sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Porta

A invenção da porta data do início da humanidade. 
Eva pediu para o Pai acordar do descanso do sétimo dia e construir, com urgência, um tapume de madeira, assim que ouviu o primeiro pum do moço Adão.
Achou aquilo de tremendo mau gosto. Deus, a contragosto, aceitou o desafio, mas recomendou: não precisa trancar, estipulemos a barreira física como limite e desejemos as ovelhas, obediência.
O casal, servo do senhor, bateu uma DR rápida, falaram sobre a importância de povoar o mundo, acordaram serem bons filhos, garantiram inclusive bater a meta estipulada, mas a porta era intransponível: se fechada, deveriam respeitar a privacidade.
Eva, fofa, cumpriu o combinado. Nunca incomodava o marido nos seus momentos de reflexão. O mesmo quando vieram as crianças.  Desde cedo incentivou a independência e autonomia dos meninos mantendo a porta, principalmente a do banheiro,  fechada.
Por recompensa ao bom comportamento das crianças, Eva fez uma surpresa no Natal: passou na arca e adotou um cachorro errante, macho.
Viveu feliz por um tempo, até a enxurrada de testosterona dominar o ambiente; percebeu que em
bando, funcionavam de um jeito muito diferente do seu.
Esqueciam as folhas tapa-sexo jogadas no chão, deixavam os gravetos e as cuias ao lado do tronco da sala, não recolhiam a sujeira do cachorro; era uma bagunça só.
Sem saída, restava sucumbir. Sucumbiu tanto que aos poucos perdeu a doçura; mantinha lembranças da feminilidade, apenas quando se escondia atrás do tapume, após um dia exaustivo de trabalho, e gastava tempo tirando a maquiagem, acertando a sombrancelha, se besuntando com o resto de creme retinóico que trouxe do Éden.
Mas os filhos de Deus, nascidos do seu ventre sagrado, não entendiam nem respeitavam o espaço da esposa e da mãe. Tampouco as recomendações divinas para não abrir o tapume fechado.
Bastava ela se trancar no banheiro, lá vinha o filho querendo escovar os dentes, o outro pentear o cabelo, Adão para tomar uma ducha rápida e o cachorro lambendo sua perna quando saía do banho.
Um dia, cansada da invasão constante, deu um basta: gritou como se não houvesse amanhã. Mandou Deus, os filhos, o marido e até um tal de Espírito Santo para o inferno; amaldiçoou as próximas centenas de milhares de gerações, expulsou todos aos pontapés e, exausta, tomou um chá de camomila e foi se deitar.
Naquele dia, parece que a terra viveu o primeiro  apocalipse: veio dos céus um anjo do senhor e trouxe uma chave, tetra, com a mensagem: tranque a porta hoje e sempre.
Desde então, os homens nunca mais ousaram invadir o templo sagrado das mulheres: a pia do banheiro.
Contentam-se com um quarto de gaveta e só.

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