quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Quiche

Esse calor dos infernos não favorece ninguém: nem a maquiagem importada que se derrama como as cataratas do Niágara na lapela do jaleco branco, nem o cabelo escovado que mantém um aspecto seboso constante, nem a atenção flutuante que te leva a um estado de torpor e sonolência permanente, nem a comida do self-service que perdeu o frescor bem antes do meio dia; muito menos eu! E foi exatamente ao meio dia, em frente ao pequeno espelho do lavabo do restaurante por quilo, entre o sabão liquido com cheiro de desinfetante de vaso sanitário e o papel toalha reciclado que percebi o tamanho do calor pelo meu reflexo desintegrado.  

Em situações como essa o mundo deveria parar e esperar o bafo passar, mas não; obrigados por algum sistema capitalista, enfrentamos trânsito, roupa social e a fila da comida - aquele espetáculo de horror que pode durar um instante ( se todos os velhinhos aposentados, as moças de dietas e os milhares de representantes farmacêuticos já tiverem passado) ou uma eternidade (se a fila for composta por essa gente aí de cima). Fato é que entre mim e o macarrão ao pesto havia uma fila infinita de folhas murchas, tomates tronxos, legumes cozidos pelo tempo, um conglomerado de mini frituras, a velha dupla arroz e feijão e ela: a quiche do que sobrou de ontem.

Até simpatizei com a moça: alta na medida, bronzeada ... aquele tipo corpulenta apetitosa. Fatiada por algum chef estilista, mantinha seus pedaços em perfeita harmonia. Quase dava para ouvir seus sussurros de agradecimentos quando pegavam suas fatias inteiras e na ordem. Não se tratava de uma ordem qualquer, seu composé de triângulos isósceles fora calculado com mestria para compor uma obra de arte. Rúcula com damasco a esquerda, o sol poente da cenoura contracenando com a intensidade sanguinária da beterraba esparramadas pela austeridade da porcelana branca, o arroz integral dourando o solo e ela, a estrela do meio dia se esparramando como uma diva solitária pelo lado direito do prato. Mas aquele ninho de mafagalfo, besuntado do verde louro e salpicado de camarões anões sete-barbas chamou mais minha atenção e esse era o alvo.

Não fosse o instante perdido assustada pela minha imagem, teria impedido o quarteto das jovens moças de pegarem a dianteira. PQP!

Malditas dietas: gastaram 5 minutos resgatando os nacos de frango grelhado da salada (over protein), meia hora destruindo a ratatouille para tirar a cenoura (carbo), mais um tanto operando o peixe ao molho de ameixa (frutose) e para aniquilar a harmonia do buffet cometeram uma verdadeira violência contra a quiche. A primeira pegou uma fatia e lá pelo feijão fradinho desistiu porque a farinha não era integral e tinha glúten; devolveu. A segunda pegou (a mesma), mas um pouco antes da batata chip percebeu a presença de um derivado do leite e quase teve um choque anafilático; lactose. A terceira, destemida, resgatou o pedaço e caminhou até a sobremesa, para então recuar com o argumento de que tinha presunto (embutidos). A quarta, vacilante, cortou a fatia na transversal (ou seria longitudinal?) abandonando a própria sorte o bico da torta na bandeja; covarde! Triste fim! Depois de tanto rebuliço o pequeno pedaço iria para o lixo pela total falta de solidariedade de pessoas egoísta que só pensam na própria sorte e esquecem que na próxima semana, essa dieta já terá naufragado como tantas outras.


Dedico essas palavras #pelofim do calor, do quilo, do sem glúten e sem lactose. 

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