quarta-feira, 10 de abril de 2013

Visão


Tenho trinta e oito anos e uma proximidade hipermétrope dos trinta e nove. Os medidores oficiais precisam a distância em três graus e meio para o esquerdo e três graus e setenta e cinco para o direito, ainda que eu não compreenda com nitidez quanto isso significa. Seria mais simples se dissessem que estou a cem metros ou duas léguas de algum lugar, mas decidiram pelos graus e quanto a isso só posso sentir, como a água do banho ou a temperatura da mar. Não foi preciso, diretamente, que ninguém dissesse o quanto minha percepção estava alterada, eu percebi, de um jeito um pouco dolorido. Mais exatamente pela minha cabeça e meu estômago. Fiquei em dúvida. Pensava que a cabeça reclamava da falta de sono somado a pressão da prova final de física e o estômago, por sua vez, acusava o excesso da mistura de coca-cola com café que servia para evitar o sono em decorrência da matéria da prova de física. Sem muita saída - meus pais dormiam profundamente, o relógio acusava a madrugada e a prova estava marcada para a manhã seguinte - fechei os olhos e estiquei o pescoço para trás por doze segundos. Naquela semana recebemos a visita do pintor de paredes que havia liquidado o último galão de látex branco neve no teto da cozinha. Sorte! Durante o retorno a posição inicial abri involuntariamente os olhos e me deparei com a imensidão alva que se sobrepôs , com nitidez, as fórmulas enigmáticas a cerca do delta tempo, espaço e velocidade. Meu incômodo passou no mesmo instante que eu enxerguei os escritos do caderno. Foram horas brincando de ler o preto do lápis após o branco do teto. Poucos dias depois ganhava meu primeiro par de óculos e meus olhos um sobrenome: hipermetropia. 
Em resumo trata-se de uma disfunção de excesso. Eu enxergo as coisas pequenas do mundo maiores do que elas são. Tão maiores - naquela época meu déficit em graus era meio do esquerdo e zero ponto setenta e cinco do direito - que era capaz de distorcer seu formato original. Além dos óculos eu podia usar duas estratégias: apagar do meu campo de visão todos os excessos que comprometiam a percepção do meu alvo ou tomar distância dos objetos para mantê-los no tamanho original, decidi pelos óculos, vermelhos.
A dor de cabeça continuou sendo uma aliada, mas por prudência reservei um dia de cada ano da minha vida para visitar o medidor oficial de graus. Fui informada, que muito provavelmente, meu déficit alcançará seu ponto máximo por volta dos meus quarenta e cinco anos entre quatro graus e quatro graus e meio. Dane-se! Agora além dos óculos uso lentes de contato. Estranhas familiares que as vezes se confundem com a minha visão. Elas são incolores e bem pouco maiores do que o verde dos meus olhos. No começo tinha por elas um misto de medo e aflição, algo parecido com a sensação diante da imensidão do mar. Hoje a intensidade diminuiu, mas as trato com respeito. Muito porque elas garantem uma percepção das coisas que não é mais a mesma que eu tinha antes daquela noite, mas também porque elas me desafiam; para ver por elas, por um momento, deixo de vê-las. A brincadeira vale a pena, me divirto com o tamanho dos fatos. Posso enxergá-los imensos, posso ficar distante. Posso achar que eu tenho oitentas anos, posso achar que eu tenho dez. E sabe qual o melhor de tudo? Descobri que posso molhá-las sem correr risco. 

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