terça-feira, 31 de maio de 2016

Feriado

Costumamos reunir a família para comemorar o aniversário dos meus sogros, ambos com 86 anos; quatro dias é a diferença de idade entre eles. Por apenas esse intervalo de tempo, o homem torna-se mais velho do que a mulher. Isso nunca foi motivo para mais ou menos respeito: sendo homem ou mulher, velho ou novo, ensinaram aos filhos e aos netos a importância do cuidado ao próximo.


Decidimos alugar uma casa de campo em um condomínio no interior do estado. Conhecemos o lugar por intermédio de amigos. Trata-se de um recanto privilegiado, com pouco mais de 500 casas que compõe o cenário ideal junto a mata virgem, a represa, bucólicos saguis e  legiões de quatis.
 Lá, crianças passeiam livremente com suas bicicletas, velhos caminham pelas ruas com tranquilidade, mães empurram os carrinhos dos seus bebês, as casas prescindem de portões como um convite a civilidade.
 Muitas são as áreas comuns: quadras de tênis, campos de futebol, parques infantis com monitoria especializada, espaços para eventos, restaurante e uma náutica para os mais bem aventurados. Para o conforto e segurança da população, o espaço conta com rigoroso sistema de monitoramento, portaria com funcionando contínuo , guardas fazendo a ronda por terra e água, controle de velocidade com radares eletrônicos, posto de gasolina e um equipado posto médico capaz de resolver problemas complexos.
 A natureza, a presença dos amigos, a liberdade proporcionada por tanta segurança convida a voltar. Já estivemos aqui em outras ocasiões e sempre ponderamos a ideia de mantermos ou não uma casa fixa.
 Alugar um final de semana por mês? Ou buscar um casal de amigos, talvez dois, para dividir uma temporada? E se fizermos uma aposta por um ano? Será que viríamos? E as atividades em São Paulo? Mas tem o voley com o pessoal do bairro aos domingos? E também  nossos pais? Mas é tão tranquilo! E seguro!
 Meus sogros aproveitaram muito o passeio. Estávamos receosos por modificarmos a rotina deles por quatro dias - cansam com facilidade e recente a proteção do ambiente doméstico - mas a presença das crianças, as boas conversas , a comida caseira e a atmosfera do local contribuíram para a experiência de bem estar.


 Sempre nos programamos para esse passeio: costumo caminhar à exaustão com as amigas, as crianças andam quilômetros de bicicleta, intercambiando pelas  casas de novos desconhecidos, meu marido consome um pacote de bolinhas no tênis todas as manhãs. Montamos um cardápio caprichado, trazemos boas bebidas e bons livros.
 Na quarta, um pouco antes de pegarmos a estrada, passei na editora para me abastecer da última indicação literária: Equador, um romance escrito por um autor português, Miguel Souza Tavares, sobre "um retrato primoroso dos últimos anos da monarquia portuguesa".
 O desconto garantido a professores, somado ao desejo de possuir todos os livros, fizeram com que minha sacola e conta pesassem um pouco mais: comprei mais um exemplar da nova tradução do Freud, um Manoel de Barros, um livro de receitas e Amós Oz em Como curar um fanático.
 Das mais gratas surpresas que tive nos últimos tempos, Amós Oz me fez ignorar a caneta (pois o livro mereceria ser grifado inteiro),  lê-lo em voz alta (para qualquer um que passasse por perto) e arrepiar do começo ao fim.
 Composto por ensaios - o último deles escrito após o ataque à Paris em 2015 - se propõe a reflexão (e saída) sobre a guerra eterna entre israelenses e palestinos. No entanto, o alcance das discussões inunda a mente de associações a respeito das relações humanas, seja lá ou aqui na esquina.
 Defende que a guerra e a violência são frutos das agressões produzidas e disseminadas há séculos, que a prática de infligir a dor ao outro cria a cultura da guerra. A saída não seria o amor pelo próximo, mas sim a paz.
 O amor serviria a paz, se tomado, antes de mais nada, por um profundo senso de justiça, por um necessário senso comum e pela tolerância em estabelecer acordos de compromissos que por vezes podem ser muito dolorosos, mas não fatais. Acrescenta que a única maneira de acabar com idéias ruins seria a proposta de idéias melhores oferecidas através do diálogo, não da violência.
 Equador, ainda em leitura, atende a proposta do final de semana: gostoso como caldo quente em noite fria, mas deixa o posto de melhor - conveniente como água fresca no deserto - para Amós Oz. Leiam.


