domingo, 24 de novembro de 2013

Pernas cruzadas

Desde o primeiro ano da faculdade, acho que foi na aula de Psicanálise 1, aprendi que os filhos vieram ao mundo para realizarem os desejos frustados - ou não realizados, para ficar politicamente correto - dos pais. Desconfiava disso antes de entrar para o curso de psicologia. Lembro que no colegial teve o colega que decidiu fazer medicina porque o pai era dentista, a garota que apostou no curso de moda (acreditem, em 1990 não era tão comum) porque a mãe era costureira (fazia barra e trocava zíper) , o outro que estudou feito um camelo para entrar em engenharia porque o pai tinha uma loja de material de construção e o revolucionário que decidiu por gastronomia porque era filho do dono da padaria. Embora óbvio, a tal realização por empréstimo não era vivida de forma tão simples.  O seu Manoel não ficou contente com a decisão do Quinzinho , sabia que fazer comida não dava tanto dinheiro, além do trabalhão que era acordar cedo para ter a primeira fornada pronta antes das seis. Queria mesmo era que o filho fosse doutor de qualquer coisa. Podia construir, tratar ou advogar, menos cozinhar. Tentou dissuadi-lo, propôs uma temporada fora do país ( fato que em 90 também não era pra qualquer um), prometeu carro zero e nada. Joaquim queria virar chef, mais exatamente ser dono de boulangerie . Eu achava estranho aquela atitude, se o portuga passou a vida vendendo rosquinha, qual era o problema do filho vender croissant?! 
E foi a professora Lydia Marcondes - uma figura que de tão nova chamava Freud de Sig sem o menor constrangimento - que começou a me explicar o que acontecia na casa do seu Manoel (e na minha, é claro!). Ao longo dos anos aprimorei meu repertório de palavras para descrever esse afeto ambivalente presente nas relações pais e filhos, ah! e fiz um pouco de análise para lidar com ele. Em geral - tirando os momentos que tenho a nítida sensação que a vizinha vai fazer uma denúncia no conselho tutelar - tento manter a classe e a separação entre o que é meu e o que é do outro e - tirando a época de provas, o momento de escolher a roupa para sair e decidir qual o prato no restaurante - respeito as decisões dos meus filhos e entendo que suas escolhas, interesses e humores são os que lhes tornam únicos e admiráveis. 
Mas entretanto todavia, a Lydia contou que nem mesmo a mais avançada análise dá conta de liquidar todos os danos do passado. Lembro de ter falado algo sobre sublimação, desviar a pulsão para outros objetos, ampliar os modos de satisfação para não investir pesado nos filhos. Cumpri a risca. Fiz checagem e rechecagem antes , durante e após cada gravidez. E vocês pensam que deu certo? Parcialmente. Explico: como a maioria dos domingos - já escrevi sobre eles antes - estava absorta entre a leitura de um livro, os chamados dos filhos e um programinha de TV quando me deparo com a imagem de Fernanda Torres lançando seu livro no programa do Jô. Senti uma ligeira gastura na região do diafragma; a quem chame isso de inveja. Acho improvável; como disse sou uma pessoa analisada, bem humorada, não teria porque sentir inveja de uma mulher de quase cinquenta, magra, também bem humorada, boa atriz e boa escritora. Relevei. Mas foi então que meu caçula, num ato de crueldade, revelou o sentido oculto da cena que me incomodava. Sem dó nem piedade o mini crápula bravou em um só ato: 
" Ohmãe, essa moça da TV faz com a perna o mesmo que eu faço e você não consegue. Rárá! " 
Fiquei arrasada. Lembrei dos meus pais, do seu Manoel, do Quinzinho, da Lydia! das minhas gestações, do cuidado na escolha dos nomes, na liberdade que dei para escolherem o time de futebol, na roupa horrorosa que ele estava hoje no restaurante. Lembrei da análise interminável, das sessões custosas, das noites mal dormidas preocupada com seu estado febril. Do dia que sai correndo do trabalho porque seu primeiro dente de leite caiu. Cheguei a pensar o quanto desejei esse menino. Mas naquele instante eu entendi que a vida tem limites. Que ele pode fazer o que quiser, ser padeiro, pagodeiro, médico e até psicólogo, mas cruzar as pernas duas vezes ... isso não. Isso eu não admito!  

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