quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A história de Justino e Maria Lua

Justino era um homem correto. Nasceu a termo na região rural da pequena Sumaré, cidade próxima a Campinas. Primogênito de cinco filhos nunca deu trabalho para os pais. O doutor pediatra do posto de saúde elogiava, mês a mês, o desenvolvimento da criança. Dizia para a mãe que o menino parecia exemplo de enciclopédia médica. Sentou aos seis meses de idade, data exata que espontaneamente deixou o leite materno. Aos oito engatinhou e aos doze meses dava doze passos sem cair. Com dois anos mantinha um vocabulário crescente, de trezentas palavras e media a metade da sua altura definitiva: noventa e três centímetros. Largou a fralda nessa época e manteve o colchão do berço seco para o irmão.
A professora do primeiro primário, assim como o doutor, derretia-se em elogios a Justino que estava alfabetizado plenamente no último dia de aula. Os livros prendiam sua atenção, mas a maior diversão era admirar, da porteira de casa, o soldado Lopes fardado indo para o trabalho no posto rodoviário. Aos oito anos de idade dizia, com a convicção presidencial, que seria policial rodoviário como o vizinho.
Controlou a euforia hormonal dos treze jogando bola. Aos quinze conheceu Ana , delicada como a bruma, que só revelou o seu amor após o pedido oficial de namoro. O garoto sabia que encontrara sua esposa. Antes de terminar o ensino fundamental, retirou sua carteira de trabalho que ganhou o primeiro registro no dia que completou quatorze anos. Aprendeu com o pai a importância da poupança. Economizou, mês a mês, trinta por cento do seu salário.
Por precaução cursou o colegial em escola técnica para garantir um ofício. Certo de que prestaria o exército, como mandava a lei, se programou para estudar as apostilas do cursinho preparatório durante o período no batalhão. O edital do concurso público sairia no próximo ano.
Maria Lua nascera com a cabeça nas nuvens. Era uma mulher correta às avessas. Cumpriu todas as etapas da vida seguindo uma lógica alternativa. Sentou antes de rolar, andou sem engatinhar e aos dois anos mantinha um vocabulário crescente de três mil palavras.
Aos oito anos não sabia o que gostaria de ser, mas tinha opções: caçadora de seres imaginários, motorista de disco voador ou escritora de códigos secretos.
Controlou a euforia hormonal se descontrolando e antes do final do colegial já estava carimbando seu segundo passaporte.
Conheceu seu marido durante uma caminhada ecológica e só teve certeza de que era o homem da sua vida no fim da primeira análise, lacaniana.
Dos dramas individuais descobertos na faculdade de psicologia migrou para a trama social. Entre as redes sociais e os editoriais dos jornais, decidiu que seria jornalista política. Convenceu marido e filho de que a proximidade com o Palácio da Alvorada facilitaria a execução do seu novo projeto. Marcou a data da mudança para aquele mês.
Justino manteve a paciência cristã até a data do próximo concurso. Como era de se esperar passou em primeiro lugar, fato que lhe garantiu a escolha do posto de trabalho. Prometera a mãe que um dia chegaria a capital desbravando, quilômetro a quilômetro, a BR050, mas por enquanto ficaria na região de Campinas até que casasse com Ana. Deu entrada na casa própria, com o dinheiro poupado.
Naquele dia acordou antes do despertador tocar e tomou seu café, lentamente, admirando com orgulho a farda imponente encima da cômoda.
Se arrumou como se fosse o dia da posse. Ajeitou o quepe, guardou o bloco de multas no bolso direito da calça, a caneta dourada junto ao peito e com o sinal da cruz partiu, pedindo a benção a Nossa Senhora, sua santa de devoção e a São Cristóvão, protetor das estradas. Era o seu primeiro dia representando a guarda rodoviária da cidade.
Maria Lua abasteceu o carrão importado com itens de primeira necessidade: a obra de Freud, Hemingway, Euclides da Cunha e um exemplar do Hiroshima. O cooler estampado com as fotos dos amigos, todos os álbuns de fotografias, duas malas de roupas, uma de brinquedo. O violão, o dicionário em francês, os CDS, os DVDs, uma garrafa de água com gás, um maço de Marlboro Lights. Levou o filho e a mãe de companhia. O marido iria depois que entregasse o último projeto. Ela não quis esperar. Não tinha casa, mas tinha pressa.
Verificou o óleo, o combustível, calibrou os pneus e o iPod e cantarolando pegou a estrada que ligava o Vale a BR050. O melhor caminho seria passar pela região de Campinas.
Justino sabia da sua missão. Recitava todos os artigos do código de trânsito como quem recita um verso. Artigo 232, porte obrigatório de documentação do veículo, com apreensão caso não esteja com o condutor. Multa gravíssima. Sete pontos na carteira.
Quando Maria Lua reduziu a velocidade próximo ao posto policial, mal sabia que teria um encontro marcado com Justino, o homem correto. Ele educadamente solicitou os documentos da condutora e do veículo, enquanto inspecionava o interior do carro atentamente. Brincou carinhosamente com o filho de Maria, cumprimentou a senhora que estava no banco do passageiro e quando voltou a atenção a jovem notou seu desespero ao perceber que esquecera o documento do carro em algum lugar, talvez nas nuvens junto com a sua cabeça.
Por mais que lhe doesse o coração prometera cumprir a lei. Pediu que estacionassem no pátio lateral, retirassem os itens mais importantes e lhe entregassem as chaves. O veículo seria apreendido.
Maria Lua, moça espirituosa, perguntou ao guarda se poderia reassumir o volante caso alguém lhe trouxesse o documento. Justino sabia que somente no dia seguinte isso seria possível, sensibilizado pensou em oferecer sua residência para a pernoite da família.
Sendo assim, sem muito o que fazer, Lua pediu ajuda para retirar o cooler que conservava uma cervejinha gelada, pegou o jogo de gamão para uma partida com o filho e a mãe e sem pestanejar abriu uma latinha enquanto aguardava socorro.
Ali nascera a primeira história rumo ao planalto central.


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