração a masturbação matinal. Durava o instante de gozar, suficiente para deprimir o resto da tarde.   
Não seria a primeira vez que suas vidas tomariam rumos diferentes. Enquanto Rimini ignorava a imensidão do mundo, Cliff daria mais um passo em direção a ela. A turnê, prevista para o inicio de maio, afastaria sua presença por cinco meses. Propôs aos integrantes que levassem um jornalista para resenhar o percurso da banda. Na verdade nunca se importou com a mídia, os holofotes o causava enjôos, mas sabia que na volta não o encontraria. Queria o por perto. 
Cliff sentia pelo amigo a eterna gratidão dos sobreviventes. Conhecerem-se no conservatório, assim que o argentino mudou-se com a família para América. O pai de Rimini, burocrata de profissão, foi transferido para a Califórnia a revelia do desejo da mulher e do filho. O menino odiava tudo e todos, a língua, os hábitos, os padrões americanos. Só gostava de música, talvez seu ponto nodal com a terra natal. O tango, para um jovem adolescente, representava a tristeza visceral que falava de si. Cliff, também gostava de música - da depressão do blues - e da consternação que ela trazia. Lembrava do irmão morto precocemente e da promessa feita em silêncio na beira do caixão, de que seria um baixista melhor para ele. Foi o desalento que os uniu. 
O destino de Rimini foi outro, trocou a palheta pelo lápis e decidiu ser escritor. Cliff transformou seu luto em raiva, dos acordes melódicos partiu para a fúria metaleira. A família preocupava-se com o envolvimento do jovem cabeludo no mundo das drogas, não suportariam o risco de perder outro filho. Estavam enganados, junto com outros colegas do conservatório fundaram uma banda e ele demonstrou sua total responsabilidade. Gravaram o primeiro álbum de forma tímida, mas rapidamente alcançaram o apogeu com o lançamento de Master of Puppets. Sentia que estava lançado ao destino como um fantoche.  
Mesmo com a concordância de todos, Cliff não conseguiu arrancar o amigo de casa. Fez Rimini prometer que se cuidaria, que deixaria o pó de lado, que voltaria ao emprego. Assim o fez e com um nó na garganta o abraçou  e partiu. Não era dado a emoções, lembrou do irmão, olhou pra trás, mas não viu mais ninguém. 
O frio da Europa era severo. Mal conseguiam dormir no ônibus naquela posição. Decidiu que arrancariam os bancos e no lugar colocariam beliches para garantir um pouco mais de conforto entre uma cidade e outra. Não havia lugares para todos, a cada noite disputavam em jogo de cartas a cama privilegiado. Assim foi, partiram da Noruega rumo a Suécia e com um ás de espadas ganhou o melhor lugar. 
Como de costume, anotou no diário o percurso do dia e a programação para a nova cidade. No canto da página rascunhou o nome do amigo seguido de três pontos de interrogação. Como estaria? Seria que o encontraria vivo? Bastou uma curva para descobrir a resposta. Um pedaço de gelo fez com que o ônibus derrapa-se na pista arremessando todos para fora dos seus lugares. Cliff voou pela janela, tendo seu corpo esmagado entre a carcaça de metal e a solidez do asfalto. 
Clifford Lee Burton, morreu em 27 de setembro de 1986, aos 24 anos, em Ljungby na Suécia. Seu corpo foi cremado e durante o cerimonial os integrantes da banda interpretaram a música instrumental Orion, do álbum Master of Puppets, título nunca tocado por Cliff ao vivo. Rimini não compareceu ao funeral. 

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