 Nossos amigos lembraram que no feriado ganharíamos de bônus a tradicional festa junina do condomínio; ocasião esperada por todos que reuniu no último ano 3500 pessoas.
 A administração (profissional) organiza em um espaço comum e cercado, um arraial digno das quermesses de São João do Nordeste. Comidas típicas de qualidade, bebidas bem temperadas, barracas de prenda para a molecada, fogueira gigante e boa música caipira. O ambiente, reconhecido por familiar, agrega pessoas de todas as idades em busca de confraternização. Tudo mostra-se impecável: a venda antecipada de ingressos e fichas de consumo, o toldo protegendo das intempéries do tempo, o gerador dando suporte ao inesperado, os seguranças circulando, a ambulância à disposição, até o projeto social representado pela ONG disposta a arrecadar fundos para ajudar a população carente do entorno.
 Eu e as crianças fomos cedo. Mesmo escuro - porém imbuídos por um espírito aventureiro, certos de que o grande perigo seria apenas uma macaco arteiro - decidimos cortar caminho pelo atalho no meio da floresta. Os outros adultos foram depois: esperaram o anúncio do campeão da liga dos campeões.  Quando chegaram, buscamos abrigo para os velhos. As crianças, já em posse das fichas, disputavam prendas baratas na barraca da pescaria.  Apenas dois peixes, verdes - em meio a dezenas de outros de outras cores - garantiam a escolha do melhor brinde: uma bola de futebol. Esses ficavam a distância mais distante dos pescadores que reivindicavam o acesso. Meu caçula, de dorso pendurado no muro de madeira, sem conseguir o que queria, convocou o irmão à ajudá-lo. De pouca idade,14 e muita altura, o adolescente esticou o braço com facilidade e pescou a desejada bola vermelha. Orgulho do irmão mais velho e a sensação de vitória!
 Os menores, um garoto de 10 e duas meninas de 9, vieram seguidos do mais velho ao nosso encontro mostrar o troféu e felizes, partiram, em busca de mais aventura.
 Encontraram.
 Uma de nossas amigas apareceu aflita e apressada gritando por ajuda. Algo havia acontecido com o meu filho mais velho, talvez uma confusão, não sabia direito.
 Imediatamente pensei que havia se machucado - o lugar contava com escadas, morros íngremes e chão batido revestido de pedregulhos.
 Por mais que procura-se, não o via, tampouco os pequenos. Os amigos formam chegando e dizendo que agora estava tudo bem. Mas o que aconteceu? Onde ele estava? Sabia que estava protegido pelo próprio ambiente, mas queria vê-lo e entender o ocorrido.
 Em meio à multidão, ao meu lado, uma homem de 30 anos, baixa estatura, cor de pele clara, olhos claros, acompanhando de mulher e filha pequena, estava agitado contando para um outro o incidente: " o guarda falou que foi ele que pegou a ficha, caiu no chão, ele pegou, eu fui até lá e joguei ele no chão, fiquei com raiva, ataquei pelas costas, mas quando vi era só um menino" .
 Me apresentei como a mãe do menino, meu marido que vinha um pouco atrás também. O homem, tentando recobrar a compostura, insistia na história que o garoto pegou as fichas que caíram do seu bolso no chão, enquanto ele buscava no bolso da calça o celular para tirar uma foto da esposa com a filha.
 - " As fichas estavam perto de mim, eles pegaram e saíram"
 - " E quem são eles?!"
 - " Um grande e um menor".
 - " E cadê o meu filho?!"

