sábado, 1 de março de 2014

Entre meus seis e dezoito anos escutei meu pai repetir - com certa freqüência - que existem três tipos de pessoas no mundo: aquelas que aprendem observando os erros e as experiências  dos outros; outras que não se contentam em observar, desafiam a realidade e só então, após um bom tropeço e o nariz esfolado no chão conseguem entender o recado e por fim os Ipsilons que resistem vigorosamente ao aprendizado, recusando as contribuições e ensinamentos dos outros e negando a própria experiência. A gentileza do meu pai não parava por aí. Dizia que a exigência – não dele, da vida – sempre foi pelos melhores. Sustentava a tese citando os macacos, Darwin, os sobreviventes de guerra e até alguns personagens da família. Tanta sinceridade pedia um atenuante poético; recitava que não precisava ser a melhor, bastava pertencer ao ranking dos primeiros colocados e, dentre eles, ser a primeira. 
Coisas do meu pai!
Meu pai falava – e continua falando – tantas outras coisas. Costumava realizar uma espécie de chamada oral cultural que, há algum tempo, acredito que servia para verificar a qualidade da sua paternidade, uma espécie de avaliação de desempenho 360º. Com o passar dos anos o questionário sofreu algumas modificações, no entanto algumas perguntas chaves sempre estiveram presentes: a capital do Nepal, quem havia escrito o Guarani e por quem os sinos dobram. 
Naquele época meu desafio era decorar as respostas, adquirir confiança para contra-argumentar e lidar com minha total ignorância. Obviamente a proposta não pretendia estabelecer um longo diálogo, uma discussão histórica ou reflexiva e acabava resultando no diminuto “não sei” com “vai pesquisar mina!”.  E lá estava eu, entre um misto de vergonha, raiva mortal e curiosidade, debruçada em alguma enciclopédia, um mapa geográfico ou o bendito Admirável Mundo Novo. Não sabia ao certo a definição do termo, mas tinha interesse em me tornar uma Alfa. Quanta ilusão! 
Entre meus seis e dezoito anos percorríamos semanalmente os sessenta quilômetros de estrada que separavam nossa casa da cidade da nossa casa no campo. Apelidamos a primeira de Carrão – espécie de metonímia que garante a ilusão que a parte é o todo – e a segunda de Santa Isabel. Deixávamos o ponto de partida com alguns suprimentos alocados no infinito porta-malas da Belina azul e partíamos rumo ao primeiro sobrado de campo da face da terra – que até hoje não consegui entender o motivo.
Algumas vezes o quiz paterno era aplicado durante o trajeto e, na falta de recursos para pesquisa, restava desbravar a natureza do sítio e adquirir conhecimentos para além da fronteira impressa. 
Boas lembranças. 
Do sobrado, das aventuras, do contato com os bichos, da grande família da dona Severina, da caixa d´água, do balanço de pneu, da fogueira, da Cumbuca e sua ninhada, dos intermináveis jogos de War, do morrão, da casa do sítio do pica pau amarelo, do porco morto, do torresmo, do varal de lingüiça, do porão, das estórias de terror, do quarto das caminhas, do papai Noel, do chuveiro de lata, da perereca no rolo do papel higiênico, do lampião, do machucado no joelho, do beijo escondido atrás da casa. 
Entre meus seis e dezoito anos aprendi algumas coisas. Umas importantes outras nem tanto. 
Aprendi que existem três caminhos para chegar a Santa Isabel. O mais curto, porém, o mais perigoso, é pela Dutra. A Trabalhadores – inaugurada durante aqueles tempos – é mais bonita, segura, tem o relógio solar que garante algum entretenimento, mas é looonga. Você também pode ir “por dentro”, fato que exige conhecimento da periferia e uma boa dose de senso de direção. 
Aprendi também que o carro atola em dias de chuva. A tempestade abre vincos no chão que misturado ao barro e aos pedregulhos formam uma armadilha para os carros sem tração (raros naquela época). Aprendi que não devemos seguir as trilhas abertas pelos outros carros, elas enganam quanto a profundidade e, ao invés de encontrarmos um caminho, podemos encontrar uma cilada. Não devemos recuar, tampouco diminuir ou aumentar a velocidade. Se lento aumenta a chance de atolar, se afoito de derrapar. O ideal é engatar a segunda marcha e manter o controle e ritmo constante. Quanto ensinamento! Não raras foram as vezes que tivemos que enfrentar o caminho ermo, embaixo de chuva, carregando os suprimentos para a temporada na selva. As regras não davam conta do imprevisto: choveu demais, o solo cedeu, o motor esquentou. Nessas ocasiões parávamos, descíamos do carro, as mulheres e as crianças carregavam a bagagem enquanto os homens buscavam escoras para o pneu e forças nos braços para empurrar a banheira enlameada. 
Aprendi um pouco sobre paciência ouvindo Jesus alegria dos homens e, portanto, quem era Bach. 
Com as perguntas aprendi bem mais do que pretendia meu pai. Descobri que Katmandu é a capital do Nepal. Que lá por perto fica o ponto mais alto da terra, tão alto que andorinha não chega. Que Sidarta nasceu por lá e trouxe algum aprendizado aos seus. Aconselhou que não fossem pessoas infelizes, daquelas que mesmo não sabendo não perguntam, tampouco daquelas que sabendo  não ensinam aos outros e muito menos das que sabem, ensinam e não reproduzem nada do que aprenderam. O Guarani me apresentou Carlos Gomes, nascido na terra das andorinhas que, depois de um punhado de sofrimento, desbravou o mundo levando produto nacional de qualidade. E quanto aos sinos ... aprendi que com " a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti " ... meu amor. 
Mas essas coisas eu aprendi em outras épocas, antes dos meus seis e bem depois dos meus dezoito. 


  
  
  

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