sábado, 1 de fevereiro de 2014

Tortura

Essa é mais uma cena frívola entre torturado e torturador. Técnicas ensaiadas, fiel ao script, obstinada aos apelos da vítima.

Se conheceram naquela tarde. O locutor da rádio local acabara de informar que a temperatura do mês fora a mais alta dos últimos quarenta e três anos. A força do ar condicionado lutava contra o entre e sai das pessoas. O cheiro era agradável, almíscar amadeirado temperava o ambiente misturado aos aromas que saiam dos frascos. Lavanda, rosas, sândalo, notas de bergamota. No fundo, canto da direita, a primeira fila se formava e o tom adocicado dava lugar a acidez vinda das prateleiras desenhadas por pequenas caixas enfileiradas. A pressa estampava os rostos que, na tentativa de abreviar o tempo, liam e reliam os papéis em mãos. Éramos a maioria, mas nosso poder era pífio diante dos uniformizados. A inquietação tomava conta do lugar, sabíamos que a espera se repetiria no encontro com um deles, na hora do acerto de contas e corríamos o risco de sermos barrados na saída. Quando acontecia com um de nós, não havia solidariedade que atenuasse os efeitos vexatórios. O maior de todos, vestido com trajes especiais, se aproximava com o porrete em mãos e iniciava a revista intimando a vítima a declarar a verdade. A vigia das crianças era constante, temíamos que, por brincadeira ou distração, levassem algum objeto para o lado proibido e soasse o alarme. Não havia com escapar. Todos os objetos estavam marcados por um código secreto que só os uniformizados sabiam como desativar. Era preciso muito cuidado. Não bastassem, câmeras dançavam de forma sincronizada diante dos nossos olhos, certamente havia alguém mais poderoso monitorando nossos passos e se divertindo com nossa agonia.
O exército fingia benevolência, sorriam durante a abordagem, demonstravam gentileza extrema por alguns. A violência física era proibida, mas coagiam a violência psicológica. Praticavam as regras do além-muro; priorizavam os velhos, doentes, deficientes e aquelas coitadas que seguravam sua prole no colo ou no ventre. Eram alvos fáceis para a tortura. Ele era um deles.

Chamou atenção assim que passou pela porta automática. Baixo, calvo e vagaroso, escondia a falta de cabelos por um boné puído. O rosto marcado revelava a ação do tempo. O pé inchado, apertado pelo desgastado chinelo de couro, não escondia a micose nas unhas e a erisipela na canela esquerda. O suspensório sustentava a calça curta e o cinto servia de apoio à bengala, enquanto procurava com dificuldade o papel branco no bolso rasgado. Pela grossura da lente mal enxergava e as poucas palavras que conseguia praguejar revelaram a barreira da língua e do cérebro.

Quando seus olhares se cruzaram pude notar o prazer sádico ouriçando os pêlos do seu corpo. Ela era linda. Pele alva, sorriso fácil, discreto. Cabelo preso em coque com dois finos tufos soltos embalados pela brisa do ar. A maquiagem era leve, sem cor. Os cílios protusos e os lábios suavemente brilhantes realçavam o rosa natural. As unhas impecáveis, leitosas, com um leve traço branco formavam uma borda de inocência; nos olhos vestia uma miopia branda, no máximo três graus e meio. Duas pequenas pérolas compunham o quadro, vindas diretamente da costa nórdica do oceano Índico. Ela era linda, serena e perversa.

- Posso ajudá-lo senhor?
- Não tô achando a receita...
- Não tenha pressa senhor.
- Bom, é esta aqui.
- Esse é nome do princípio ativo, o senhor quer genérico, similar ou da marca tradicional?
- Não, não, eu só quero esse aí.
- Sim, eu sei, mas qual dos três?
- Não, não, é só uma caixa.
- Só um instante que eu já volto.
...

- Pronto, são esses, qual o senhor quer?
- Não moça, é só um mesmo, só um mesmo.
- Mas o senhor precisa escolher, qual o senhor toma?
- Nenhum ainda, meu médico falou que agora eu preciso desse remédio para a ferida da perna, essa aqui olha.
- Sim eu sei senhor, bom... Seu documento, por favor.
- Ah... Acho que tava aqui, não, aqui, não, aqui!
- Obrigada, o senhor pode ler e assinar aqui?
- Eu não enxergo direito moça.
- Entendo, mas o senhor está ciente que não pode trocar o remédio?
- Sim, sim, sim.
- Me acompanhe até o caixa que eu cobro para o senhor.
...

- O senhor tem cartão fidelidade?
- O que, cartão? Não, não, vou pagar em dinheiro.
- Sim, entendo, CPF na nota?
- O quê, CPF? Pode ser.
- O senhor pode digitar aqui, por favor?
- Eu não enxergo direito, onde, onde?
- Aqui, deixe ajudá-lo? O senhor pode confirmar?
- Por favor, moça, faz para mim, eu não enxergo, não escuto direito.
- Sim, entendo. Mais alguma coisa senhor?
- Não, não, eu só quero ir embora.
- Sim, entendo. Dinheiro ou cartão?
- Toma aqui, toma aqui.
- São vinte e cinco reais e sessenta e cinco centavos.
- Tá bom, tá bom.
- O senhor teria sessenta e cinco centavos?
- Não, não, toma aqui, toma aqui.
- Sim, entendo. Aqui está o troco. Dez, vinte e cinco, trinta e cinquenta. A nota senhor, posso colocar na sacola.
- Sim, sim.
- Tenha uma boa tarde. Próximo.

Pude observá-lo até a entrada no carro preto parado na porta da farmácia.
Quem seria? O levariam para onde?
Pobre coitado.


Ela, sorridente, buscava a próxima vítima.

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