 Um outro que passava avisou que o guarda levou para a ambulância. Corri até lá e estavam os dois sendo acudidos pelo enfermeiro. Estavam bem.
 O menor, chorando de nervoso, pediu para contar o que houve: " Ohmãe, agente tava brincando e viu uma ficha no chão, não era de ninguém, estava no chão, nos pegamos e fomos pra pescaria com a meninas, aí eu vi as meninas saírem correndo e olhei pra trás e o Léo tava no chão e um homem gritando que ele tinha roubado, encima dele, nervoso. Aí eu comecei a chorar, eu fiquei com medo do homem bater no Léo, e ele não parava de gritar e o Léo falava pra ele parar que ele tinha 14 anos, aí ele parou e o guarda veio ajudar o Léo e trouxe agente pra cá. Eu fiquei com medo."
 O maior, contou a mesma a história. Acrescentou a cena o ato de agressão: estava em frente à barraca de pescaria com os menores, quando sentiu uma pessoa puxar seu rabo de cavalo ao mesmo tempo que puxava seu corpo para trás . Por instantes achou que poderia ser uma brincadeira ou talvez um encontrão, mas assustou quando um homem, adulto, se posicionou em cima dele e começou a gritar "você roubou, você roubou" e então, assustado respondeu "não roubei, calma, calma tá aqui, calma" e nada fazia pará-lo, foi então que disse: "eu tenho 14 anos!"
 Curativo feito, choros contidos, voltamos ao local do acontecimento. O homem adulto estava lá . Meu marido muito nervoso, controlou com rigor o desejo de partir para o ataque. Questionamos o ato numa discussão calorosa:
 - " Como você se chama cidadão?"
 - " Guilherme."
 - " Guilherme, você tá louco?! Tome aqui suas fichas."
 - " Foi um ato deliberado, ele pegou as fichas do chão!"
 - " Exatamente, do chão, não de ninguém! Ato deliberado foi o seu, agredir pelas costas um menor "
 - " Mas eu achei que ele tinha 20 anos!"
 - " E você bate pelas costas em alguém de 20 anos?!"
 - " Desculpa, eu me excedi, perdi a cabeça, desculpa."
 - " Você foi um covarde, bateu numa criança pelas costas, você tem uma filha pequena, é isso que vai ensinar pra sua filha? Covardia?"

 Discussão finalizada em ato simbólico, meu marido deu uma cusparada em outro punhado de fichas e entregou para o cidadão.
 Visivelmente transtornado pediu desculpas mais uma vez e se afastou. Sua mulher, instigando a cena, grita em minha direção:
 " O outro rouba e acha que tem razão, vamos embora."
 Se meus ânimos estavam controlados, despertaram como vulcão. Em dedo em riste, milímetros daquele narizinho finalizado no botox, exigi reparação, do contrário, quem resolveria aquela cena seria a polícia, adulto que bate em menor , ainda mais pelas costas é bandido e bandido deve ir pra cadeia.
 A covarde complementar abaixou a pestana e partiu, pelos fundos.
 Restou um retro gosto de mal estar no que sobrou da festa. Os amigos foram trazendo pedaços de relatos para compor a cena. " O cara tava bêbado . O amigo dele mandou ele ficar onde estava. Ele tentou amenizar e disseram para ele que o menor tinha pai e mãe e era melhor ele esperar. Ele queria arrumar confusão. Ele não é daqui do condomínio".

 Fato é que nada justificava.
 Também não justifica uma certa paralisia das pessoas em volta.
 Estávamos protegidos pela cerca, pelo passe, pelo acordo, mas não.

 A ilusão do ambiente seguro foi rompida pela presença do homem, pertença ele ou não aquele lugar.
 Ao homem que não participou do pacto de paz, que não assinou o compromisso de civilidade, que decidiu pela bem individual em detrimento do bem coletivo, que deliberadamente concluiu que crianças que pegam fichas de papel do chão - cena repetida à exaustão durante a festa junina por crianças e adultos que cruzavam com um papelão de 0,50 centavos caídos no chão - são bandidas que precisam ser punidas no susto, que se autoriza a bater em alguém suposto de maior pelo tamanho do corpo, que não se constrangi na presença de uma filha de colo no colo, que não usa da palavra para resolver impasses, que se encoraja pelo uso de álcool, que cogita escapar do ato de reparação, que acredita que não haja lei, que não reconheça a lei e seus efeitos na organização do grupo.

 Felizmente tudo ficou bem.
 Foi só uma cena.
 Meu filho conseguiu impor palavras onde prevaleceu a violência.
 " Calma, você me jogou no chão, não é assim que resolve as coisas."

No mesmo dia, um morador do condomínio, homem mais velho, amigo nosso, pediu desculpas ao Léo em nome das pessoas de lá.
Ato de coragem falar por todos.
Certamente ele é um homem corajoso.

Queria ter dado o livro para o moço Guilherme, não deu.
Com os meus filhos pude ler e conversar.

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